quinta-feira, dezembro 23, 2010

Natália

Não gostava do Natal. Das luzes de Natal; das músicas incessantes e irritantes e repetidas na rua, no rádio, no supermercado, no trabalho; dos enfeites verdes e vermelhos e dourados; dos intervalos entre os programas de tv prolongados com  anúncios de perfumes e marcas e brinquedos.
Não gostava de bacalhau cozido. Nem de peru. Fazia alergia aos pinheiros e tinha aversão às árvores de plástico. Achava hipócrita dizer-se que Jesus tinha nascido em Dezembro, quando todos os indícios bíblicos indicavam que ele teria nascido em Março/Abril e considerava o Pai Natal o maior golpe publicitário de todos os tempos.
Irritavam-na os mails-tipo que recebia aos magotes e ainda mais - muito mais - a quantidade de sms's enviadas em massa nesta altura do ano e os telefonemas que se "tinham de" fazer.
Não gostava de comprar prendas por obrigação e odiava shoppings cheios de gente.
Nem a doçaria de Natal lhe era apelativa já que era celíaca e quase todos os doces tradicionais incluíam farinha de trigo.


Noutros tempos tempos gostara de sentir a casa a cheirar a canela e açúcar queimado, de poder deixar os cães entrar na cozinha de casa dos pais como única excepção anual à regra rígida de "cães dormem na rua", de comer todo o chocolate que conseguisse antes de dormir em frente à lareira entre conversas intimistas com as irmãs. Mais tarde gostaria do ritual de pensar na prenda perfeita para o namorado e depois marido, de enfeitar a sua casa de formas criativas, evitando a tradicional árvore de natal e os cânticos repetidos, de pensar e criar novas versões de doces tradicionais sem glúten e do pretexto para partilhar a felicidade com conhecidos, desconhecidos e amigos por igual.


Mas hoje tinha um sabor especialmente amargo o jantar de natal em casa da família onde a mesa tinha exactamente o número de lugares menos um do ano passado. Onde todas as festividades de família a lembravam do que já não tinha. De inventar o que fazer por não ter pretexto para passar tanto tempo à procura do presente ideal, embora lhe fosse inevitável reconhecer nas montras as diferentes opções de presente que ele certamente iria gostar ou que eram "a sua cara". De conduzir sozinha para a terra dos pais e dormir sozinha em frente à lareira. De não ter quem abraçar e com quem dançar músicas que não foram feitas para se dançar, no fim da noite, já um pouco bêbeda, depois de toda a gente se ter ido deitar. De enfrentar o ar de pena disfarçado das suas pessoas queridas. De não ter como fugir da sua pele, da sua vida e do seu natal.



domingo, dezembro 12, 2010

Avô Jaime

"-Gabriel, não faças barulho."

Aos 70 anos, o avô Jaime continuava a gostar das suas pequenas transgressões. Nada lhe sabia tão bem como um prazer roubado.

Os netos com quem fumava charros na varanda de casa (erva de cultivo e cuidado próprios e biológicos) conheciam bem demais como lhe apraziam estas pequenas facadas que espetava na educação convencional que Amélia, a nora, tanto se esforçava por dar aos filhos.

Gabriel e Ana Maria andavam ambos num colégio católico, iam à missa todos os Domingos e eram escuteiros.

Ao avô Jaime, um liberal de esquerda aventureiro isto sempre fizera muita confusão, mas não sentia que tinha legitimidade para interferir. mesmo se isso o fazia pensar que não educara o seu filho Vasco, agora um mero pau mandado da mulher, tão bem como havia suposto.

Quando os netos adolescentes o visitavam, a palavra chave era "vamos falar para a varanda" ou "vamos ver as estrelas" ou "vamos ver o mar", e os três percebiam imediatamente que o caminho estava livre para as suas conversas intimistas, explícitas e frequentemente heréticas com o ancião renegado da família.

Mas Jaime não agradava à nora que percebia os filhos diferentes depois das idas ao avô e isso fazia com que estas fossem tanto quanto possível escassas. E como ele ansiava com sofreguidão as visitas da juventude da família.

Preparava-se cedo, contrariando o seu ritmo habitual. Levantava-se da cama e tomava banho. Queria sempre certificar-se que tinha todas as referências musicais que queria partilhar com os netos, todas as fotografias, livros e filmes que lhes queria referenciar. Guardava a erva mais suave, certificando-se que não era especialmente forte para quando estava com eles. 

Se pudesse, se lhe dessem por uma vez carta de alforria e a liberdade de um dia só com eles, prepararia algum prato exótico e serviria do vinho especial que tinha guardado para as melhores ocasiões. Amava aqueles dois adolescentes quase adultos muito mais do que a sua própria vida. e queria beber da sua juventude, assegurando-se que percebiam a liberdade ao seu dispor, as suas possibilidades; que a moral e os limites que lhes eram impostos precisavam de ser questionados. Que tinham de viver. E que o deixassem viver um pouco da sua juventude de forma partilhada.

Jaime era viúvo e tinha uma namorada, Margarida, cerca de 30 anos mais nova que ele, com quem não vivia e que evitava trazer para as reuniões familiares para evitar expô-la ao escrutínio mesquinho e precipitado da nora e para evitar dar a Amélia mais uma desculpa para o privar dos netos.

Levava uma vida calma e sossegada junto ao mar. 

E um dia, simplesmente, não acordou.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Jorge

Os dentes, titânio;
os braços, puro aço;
a vontade, ferro;
o cabelo, prata;
a pele, bronze;
e o coração, ouro.

Jorge Silva vê-se a si mesmo como uma espécie de herói de acção da banda desenhada enquanto toma o duche matinal. Gosta de imaginar que é uma personagem, um herói de banda desenhada e até tem nome para si mesmo: "Metalman", o que lhe permite fazer uma campanha de trocadilhos e respostas mordazes e engraçadas.

Metalman é o seu "guilty pleasure". Quando era mais novo, Jorge desenhava bem e fazia cartoons a pedido dos colegas de turma que lhe veneravam os dotes artísticos e o talento para o teatro.

Mas Jorge era de uma família convencional com larga tradição na área da Gestão e da Economia e foi pressionado pelos pais a fazer um "curso a sério", que teria sempre tempo e oportunidade de explorar os passatempos depois de garantir a sua subsistência com um emprego "a sério".

E portanto, Jorge tornou-se num contabilista medíocre e obeso, de 45 anos, cujo ponto alto do seu dia era sonhar com os heróis de banda desenhada que poderia ter criado e as personagens que encarnaria se não tivesse sido tão ajuizado.

Hugo

"Quero-lhe partir a cara de cada vez que ela me fala, de cada vez que ela comenta uma coisa qualquer minha no facebook, de cada vez que recebo uma mensagem comunitária em que ela fala à bebé.
"Puka munina gota munto de ti, nunhé?"
Quero-lhe ir à cara, pronto, doutor, é isso, quero-lhe partir aquele focinho."

Marina já fazia psicoterapia com Hugo há mais de meio ano.

"Hmmmm"

Hugo vocalizou um incentivo neutro para Marina continuar a falar. Eram típicos estes acessos de raiva sem razão aparente nesta cliente. Tinha sido a forte emocioanlidade e a dificuldade em reagir friamente perante situações de interacção uma das principais razões de Marina o ter procurado. "Sou demasiado impulsiva, tempestuosa" dissera ela na entrevista de avaliação terapêutica.

"Quer dizer, doutor, eu não lhe quero bater, não tenho interesse nenhum em chegar a vias de facto. Mas muitas vezes, quando estou sozinha, imagino que lhe dou um par de estalos e as coisas que gostava de lhe dizer."

A possibilidade de estar perante alguém com uma perturbação de personalidade borderline ocorrera-lhe num primeiro momento. Chegou mesmo a perguntar-lhe se ela estivera envolvida em episódios de violência física, mas a sincera estranheza aversiva com que esta respondeu à questão deixara-o logo na altura com a impressão que mantinha até ao momento, de que Marina simplesmente vivia as coisas com uma intensidade momentânea descabida, mas era fundamentalmente inofensiva.

"Hmmmm"

Hugo procurava manter uma atitude de especial neutralidade com Marina. Sabia que isso a enervava e, embora tivesse fundamentação terapeutica para esta atitude, admitia para si mesmo que o divertia enervá-la com esta atitude. E gostava de esticar a corda.

"Sinto que está tensa, Marina."

Hugo percebeu um esgar de vitória em Marina. E apreciou como ambos jogavam o mesmo jogo de gato e rato por entre os conteúdos das conversas, replicando as dinâmicas de Marina no seu quotidiano.

Marina respondeu com "Hmmmmmm"

E Hugo não conseguiu deixar de sorrir divertido. E de pensar como gostava do seu trabalho, como o considerava desafiante e interessante. Que sorte tinha por poder lidar com pessoas tão diferentes e que lhe davam luta, sem se aperceberem que estavam a desemaranhar os seus próprios novelos.

Mexeu-se na cadeira, ajustando a sua posição, inclinou-se para ela e perguntou, olhando-a directamente nos olhos:

"Fale-me dessa situação."

E pronto,com uma simples questão acabara com a ilusão da cliente que achava que o tinha vergado e feito perder a calma.

Marina, com um ar perfeitamente incrédulo e mesmo ultrajado, desatou de forma emocionada a descrever como o processo terapêutico e a neutralidade do psicólogo a irritavam, como ela nunca sabia o que ele estava a pensar, como não sabia o que ele estava a perguntar e muito menos o que responder a maior parte das vezes. E que ela, por seu turno dizia tudo o que lhe passava pela cabeça, sem restrições; ela não tinha segredos para ele. E que acabava por não perceber muito bem o que é que andava para ali a fazer se ele não lhe dizia nunca merda - desculpe doutor - coisa nenhuma, se não lhe dava qualquer solução.

Hugo ficou feliz por finalmente ver expostas as ideias que sabia que Marina alimentava há algum tempo e decidiu provocá-la ainda mais:

"Então porque é que volta?"

Hugo sentia-se sempre como um jogador de vólei que faz o bolar: ele atirava a bola com perícia, agilidade e convicção, mas depois ficava de olhos fixos nela, torcendo para que não se desviasse da rota pretendida e não fosse bater na rede. Desta pergunta poderia surgiu absolutamente qualquer coisa. Até a agressão que não esperava.

Mas Marina permaneceu em choque e depois de uns momentos sem conseguir articular palavra, respondeu:

"Oh doutor, francamente..."

"Sim?"

Confirmou a pergunta com mais confiança.

Hugo sabia que Marina não tinha uma resposta para aquela pergunta. Não tinha. Pelo menos nada que fosse coerente com a explosão anti-psicologia que acabara de ter.

"Porque isto me ajuda." disse finalmente a cliente e em voz sumida.

"Como assim?" perguntou neutralmente o terapeuta, já sem provocar, apenas querendo que Marina reflectisse sobre o processo terapêutico.

"Porque saio daqui aliviada. Parece que me tiraram um peso de cima. Porque lhe digo a si o que não tenho coragem de dizer a mais ninguém. Mesmo que o doutor não me diga coisa nenhuma relativamente à forma como devo agir. Eu sei que a terapia me faz falta e sei que estou melhor. Sei que penso mais claramente depois de falar consigo."

Hugo sorriu e depois deste desvio relativamente à questão central, achou que devia subrepticiamente voltar ao argumento principal da consulta.

"Hmmmmm. E em relação à sua amiga?"

"Amiga? Mas ela não é minha amiga!" - Marina soltou a frase e parou, reflectindo.

"Ela não é minha amiga. É só uma pessoa que eu conheço" disse novamente como se quisesse cimentar a recém-descoberta verdade.

"Hmmmmm" - vocalizou Hugo, disfarçando o sentimento de vitória e satisfação por a cliente ter chegado à conclusão que ele desejava desde o princípio da consulta.

"Ora nem mais, então ela não me devia conseguir afectar desta maneira, não é?"

(a situação pelos olhos de Marina em http://personifixar.blogspot.com/2010/10/marina.html)

Rita

One day at the briefing
she'd heard a man say,
"Go perfectly limp,
and be carried away."
                                                                         (Go Limp, Nina Simone)

Rita vomitou o almoço e planeou dar mais uma volta à pista no treino da tarde.

Levantou-se da sanita e enquanto lavava as mãos virou-se de lado para examinar a sua barriga "enorme". Achava a sua cara grande demais, bolachuda. Não gostava das pernas. Achava que a celulite do seu rabo se via a léguas. Acreditava que toda a gente reparava como tinha uma pele horrível e um cabelo estragado. E como os seus braços eram desproporcionais ao corpo, sendo grandes demais. Até os seus olhos de um verde intenso e invulgar considerava estranhos e desadequados.

Aos 18 anos, Rita preparava-se para entrar no curso de Medicina na Faculdade da sua primeira escolha. Era uma aluna dotada, brilhante, perfeccionista. Incapaz de entregar um trabalho acabado de fazer na véspera ou que considerasse incompleto. Obcecada com as datas e os horários, não tinha dificuldades em prescindir das suas horas de sono ou tempo pessoal para concluir uma qualquer tarefa. Rita tocava ainda piano a um nível quase profissional, estando a concluir o oitavo grau do conservatório neste instrumento.

O orgulho da família em Rita, a menina bonita, elegante, bem educada, inteligente e dotada era transbordante. A todos Rita era dada como exemplo a seguir, como a virtuosa.

E Rita era boa em tudo aquilo que fazia e em tudo aquilo a que se propunha. Era especialmente exigente consigo mesma e achava que tinha de se esforçar para ser sempre merecedora.

Mas não era feliz e nunca viria a encontrar aquilo que procurava, porque na realidade, Rita não gostava de si mesma.

No amor, Rita viria a provar ser uma mulher insegura e desejosa de aprovação, sujeitando-se aos caprichos mais degradantes dos namorados que quase sempre tinham um perfil dominante e abusivo. A família consideraria sempre que estavam claramente abaixo do seu nível, e não andavam longe da verdade, porque Rita não se permitiria envolver com ninguém de quem realmente gostasse, por não se considerar ao mesmo nível.

Passaria toda a vida à procura daquilo que podia fazer para encontrar o mais desejava.

Se ao menos lhe tivessem explicado um dia que aquilo que ela mais queria, amar e ser amada tinha tão pouco a ver com a sua aparência ou com as suas competências e mais com a sua coragem, a sua tolerância à rejeição e a sua capacidade de estar e permanecer vulnerável.

sábado, novembro 27, 2010

Ofélia

Bateu furiosamente na porta do elevador. Parecia um pesadelo.
Em miúda tinha adquirido um medo irracional de andar de elevador depois de ver uma novela em que a mãe da protagonista morria quando um dos cabos do elevador se soltava e levou uns bons dez anos a voltar a conseguir andar de ascensor.
Não interessava se a casa do padrinho era no 13.º andar, se tinha que subir 3 lanços de escada no hospital quando estava doente, se não compartilhava animações na feira popular com os amigos: nunca em qualquer circunstância a apanhavam num elevador.
Um dia, um amigo percebeu o seu medo e levou-a à casa das máquinas do elevador do prédio onde era responsável pelo condomínio e explicou-lhe todas as medidas de segurança que os aparelhos englobavam.
Teve pesadelos durante uma semana, em que o elevador caía, em que saia do elevador pelo alçapão superior e ficava esmagada quando ele chegava ao último andar ou então que ficava presa no poço do elevador e era assim esmagada quando ele chegava à cave. Acordava sobressaltada e depois repetia-se o sonho sem nunca conseguir controlar nem racionalizar os seus elementos.
Quando acordava racionalizava o mais que podia, que tudo aquilo era impossível, que nada daquilo acontecia a ninguém a não ser nos filmes e nas novelas, que nunca se ouviam notícias de acidentes com elevadores.
Depois de tanto dar sermões a si mesma, decidiu que era altura de deixar de ser mariquinhas e andar de elevador. Escolheu o elevador do hospital, porque era sempre frequentado e vigiado e porque, na pior das hipóteses, tinha médicos por perto, para a salvarem.
Nesse dia andou tantas vezes no elevador que o segurança a interpelou e quase a expulsou, até ela fazer "olhinhos de corça" e explicar a situação – altura em que o segurança lhe indicou um outro elevador que chegava a 3 andares mais acima, com a condição de andar uma vez e se ir embora.
Desde então, foi sempre capaz de andar de elevador ao ponto da preguiça, de usar o aparelho para subir um andar ou de descer para a cave de ascensor.
E agora, o que ela havia relegado para 3.º, 4.º, 5.º plano, estava mesmo a acontecer. O elevador estava parado entre o 3.º e o 4.º andar do prédio do namorado. A porta estava fechada, mas o elevador, a que ela por graça chamava "o elevador da morte" aludindo aos ruídos estranhos que fazia desde sempre e que sempre assustavam as pessoas que andavam nele pela primeira vez, não se mexia.
Começou por calmamente esperar que a luz voltasse. Quando as luzes se acenderam, achou que o elevador voltaria a mover-se. Gritou por ajuda dez minutos depois, debalde. Tocou o botãozinho do alarme, apenas para se lembrar como os condóminos haviam decidido desactivá-lo, uma vez que os miudos tinham o estúpido hábito de o fazer soar a torto e a direito e a qualquer hora do dia ou da noite. Então começou a bater na porta e a berrar. Até a merda do telemóvel estava sem rede. Bateu, bateu, bateu. Berrou. Berrou. Berrou.
Finalmente apareceu alguém para a salvar. Abriram a porta do elevador manualmente e ela teve uma sensação de deja vu: o elevador encontrava-se entre andares, a meio caminho do 4.º andar e teriam de a içar para a retirar. No sonho semelhante que tinha tido recorrentemente, quando era mais nova, o elevador caía, quando ela estava a sair, cortando-a ao meio.
Achou que era mau demais o que lhe estava a acontecer e começou a chorar convulsivamente. Sentia-se paralizada e incapaz de fazer fosse o que fosse, como um carneiro levado ao matadouro.
A muito custo a convenceram a mover-se. Talvez do pânico ou de ter chorado muito, sentia o chão inseguro, como se se movesse ou balouçasse, o que em nada contribuia à situação. Aquela merda daqueles barulhos que a porra do elevador fazia sempre estavam a deixá-la à beira de um novo ataque de nervos.
Onde raio estava o seu namorado que não chegava? Os vizinhos aglomeravam-se à porta do elevador cada um mandando mais bitaites que o outro e foi mais do que podia aguentar. Desmaiou.
Quando acordou estava exactamente no mesmo sítio. Ninguém a tinha tirado dali. Mandaram os vizinhos sair e chamaram o INEM. A visão de gente da saúde, que lhe inspirava tanta confiança deu-lhe a coragem de que precisava, não obstante os ruidos do elevador e a sensação de chão balouçante que tinha.
Percebeu que precisava de mais coragem do que tinha. Ganhou lanço e sem pensar atirou-se contra a parede, rumo à frincha de meio metro que em que a porta se abria.
A última coisa que ouviu foi um "strap" quase surdo e o som quase musical de uma corda de aço a soltar-se e a deslizar entre os cabos.

segunda-feira, novembro 08, 2010

São

"São.
São!
Ó São, anda cá!"

Fernando Gomes permaneceu sentado no sofá enquanto esperava que a mulher corresse para  a sala onde ele permanecia sentado em frente à televisão.

"Anda cá ber isto, carago!"

Conceição largou a loiça que lavava no rescaldo do almoço e dirigiu-se apressadamente para a sala secando as mãos no avental estampado com galos de Barcelos.

"O que é que foi home?"

"Senta-te aí! Olha!" - respondeu Gomes, apontando com incredulidade e veemência para o LCD.

São olhou para as imagens do notíciário e de repente, os olhos ficaram rasos de água.

Casara com Gomes depois de ter engravidado do filho, Tininho, e já tinha uma barriga bastante proeminente quando entrou de branco na Igreja do Senhor de Matosinhos. A sua vida não era fácil. Quando era mais nova trabalhara na lota como peixeira, mas a descoberta de um sopro no coração dera uma empurrão à opção por que Gomes tanto desejava e São deixou o trabalho para se dedicar à casa e à família.

Contando apenas com o salário de Gomes, a vida não era fácil. Gomes era trabalhador por conta própria, realizando trabalhos de pichelaria aqui e ali. O negócio não corria mal, mas era muito variável e implicava uma grande capacidade de gestão financeira e emocional por parte do marido a quem por vezes ficavam a dever muito dinheiro.

Gomes gostava da ideia de ter São sempre disponível em casa, à moda antiga. Tinha sempre a casa limpinha, as camisas passadas e a segurança de ter uma mulher que dependia dele para tudo e cujo dinheiro era ele que controlava.

Embora São fizesse rissóis para fora e tivesse uma ou duas senhoras a quem passava roupa, o dinheiro que ela fazia era muito pouco e entregava-lho a ele, para que gerisse a soma maior, de modo a irem guardando algum "para caso de necessidade" e para um dia pagarem aquilo que fosse necessário para "ver o nosso Tininho doutor".

A vida que levava era dura, numa constante gestão de trocos, na contagem diária das possibilidades de poupança, na ginástica de fazer render um orçamento muito magro, mas que ela queria que desse para tudo.

São sabia todos os ofícios da perfeita dona de casa, mas muitos deles aprendera depois de casada e com o seu esforço, porque queria poder valer à família, dar-lhes mais do que o dinheiro fazia render. Sabia os ofícios da costura e da cozinha, bordava, fazia arraiolos, arranjos florais, cultivava no pequeno terreno atrás dos anexos em que viviam legumes e outras plantas comestíveis e convencera Gomes a criarem galinhas.

Por Gomes e Tininho daria a sua vida sem pestanejar. Apesar das noites mal dormidas, das discussões, dos sapos que engolia quando apanhava mechas de cabelo de cor loiro-prostituta-barata na roupa de Gomes, dos tabefes ocasionais que levava em dias de maior frustração do marido e das dores de barriga com medo de o orçamento não chegar. Amava ambos os homens da sua vida mais do que conseguia expressar e seria capaz de qualquer coisa por ambos e especialmente por Tininho, de quem esperava o mundo.

E foi por tudo isto que a escolha do seu filho de entre todos os meninos presentes pelo entrevistador da televisão para dizer o que é que achava do início das aulas e da mensagem da ministra da educação, lhe soube como um prémio desejado e inesperado. Como se depois de todos estes anos, Deus lhe estivesse finalmente a piscar o olho e a mostrar que tudo via. E os olhos de Conceição encheram-se de lágrimas de incontida felicidade e orgulho perante o súbito estrelato do filho.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Ana Maria

No dia 1 de Novembro, Ana Maria saiu de casa com Rafael, segurando a sua mãozinha pequenina. Tinha um orgulho imenso no seu filho e na forma como, tão pequeno, era já tão atinado e responsável.

Ana Maria foi mãe já tarde na sua vida. Rafael foi um filho muito desejado e muito "batalhado". Ana Maria passou anos na tortura médica das fertilizações, foi a bruxas, perdeu a cabeça com mezinhas e métodos. Mas foi o Bom Jesus de Braga que lhe deu a criança que ela tanto amava e desejava e pela qual tanto sofrera.

Devota fervorosa, todos as noites rezava por um filho. Pedia essa bênção nas missas e rosários. Fez promessas incontáveis e nunca teve uma resposta um sinal de Deus, tendo chegado a considerar-se esquecida pelo Altíssimo.

Um dia, 6 anos depois de ter começado o seu martírio de tratamentos, de contagem de dias, de frustrações de uma ausência total de esperança, Ana Maria foi ao Bom Jesus de Braga sozinha.

Era um dia de semana, de tarde, chovia muito e não estava ninguém na nave central da catedral. Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e disse, entregue, humilde e resignada entre as lágrimas inevitáveis e grossas.

"Seja feita a Tua vontade, Senhor".

Nesse momento, abandonou-se e abandonou toda a esperança de ter um filho. Resignou-se à vontade divina, aceitando-se impotente, insignificante e infértil. E decidiu seguir com a sua vida de outra forma, se era essa a vontade de Deus.

Um mês depois estava grávida.

Rafael de Jesus foi recebido por todos com uma alegria incomensurável. A avó Lucinda desdobrou-se em trabalhos manuais e encomendas para fazer um enxoval minhoto digno do seu neto que mais custara chegar. O avô Luís, ficava com os olhos rasos de água sempre que falava no assunto. Os dois irmãos e a irmã de Ana Maria trataram dela como se fosse uma princesa e o advento de Rafael foi visto por todos como um milagre merecido e desejado que chegava a uma pessoa querida que todos tinham visto sofrer e chorar durante seis longos anos. Teresinha, a prima mais velha de Rafael foi escolhida para madrinha, por ser a mais velha e ajuizada, mas também por ter feito tantas vezes de filha para Ana Maria, quando a percebia mais desanimada e triste.

Depois do nascimento de Rafael, o clã subiu a pé o Bom Jesus em sinal de agradecimento. O bebé foi aí baptizado e todos os anos uma vela com o tamanho da criança era depositada no altar das ofertas do templo.

"Seja feita a Tua vontade" passou a ser uma espécie de lema informal de toda a família, mas especialmente de Ana Maria.

Rafael tinha agora sete anos e era a sua razão de viver. Era uma educadora extremosa, mimando mas impondo disciplina. O amor a Rafael era incondicional, mas o seu comportamento era necessariamente exemplar, porque Ana Maria acreditava que ensinar os valores e "dar educação" era a maior prova de amor que podia dar ao filho. Mesmo que às vezes isso lhe custasse horrores.

E Rafael sabia que entre os "obrigado", "se faz favor", "desculpe" e outras regras básicas, uma das mais importantes era nunca largar a mão da mãe quando fosse na rua.

Na fracção de segundo em que Rafael se soltou da mãe para ser brutalmente atropelado por um carro que não o viu chegar, Ana Maria viu o seu mundo seguir em câmara lenta.

Teve tempo para não compreender porque é que Rafael se soltava da sua mão se ele sabia que essa regra era muito importante, teve tempo para querer agarra-lo e ralhar com ele, teve tempo para ver o carro chegar, para ver o filho seguir em frente incauto e para ver a carinha dele uma última vez antes de acontecer o pior. Sem conseguir mexer um músculo.

Perante os seus olhos aconteceu tudo tão devagar como um aviso. E quando estava consumado, Ana Maria apenas conseguiu dizer no mesmo tom que o fizera 7 anos antes, para espanto e choque dos que o testemunharam,

"Seja feita a Tua vontade, Senhor."

segunda-feira, outubro 25, 2010

Sr. Zé

O bêbedo cumprimentou-o e estendeu-lhe a mão. Caninho, o bêbedo local conhecido de todos, tinha um ar sujo, cheirava mal e falava alto.

José recusou o cumprimento, enxotando-o.

"Ai não me conheces?" perguntou o bêbedo fingindo indignação, como se estivesse a representar uma paródia.
"Não.", respondeu o outro secamente.
"Ah, não me conheces... Deixa estar que quando quiseres um copo..." - e pausou propositadamente enquanto o rosto do outro se transfigurava, passando do nojo e da superioridade à súplica - "em vez de 1, trago-te 2!", concluiu de forma marota e sentou-se noutra mesa.
"Deixa-te estar!...", continuou Caninho, troçando e falando alto enquanto se reclinava na cadeira vermelha de plástico na esplanada, provocando o incómodo de um apologético José.

Caninho era uma figura local. Tinha a roupa escura empoeirada, pontuada por nódoas de gordura e vinho tinto; trazia um saco de plástico preto fechado com um nó e um boné beije encardido de suor e pó com a pala para trás.

"Menina!" - chamou José pela empregada de café
"Diga, Sr. Zé" - respondeu a jovem a partir da soleira da porta do café.
"Venha cá."
"Pode falar daí." - disse com inamovível indiferença.
"Queria um copo de vinho branco."
"E depois?"
"Traga-me um copinho de vinho branco...", suplicou com voz sumida.

A jovem abanou a cabeça, recusando, e foi para dentro, sem mais. Como já era hábito, negava-se servir-lhe o pedido sem mais justificações ou palavras.

E José deu por si na situação ingrata do costume.

"Caninho! Eh! Caninho!" - dirigiu-se ele ao bêbedo - "Vai-me lá a dentro buscar um copo..."

Caninho levantou-se e, contrariando a atitude que ostentava até então, dirigiu-se ao Sr. Zé rapidamente com um ar sério, como fazem os cúmplices das ilicitudes enquanto perpetram o acto.

O Sr. Zé entregou-lhe dinheiro para 2 copos (o dele e o do comparsa) e esperou ansiosamente pelo primeiro gole do copo ilícito.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Gilberto

Chegou a casa às 4h05 da manhã e foi cumprimentado pelo cão carente. Pousou o casaco nas costas da cadeira da sala. Pegou no portátil para ver quem estava online e olhou à sua volta. Por todo lado sentia a presença dela, até ser quase palpável. Estava exausto além do aceitável, mas não conseguia ir dormir.

Olhou para o sofá vazio e pensou que daria um braço para poder ir deitar-se na cama e ter lá alguém à sua espera. Não queria necessariamente sexo, não era isso. Aquilo por que ele daria um braço era a intimidade muda de poder entrar numa cama onde outra pessoa estivesse a dormir, sem ser estranhado e se poder aninhar com familiaridade. Alguém com aquele grau de confiança e intimidade em que uma pessoa não precisa de pedir licença para se tocar e beijar; mesmo num estado de semi-conscência ou insconsciência como é o sono.

Gilberto e a agora ex-namorada tinham terminado a sua relação havia dois meses.

Depois da separação, Gilberto estava também mais contacto consigo mesmo. Relembrara coisas que gostava de fazer e de que se abstinha porque sabia que não eram da preferência dela. Conhecera gente mais interessante. Ia a sítios mais in e cool. Ia ao cinema, a concertos, a exposições, viajava e saía à noite.

Mas, desde então, nunca mais tinha conseguido dormir confortavelmente. Saia todas as noites porque não suportava a solidão das noites em casa, porque tudo o fazia pensar nela e na falta que ela lhe fazia. Porque se sentia incompleto, vazio.

Lembrava com saudade as pequenas coisas, que com o passar do tempo se tornavam mais douradas e ofuscavam os motivos da separação. Dos serões no sofá a ver televisão que não interessava a ninguém. De encomendar uma pizza e ver um filme no sofá com o cão a pedinchar  mimos e um pedaço do que quer que fosse que comessem. De telefonar a saber se era preciso alguma coisa de que se tivesse a esquecer do supermercado. De cozinhar para ela e partilhar as descobertas culinárias de que eram ambos fãs. De ter a quem telefonar por qualquer motivo ou a quem contar o dia correu mal ou os seus dilemas pessoais sem o julgar. Da companhia no sono. De fazer parte de algo maior que ele próprio.

Gilberto e Natália tinham temperaturas corporais muito diferentes, ela tinha sempre frio e ele suava sempre de calor. Depois de uns tempos em que Natália se constipou um mês seguido e em que ele não conseguia dormir sem se destapar completamente, optaram por ter dois edredões individuais na cama: um leve para ele e um de penas para ela. Esta diferença fisiológica impedia-os de dormirem toda a noite abraçados, mas não impedia a sua cumplicidade e dormiam de "pés dados". Com o passar do tempo e à medida que se afastavam na sua relação, Natália começou a dormir de costas para ele e abraçada à almofada. Racionalmente insensível a mais este pequeno sinal, Gilberto adquirira o hábito de dormir com as costas da sua mão nas suas costas numa ligação quase umbilical, subconscientemente declarando-se seu, pedindo-lhe que não o deixasse.

Mas ela deixara-o e agora a casa ficara vazia, mas ainda cheia de si, e os vestígios da sua presença passada tornavam a sua ausência quase palpável. Insuportável.

terça-feira, outubro 12, 2010

Cremilde

Apesar da vocação maternal e espírito protector que a tornaram a verdadeira matriarca da família, nunca teve filhos.
Em vez disso, adoptou os irmãos mais novos e os sobrinhos, quase todos afilhados, não por acaso.
Fisicamente, madrinha e afilhada eram e são muito parecidas: maxilar largo, nariz igual e mais alguns traços indubitavelmente familiares. Partilhavam uma relação inequívoca e indisfarçável de cumplicidade e afecto.
Era de tal modo óbvia a sua parecença e carinho que sempre que passeavam juntas por Barcelos, e apesar de Cremilde ser uma pessoa bastante conhecida na cidade, quando encontrava alguma amiga ou conhecida a pergunta era incontornável:
"É sua filha?"
Era um procedimento tão costumeiro que Helena se habituara a brincar com o assunto e divertia-se respondendo
"Sim!"
Ao mesmo tempo que ela respondia
"Não."
Depois, Cremilde virava-se para Helena e dizia "Oh Lena!" e para a outra pessoa "É tão patarata! É minha sobrinha/afilhada".
Se estivessem com tempo e a pessoa sorrisse, Helena insistia dizendo
"Oh mãe, lá estás tu a renegar-me! Não percebo porque é que tens vergonha de mim!" - e depois com um ar muito sério para outra pessoa "Não conta a ninguém que tem uma filha, é impressionante."
Acabavam sempre a rir desta diabrura que ela repreendia com o sorriso feliz e orgulhoso de ter uma sobrinha/afilhada que insistia em se passar por sua filha.

Naquela Quinta-feira, Helena seguiu o pai ao gabinete da médica que "queria falar com alguém da família da paciente". Havia uma estudante de Medicina com ela que observava ambos como aos peixes de um aquário.
A médica deu a notícia da irreversibilidade dos danos devagar e com suavidade, como quem ministra uma injecção de penicilina, já com muita experiência.
Foi suave, mas firme: ia acontecer o pior.
À medida que as frases se sequenciavam da maneira que os "Psis" ensinam que se deve fazer, as lágrimas começaram a rolar pela cara de Helena, sem parar, grossas e indisfarçáveis, apesar das suas tentativas de controlo.
Queria fazer-se forte, mas não conseguiu. Virou-se de costas enquanto a médica acabava de dar as notícias ao pai, estoicamente assimilando tudo.
Quando acabou e Helena se virou, um pouco mais recomposta, a médica perguntou:

"É sua mãe?"
Foi a última vez que alguém perguntou.


Nils Frahm – Unter (Official Music Video) from Erased Tapes on Vimeo.

sábado, outubro 09, 2010

Marina

"Quero-lhe partir a cara de cada vez que ela me fala, de cada vez que ela comenta uma coisa qualquer minha no facebook, de cada vez que recebo uma mensagem comunitária em que ela fala à bebé.
"Puka munina gota munto de ti, nunhé?"
Quero-lhe ir à cara, pronto, doutor, é isso, quero-lhe partir aquele focinho."

"Hmmmm"

Marina enervava-se e constrangia-se sempre com as vocalizações sem palavras do psicólogo. Que raio é hmmm?!!

"Quer dizer, doutor, eu não lhe quero bater, não tenho interesse nenhum em chegar a vias de facto. Mas muitas vezes, quando estou sozinha, imagino que lhe dou um par de estalos e as coisas que gostava de lhe dizer."

"Hmmmm"

Outra vez o hmmm. Marina enervou-se novamente, sem verbalizar o quanto a  incomodava aquela atitude neutra do terapeuta.

"Sinto que está tensa, Marina."

Finalmente! Aleluia! Cinquenta euros de consulta que não eram só para ouvir gemer e grunhir e ver acenar com a cabeça e bufar!

"Hmmmmmm"

Ora prova lá do teu próprio remédio, a ver se gostas ó doutor!, pensou com os seus botões.

O terapeuta sorriu, mexeu-se na cadeira, ajustando a sua posição, inclinou-se para ela e perguntou, olhando-a directamente nos olhos:

"Fale-me dessa situação."

Marina, incrédula no que estava a acontecer e com menos que confiança que nunca nessa treta da psicoterapia desatou de forma emocionada a descrever como o processo terapêutico e a neutralidade do psicólogo a irritavam, como ela nunca sabia o que ele estava a pensar, como não sabia o que ele estava a perguntar e muito menos o que responder a maior parte das vezes. E ela, por seu turno dizia tudo o que lhe passava pela cabeça, sem restrições; ela não tinha segredos para ele. E que acabava por não perceber muito bem o que é que andava para ali a fazer se ele não lhe dizia nunca merda - desculpe doutor - coisa nenhuma, se não lhe dava qualquer solução.

"Então porque é que volta?"

Ora, este espertinho estava-se a habilitar, realmente. Então ela a pagar-lhe 100€ por mês e o gajo pergunta assim sem mais nem menos porque é que ela volta? E se ela percebe que não precisa de voltar? E se ela decide mudar de terapeuta? Ou melhor, passar para um psiquiatra que ao menos sempre lhe dá medicamentos e é um médico a sério? Que filho da puta.

Mas permaneceu em choque; depois de uns momentos sem conseguir articular palavra, Marina responde:

"Oh doutor, francamente..."

"Sim?"

Marina não tinha uma resposta para aquela pergunta. Não tinha. Pelo menos nada que fosse coerente com a explosão anti-psicologia que acabara de ter.

E o gajo em silêncio, imperturbável.

"Porque isto me ajuda." disse finalmente e em voz sumida.

"Como assim?" perguntou neutralmente o terapeuta.

"Porque saio daqui aliviada. Parece que me tiraram um peso de cima. Porque lhe digo a si o que não tenho coragem de dizer a mais ninguém. Mesmo que o doutor não me diga coisa nenhuma relativamente à forma como devo agir. Eu sei que a terapia me faz falta e sei que estou melhor. Sei que penso mais claramente depois de falar consigo."

"Hmmmmm. E em relação à sua amiga?"

"Amiga? Mas ela não é minha amiga!" - parou e reflectiu no que acabara de dizer "ela não é minha amiga"

"Ela não é minha amiga. É só uma pessoa que eu conheço" disse novamente como se quisesse cimentar a recém-descoberta verdade.

"Hmmmmm"

"Ora nem mais, então ela não me devia conseguir afectar desta maneira, não é?"


(a situação pelos olhos de Hugo em http://personifixar.blogspot.com/2010/11/hugo.html)

terça-feira, outubro 05, 2010

Marta

Nunca gostara de beijos de língua até ele aparecer. Nunca tinha deixado ninguém beijá-la daquela forma. Porque um beijo de língua é quase mais que uma penetração. Na verdade, um beijo de língua é uma penetração. Uma penetração para a qual não existe preservativo.

Encostou-se à janela enquanto considerava se sempre se ia masturbar ou não. Tramado ter-se lembrado desta coisa dos beijos de língua. É que se uma pessoa se pode satisfazer a si mesma na genitália, não há nada que chegue a um beijo de língua quando se está só.

Acabou o cigarro e fechou a janela.

Marta tinha uma auto-estima elevada e acima de tudo expectativas extraordinariamente rigorosas relativamente a si mesma. E por arrastamento, relativamente às pessoas com quem se relacionava intimamente.

Perdoava quase tudo aos amigos mas era incrivelmente severa consigo mesma e com os seus namorados. Como se lhes fosse vedado cometerem erros.

Marta não era má pessoa, simplesmente sempre lhe haviam enchido a cabeça de normas rígidas e protocolos. de expectativas. Sem nunca se lembrarem de lhe explicar que a vida também pode ser simples e descomplicada. Que não precisava de atingir níveis de sucesso extraordinário para ser aceite e ser amada e ser feliz.

E começava a duvidar se algum dia realmente poderia ser feliz, já que acreditava que a doçura e a ternura são como a fruta doce do verão: se não se entregam na altura delas e ficam guardadas dentro de um sítio quente como é o coração humano, azedam e apodrecem. ou então o coração arrefece como forma de se adaptar ao facto de não lhe adiantar criar mais amor, para não cheirar a bafio e ganhar bicharada.

Marta tinha horror a tornar-se uma mulher azeda, mesquinha e fria por não dar o seu amor na altura dele, ainda que esse outrem que não estivesse dentro das suas normas criteriosas e opressoras.

Saiu da marquise e dirigiu-se ao quarto. E decidiu que ainda hoje haveria de fazer ambas as coisas: dar-se a si mesma um eficiente orgasmo e beijar alguém, ainda que fosse sem amor. E enquanto procurava o dildo, enviou uma mensagem a Joel, a quem finalmente decidira dar uma oportunidade.

"Que se lixe" - disse para si mesma - "vai dar asneira, mas só se vive uma vez."

E entregou-se ao seu próprio prazer sem culpas e sem barreiras.

domingo, outubro 03, 2010

Teresinha

Teresinha Vilaverde era a menina bonita da cidade homónima.

Corpo fino, cabelo disciplinado, traços perfeitos e simétricos no rosto. Possuidora de uma elegância de bailarina e dotes culinários primorosos que conjugava com uma elevada inteligência uma admirável capacidade de se organizar e de levar a cabo os projectos em que se metia, com brio, brilho e animação.

A sua família era antiga e próspera na terra, conhecidos e respeitados por todos, de algum poder económico e de forte presença nos eventos socio-culturais locais e mesmo nos nacionais de menor impacto.

Sempre tinha sido a menina mais popular da sua turma, a querida dos professores e auxiliares de escola. Tinha ganho prémios de matemática, feito recitais de ballet, vestida de anjinho nas procissões, declamado poemas de turma no dia da mãe, colaborado com arte e perícia nas festas da associação recreativa local.

Os seus pretendentes locais eram inúmeros e Teresinha fazia suspirar um amplo leque de cohabitantes da pequena cidade, sendo aparentemente inacessível a qualquer deles.

No seu refúgio clandestino, em Braga, Teresinha gostava de ficar no silêncio com Albano, nos momentos de cumplicidade sem mais comunicação além de estar ali. E era nesses momentos que era mais terna, onde dizia mais sem falar, porque a ausência de palavras, a satisfação por estar naquele sítio, no momento em pura fruição fazia-a querer dar-lhe tudo quanto tinha, como se fosse a única forma de agradecer a sorte de estarem ambos ali, ambos felizes, ambos em paz a fazer as suas coisas. Sem expectativas nem fasquias. Companheiros de cama e de livros, de café e de cigarros, de músicas e de debate.

Recordava-se bem dos homens que a tentavam impressionar com a sua inteligência ou intimidá-la com a sua altivez, todos sem sucesso, todos falhados nessa tentativa vã.

Lembrava-se de não querer ninguém, de não permitir que ninguém tocasse a sua vida perfeita. Até aparecer Albano.

Albano compreendera sem saber que Teresinha não era de se impressionar, era de se comer às dentadas. E fora assim que o forasteiro, sem se dar conta de como nem porquê conquistara imediatamente a menina perfeita e inatingível da terra.



quarta-feira, setembro 29, 2010

Carminho

16 anos. Olhos azuis. Corpo frágil. Voz meiguinha. Ar sonhador. Quer ser artista e educadora de infância. Agora talvez enfermeira.

Carminho dorme no quarto do IPO, mas hoje os seus olhos movem-se mais por baixo das pálpebras fechadas. Querem que elas se abram, que seja manhã, que seja amanhã muito depressa. como fazem as crianças na véspera de Natal.

No seu "rapid eye movement", sonha com saídas à noite, com primeiras bebidas e primeiras experiências, sonha com o Rafael, o rapaz bonito que se sentava ao seu lado na Escola, com a Escola que detestava e agora almeja, sonha com uma tarde de verão passada à beira rio, sonha com a Universidade, sonha com uma festa de família na quinta, com os primos todos e o avô a dar-lhes banho de mangueira no quintal, sonha com os cães, sonha com a praia.

Antes de ir dormir o médico deu-lhe a boa nova que as análises estavam boas e que esta, à partida, seria a sua última dose de quimioterapia. Que no dia seguinte podia ir para casa.

Carminho não sabe se está mais feliz pelo fim do suplício, dos tratamentos que a põem gorda e careca, dos exames muito dolorosos, de ter de usar quase sempre máscara, de vomitar, de ter as unhas esfareladas e impossíveis de pintar. ou se está mais feliz pelo novo fôlego que a sua vida agora vai tomar. (porque aquilo que sente é exactamente isso: que agora pode respirar de novo, de peito cheio. e bebe o ar às golfadas.)

Mas de uma coisa tem a certeza: ninguém a pára agora que o mundo é seu, todo seu para conquistar.

E ela sente-se bem.

Jaime

Esperou por ela lá fora, apesar de estar frio e de ele estar de t-shirt. O vício do tabaco que ele deixara novamente continuava a ser seu amigo porque continuava a dar-lhe um pretexto inócuo para as conversas a sós que lhe permitiam os momentos de intimidade (ainda que platónica) porque ele tanto ansiava com Célia.

Jaime não era um homem romântico. Era uma daquelas pessoas a quem vida deu tantos encontrões que a dolência era o seu estado natural e não esperava dos outros mais do que companhia: sabia que podia contar consigo e consigo apenas. Era pragmático e racional. Não tinha esperanças sobre a sua realização pessoal em termos amorosos, mas não era por isso que deixava de tentar. Por uma questão de pensamento lógico e probabilístico: quanto mais tentasse maior era a sua probabilidade de algum dia acertar. E sempre ia "mandando umas".

Sentou-se na cadeira de plástico e deixou-se maravilhar secretamente pelo espectáculo que era aquela pequena e delgada mulher. Quase preferia não intervir nas conversas para poder aproveitar e usufruir de cada gota de inteligência, humor e sarcasmo do seu discurso, cada movimento gracioso, cada sorriso, cada toque ainda que ao de leve.

Via-lhe as qualidades tão claramente como os defeitos. e gostava de tudo.

Gostava tanto da sua competitividade desproporcionada como dos caracóis dos seus cabelos. Gostava tanto da sua capacidade de análise e comentários sempre em cheio como da sua aparatosa falta de tacto.

Célia, infelizmente, não era nem poderia nunca ser sua.

Ah, Jaime lamentava este facto tão profundamente! Ter a pessoa certa ao alcance da mão, da voz, do olhar e não poder chegar-lhe. Saber que se sentia tão vivo na sua presença e não poder prolongar para sempre essa sensação.

Sentia-se revoltado e traído - mais uma vez - pela vida e pela sua sorte madrasta.

Mas enquanto trabalhassem juntos poderia sempre servir-se do seu estatuto de colega simpático e amigo de ocasião para continuar a tê-la na sua vida e para sorver cada gotinha da sua essência que lhe fosse dado conhecer.

E era este facto, muito mais que o factor económico que faziam as noites em claro de Jaime quando se lembrava que o seu contrato acabava em menos de um mês e ainda não se sabia se ele iria permanecer na empresa. Mas que provavelmente não.


quinta-feira, setembro 23, 2010

Nina

 "Chocolate ou café? Chocolate, Marieta, que amarga já é a vida o quanto baste."

Sentou-se na cadeira da cabeleireira e ficou imóvel enquanto sentia a fria tinta de cabelo pintar-lhe a alma de outra cor.

Não lhe apetecia ler uma revista, mas a meia hora da praxe para a tinta fazer efeito fizeram-na pegar numa revista de fofocas.

A imagem de uma desconhecida, filha de um qualquer empresário de Vila Verde que o acompanhava numa festa coberta pela publicação deu-lhe no olho.

Unhas curtas com verniz cor de rosa carregado.

Nina não tinha o hábito de pintar as unhas por estas serem curtas e por dar trabalho. Mas aquela imagem não conforme agradou-lhe.

So what se ela não tinha unhas compridas? So what se ela se marimbasse para a ideia que cabelos aos caracóis têm mesmo de ser compridos? So what?

"Cortamos as pontas como de costume, Nina?", perguntou diligentemente Marieta.
"Não, Marieta, quero cortar mais curto, pelo queixo. Surpreenda-me. E já agora faço a manicure. Verniz vermelho."

Cortou o cabelo e pintou de outra cor. Pintou as unhas. Comprou um batom vermelho.

Mudou a disposição das mobílias na casa. Deitou fora tudo o que não estava em condições e fez  uma pilha de coisas que já não queria, para oferecer.

Passou uma semana a dormir no sofá.

Percebeu que já tinha deprimido além do razoável, durante tempo demais. Renasceu e fez-se à vida, disposta a perceber como era a estar na pele desta reencarnação de si mesma. 

Era uma gaivota.



domingo, setembro 19, 2010

Léon

Tomou banho e pôs o perfume de que ela gostava. Escolheu a roupa criteriosamente: as calças que haviam comprado juntos, os sapatos que ela elogiara, o pullover que ela lhe oferecera.

Tinha feito a barba devagar e meticulosamente. Não queria que a cara picasse de forma alguma e sabia que ela tinha daquelas peles sensíveis que acusavam imediatamente o contacto. Já se haviam rido cumplicemente à conta da forma como o queixo e o nariz dela ficavam vermelhos depois de um par de beijos. Ele adorava como a sua falsa timidez a fazia corar, como ela lhe piscava o olho a meio de uma conversa, como se o beijasse levemente sem lhe tocar, da sua teatralidade, da forma como ela o tomava inteiro.

Os olhos dele brilhavam só de pensar na sua amada e sentia o seu peito palpitar com a perspectiva de estar com ela.

Ela era perfeita, pelo menos para ele. Riam-se das mesmas piadas, gostavam da mesma música, tinham sonhos parecidos. 

Mas as coisas não iam bem.

De há uns tempos para cá discutiam mais e ele sentia-a mais distante. E quanto mais distante, mais a tentava desesperadamente agarrar, sem se aperceber que o amor é como a areia fina, se o tentarmos apertar muito, ele foge-nos por entre os dedos.

Ela cumprimentava-o mais friamente, recusava a sua mão, reagia bruscamente. Implicava com ele nos detalhes mais irrisórios, pelas decisões que tomava e pela forma como rapidamente voltava atrás com um qualquer comentário de insatisfação da sua parte.

Ela não estava satisfeita e ele estava perdido, perdido. Não sabia o que mais fazer para lhe agradar. Desesperava-se pensando nas surpresas que lhe fazer, nos presentes que lhe podia dar, nas palavras de amor para a amansar.

Preocupava-se tanto com o que fazia em relação a ela que começou a perder-se de vista, deixou de saber bem quem era e o que queria e começou a não ser mais do que um eco daquilo que Léon achava que ela queria num homem.

Pedia conselhos aos amigos.

E quanto mais se esforçava, pior era.

Mas a ideia de ser deixado, de estar sem ela era insuportável, porque era ela a sua razão de ser, o seu fiel da balança, a bússola por onde ele tomava as suas decisões, a outra metade da sua laranja.

Naquele dia, ela já o esperava zangada no café. Ele tinha-se atrasado por entre todos os seus preparos para lhe agradar. E ela odiava esperar.

Léon sentou-se diminuído na mesa do café que escolhera de propósito porque era famoso pelas tartes de maracujá, as favoritas da namorada. 

Em meros 10 minutos e com duas simples chávenas de café por testemunhas, ela acabou a relação. 

Léon seria capaz de jurar que sentiu o seu coração literalmente partir nesse momento, sem se aperceber que, de facto, aquela era a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido.


sexta-feira, setembro 17, 2010

Alba

Decidiu que só queria mais uma noite com ele, enquanto punha as lentes de contacto em frente ao espelho. Só mais uma noite e depois acabou.

Só. mais. uma. noite.

Alba pintou-se e saiu da casa de banho. Escolheu um soutien rendado e bonito para usar por baixo do decote generoso que ia vestir hoje.

Pôs os sapatos de salto fininho e alto que deixavam dois dedos dos pés à mostra.

Alba desejava-o, mas mais que nada queria ser desejada. Queria que ele quisesse mais uma e outra e outra noite com ela. E queria apenas mais uma noite com ele nestas condições. Ele não lhe interessava, com toda a honestidade. Não era homem para ela, de todo. Mas o seu ego exigia-lhe que fosse inesquecível para ele. E que ele a recordasse sempre com carinho e saudade, como a mulher que ele não conseguiu cativar.

Alba tinha uma sensualidade que era notória não só pelo à vontade com que falava de sexo, mas também pela forma como exibia o peito bonito e redondo em decotes generosos que usava de forma igualmente descomplexada.

Divertia-a chocar os outros de forma subtil, quando já tinham posto a sua atitude cool e moderna e não podiam voltar atrás para deixar cair o queixo como lhes apetecia com as coisas que dizia e os assuntos que puxava perguntando o que lhe apetecia sem alardes e com muita naturalidade. E era perita neste exercício. Gostava de dizer palavras como "broche" e "mamas", fazer trejeitos com a boca quando falava de coisas que tinha claras, de tratar todos os temas como coisas que dominava.

O ar sério e controlado que usava na maior parte do tempo e que consolidava com uma capacidade argumentativa e atitude responsável, colocavam-na acima de quaisquer suspeitas, deixando-a livre para cometer as suas loucuras ocasionais nos locais mais extravagantes e com parceiros muitas vezes inusitados.

Via o sexo de forma mais desprendida que a maioria das mulheres, ou pelo menos era assim que falava das suas aventuras e conquistas com as amigas, referindo a ausência de expectativas de um contacto posterior, de uma atenção no dia seguinte.

Mas o facto é que um pedacinho de si se quebrava de cada vez que uma das suas aventuras provava não ser mais do que um momento isolado no tempo a nunca mais se repetir, tal como previamente acordado.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Célia

Levantou-se da cama devagar, como se ainda estivesse a sonhar e pensou no que tinha para fazer durante o dia. E pensou que gostaria de não existir. Que estava morta por dentro. Podre, aos 26 anos.

Deixou a cama desfeita e passou pela roupa amontoada na cadeira. viu o lixo aglutinado, suplicando que o levasse ao balde e fez de conta que não percebeu.

Entrou na banheira e tomou um banho prolongado, como se lavasse a alma. Saiu do banho e achou-se feia, inamável. E quase que quis chorar por um momento.

Mas não tinha tempo.

Pintou-se e vestiu-se, por esta ordem. preparou-se para sair de casa.

Tirou uma maçã do frigorífico. Pensou que tinha de limpar a casa com urgência.

Não encontrava as chaves para poder sair de casa e ir trabalhar. Encontrou-as no meio da tralha que tinha trazido do supermercado e não tinha arrumado.

Sentia-se mecânica, uma sonâmbula acordada. Anestesiada para a vida. Queria ter mais emoção, fazer mais coisas. Mas já levava aquela vida há tanto tempo que já nem sabia como. como se de estar tanto tempo a olhar para o sol não conseguisse identificar as sombras onde se refugiar.

Por vezes dava-se conta de uma oportunidade de sair da sua rotina, de um amor, ou de simplesmente fazer algo diferente. Nessas situações ou tinha medo e não aproveitava ou então não se dava conta senão depois de ser já tarde demais do que lhe tinha passado ao lado.

Conduzindo sozinha pensava amiúde "e se eu deixasse o carro ir, não fizesse a curva?". Depois pensava nos pais e tinha pena deles. que não mereciam que ela fizesse uma coisa dessas.

Tinha horror àquilo em que achava que se estava a tornar e acreditava que nunca poderia ser feliz. aos 26 anos.


terça-feira, setembro 14, 2010

Albano

Ele amava-a com um amor cego e dependente, embora percebesse que ela o estava a destruir. Queria afasta-se dela, libertar-se desta relação, mas ela estava como estivera sempre lá para ele: acessível, sem culpabilizações e sempre pronta para o levar a mais um voo sem lhe cobrar nada, aparentemente.

Era ela a presença contínua e unificadora da sua vida. Companheira dos maus momentos, elemento fundamental nos encontros com os amigos, quem o felicitava nos eventos a celebrar, quem lhe fazia companhia nos filmes em casa ou nos serões vazios, quem o acolhia nos momentos de solidão e quem o acompanhava nas suas aventuras.

Lembrava-se de a ter sempre ao seu lado, única amiga constante a quem permitia entrar no âmago sua intimidade, fazer parte de si inteiramente.
Queria-a, amava-a e ao mesmo tempo tinha-lhe raiva pelas coisas que lhe tomava em troca desta falsa relação em que ambos se consumiam por inteiro. Sabia que ela era uma vampira, que ia afastar todas as outras pessoas de si, que acabaria por o destruir, por deixá-lo só e na miséria se nada fizesse.

Mas ele amava-a! Amava-a! 

Como pode uma pessoa escolher afastar-se assim de um amor? Por motivos racionais?!!

Não pode. Não pode. Não pode.

Tomou os comprimidos e disse um “até já” suspirado à bebida que o agarrava, viciante.

segunda-feira, setembro 13, 2010

Sapo

Olhou-o como fazem as mulheres quando sabem que têm poder absoluto sobre um homem. e tocou-o intencionalmente com a palma da mão de forma prolongada no ombro enquanto empurrava levemente o peso do seu corpo até o fazer roçar.

Adalmiro estremeceu e sorriu, rendido como sempre. Lançou-lhe um ar apaixonado e disse "então como queres fazer? De certeza que não preferes antes ir dar uma volta de carro?"

Respondeu de forma afectada e teatral "Sotôr! Por quem me toma! Você sabe que eu não faço nada dessas coisas!"

"Não fazes, mas bem podias fazer. E olha que eu levava-te ao céu."


À ideia de Adalmiro vinha sempre a inocência, encanto e profundidade da obra de Exupery "O Principezinho", quando sentia o seu coração bater daquela forma inusitada, perante a sua presença.

Suspirou. Sentia-se sempre um pouco tonto, a cabeça mais leve quando estavam juntos, e uma sensação de felicidade tão grande, que era difícil de explicar. O seu coração batia tão de força e com tanto ritmo que se tornava difícil prestar atenção a mais o que quer que fosse. mesmo à conversa.

Mas sabia que a relação era impossível. Que não era correspondido. Achava que isso se devia ao facto de ele ser "um sapo". e que os sapos, digam o que disserem as histórias infantis, não se misturam com a realeza.


Um dia, ao passar pela porta do supermercado, Adalmiro viu, mas não quis acreditar. As mesmas mãos que o roçavam provocadoramente em contextos públicos, a enxotar uma pedinte estrangeira com despeito cru, ódio até.

Incrédulo e seguro de que vira mal, mas ainda em choque, o coração de Adalmiro parou por um momento.

Nesse momento, o cérebro de Adalmiro assimilou o que ouvia, sem a confusão sinfónica do batimento cardíaco.

O coração de Adalmiro bateria cada vez mais baixinho e devagar, à medida que as palavras entravam perfurantes como facas de cristal na sua cabeça nos meses seguintes. Palavras negras de intolerância, xenofobia, soberba e falta de compaixão e humanidade. Contos de vinganças mesquinhas, de humilhações alheias. De ódio. de superioridade perante todos e de poder absoluto e mesquinho. De maldade.

Até que um dia, Adalmiro olhou Carlos como se o vira pela primeira vez. E finalmente percebeu: "ele acha-se um príncipe, sem se dar conta que não passa de um sapo."

Mas não se deu conta que aquilo que tornava a relação de ambos impossível se mantinha, porque o inverso era também verdade.


domingo, setembro 12, 2010

Júlio

Sismou com ela porque lhe lembrava uma outra mulher e também se chamava Marta.

Júlio era um homem zangado, frustrado com a sua vida. Achava-se mal empregue, achava que não lhe davam o devido valor, que o que fazia valia muito mais do que lhe pagavam e lhe reconheciam. E era contra o sistema. Tinha uma palavra a dizer sobre quase todos os assuntos que lhe lançassem mesmo sem querer. Sentia-se uma boa alma num mundo de cabrões, mas estava disposto a morder um pouco de volta.

Com as mulheres o seu charme advinha em parte da forma segura e mesmo algo convencida com que dizia uma série bem treinada de argumentos contra e a favor vários assuntos, nomeadamente "as mulheres", "a Igreja Católica", "a Economia Mundial", e "a Vida em geral".

Defendia as suas opiniões apaixonadamente e estava habituado a que, apesar de a sua aparência não ser propriamente muito estética, as mulheres não fossem capazes ou não quisessem discutir com ele e que em relativamente pouco tempo sucumbissem ao seu arrebatamento e audácia.

E "as mulheres" eram um assunto acerca do qual Júlio tinha várias teorias que defendia de forma altiva e segura.

Sismou com Marta Pinheiro naquela noite porque tinha o cabelo da mesma cor que a Marta que conhecera em tempos tinha, com os mesmos caracóis. E foi claramente uma sisma, porque quando chegou à discoteca Júlio já tinha uma loira mais ou menos fisgada, que "andava a cozinhar em lume brando". Mas aquela tipa chamava-se Marta e tinha uma figura e altura relativamente semelhantes à que lhe tinha "ficado atravessada".

Pagou-lhe uma bebida e percebeu que ela já estava muito bêbeda e um pouco drogada. Tentou conversar um pouco com ela, (inconscientemente?) à espera que ela o frustrasse e expusesse as suas estratégias e os buracos nas suas teorias como fazia a outra, sem dó nem piedade e rindo-se na cara dele.

Mas naquela noite Marta Pinheiro não estava em condições de discutir nada. Em pouco mais de uma hora dirigiam-se ao carro dele. E vinte minutos depois estava quebrada a magia. Deu por si a reforçar a sua teoria de que na verdade as mulheres querem é alguém que as use e que lhes mostre autoridade, que essa treta de igualdade, libertação e feminismo era tudo uma grande fachada e que no fundo, no fundo, elas queriam era alguém que as protegesse e tomasse conta delas, de forma não muito diferente das crianças ou dos cães.

E de repente sentiu uma certa repulsa e uma grande vontade de ir para sua casa, tomar um banho e dormir sozinho na sua cama de solteiro. Limpou-se e foi fumar um cigarro para perto do capô do carro, à espera que "a gaja" se arranjasse para poder ir embora.

Acabou o cigarro e pisou-o, expirando o fumo pelo nariz. Ela ainda não tinha saído.
Abriu uma das portas da frente e perguntou "se estava tudo bem", como quem pergunta "porque é que ainda não saíste". Ela disse que sim, mas que estava um bocado mal disposta. Ponderou se a levava a casa, mas achou que não lhe apetecia de todo estar mais 15 minutos que fosse perto dela. Estava cansado e queria ir dormir. Ajudou-a a chamar um taxi e foi-se embora com a boca a saber a amargo. e o pensamento que se Deus existe é um cabrão pior que os outros todos porque não só o fez amar uma mulher que era uma cabra, como ela lhe deu com os pés depois de lhe dar falsas esperanças, como ainda a seguir foi meter aquela puta no caminho dele para ele se lembrar da primeira e lhe atormentar o juizo com a ideia da gaja que ele não comeu e não agarrou apesar de tudo o que investiu nela. e do que estava disposto a abdicar e mudar por ela.

sábado, setembro 11, 2010

Amália

Amália casou aos 18 anos, grávida de Carlos. Mas não casou obrigada, casou por amor. Da mesma forma que se entregou por amor.

David era um homem hábil, inteligente, empreendedor, charmoso. Tinha-a cortejado de forma persistente, insistente e audaz. Enfrentou a sua mãe que não era pera doce. Fez a coisa certa e assumiu o filho que geraram. Tudo por ela.

E ela amava-o tão profundamente.

Amava-o e perdoava-o pelas saídas tardias a meio da semana, pelos desaparecimentos ao fim de semana, pelos telefonemas que interceptava ocasionalmente, pelos seus acessos de raiva, por lhe levantar a mão de vez em quando, por pôr menos dinheiro em casa do que devia, por a recriminar injustamente das atenções que recebia.

Mantinha a casa sempre impecável, todas as camisas passadas. Carlos estava sempre cuidado e disciplinado e Amália preparava pratos da revista teleculinária para o jantar que decorava primorosamente. Recebia-o em casa sempre bem penteada, com a roupa modesta mas de muito bom gosto que expunha na sua figura esbelta e que combinava criativamente com as poucas jóias que tinha.

E pensava no que poderia fazer para ser um pouco mais perfeita. Era a mulher mais bonita do bairro, delicada, feminina, uma verdadeira fada do lar. Era uma esposa dedicada e uma mãe extremosa.

Não percebia o que David via noutras mulheres que ela não lhe podia dar. E esforçava-se diariamente por tornar o seu casamento e a sua casa o mais perfeitos possível. Dizia para si mesma, "é homem, e este é o instinto dele: caçar. Mas volta sempre para mim que sou a mulher dele".

David partir-lhe-ia o coração várias vezes durante a sua vida. Quando a deixou por outra, quando desfilou com várias pelos circulos de amigos de ambos, quando assentou com a mais ordinária de todas, quando descurou o filho de ambos, quando lhe vinha chorar no colo dos infortunios da sua vida, sem nunca mais ser dela.

Mas ela nunca mais deixou de ser dele e nunca mais quis ninguém.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Romeu

Ele era poesia, ela era concretização.

Ela era obsessiva e controladora. Anotava mentalmente cada uma das suas falhas para lhas cuspir na cara num momento de discussão. Tinha a mania das caixas e das limpezas. Queria tomar todas as decisões das suas vidas, sozinha, embora encobrindo com uma capa de "O que é que tu achas, Romeu? Eu acho que....", sem pausa para respirar. Usava-o como um artefacto a gabar perante os outros, a corrigir, reparar e polir em particular.

E no mais íntimo da sua alma, ele percebia isso.

Começaram a namorar quando tinham 16 anos e o que começou num namorico inconsequente de secundário viria a derivar numa relação duradoura de mais de 10 anos e possivelmente de toda a vida.

Romeu era sensível e bondoso. Era bonito e inteligente. Era paciente e poderia ter sido feliz com quase qualquer pessoa porque era uma daquelas pessoas raras com a capacidade de se adaptarem a quase toda a gente e lhes tolerarem as manias.

Aprendeu com ela a fazer contas a tudo, incluindo às pessoas, a notar quem lhe ligava no aniversário, quem lhe dava um presente e o que isso custava, mas não o fazia por hábito. Aprendeu a não tomar decisões, porque quando não eram as opções dela custavam-lhe a sua tranquilidade e vinham-lhe invariavelmente bater na cara em lembretes periódicos em qualquer conversa independentemente do contexto. Adquiriu o hábito de pensar a longo prazo e de se ajustar aos planos alheios. Aprendeu a conformar-se com a vida. Aprendeu que não tinha capacidade de fazer as coisas concretizarem-se, a menos que fosse à boleia da da capacidade dela de executar coisas. Ela que tomava conta dele e que se assegurava que ambos estavam protegidos e tinham um futuro.

Lá no fundo, no fundo, também sabia que isso não era exactamente verdade. Mas que importava?

A vida era o que era e ele não estava arrependido. E 15 anos é muito tempo. Ele não precisava das suas asas, tinha as dela. às vezes assaltava-o a ideia de estar a deitar fora a sua vida e os seus sonhos. E nessas alturas embalava a ansiedade com a verdade irrefutável que já não sabia viver sem ela ou sem a vida e os planos elaborados para o longo prazo que ambos executavam escrupulosamente como se fosse uma obra de engenharia.

quinta-feira, setembro 09, 2010

D. Guilhermina

Desce pesada as escadas a pé. Reclama do elevador, que cheira mal, que não funciona, que o Sr. Joaquim que é o administrador do condomínio devia fazer alguma coisa sobre o assunto, mas não faz.

"Sabe, menina", diz-me ela muito séria, "anda meio perdido, a cabeça dele anda cheia. Parece que se está a separar da mulher".

Guilhermina Cruz é uma mulher de cerca de 60 anos, viúva, cristã praticante. Tem dois filhos, Justina, de 42 anos, com quem está zangada há meses e de quem tem duas netas e Adalmiro, de 38, divorciado, que vive com ela. Tem um ar dócil e determinado e vive no prédio há mais de 30 anos.

Ajudo-a com os sacos e descemos para a rua.

"A menina está bonita."
"Obrigada, D. Guilhermina. A senhora também."
"Está sozinha no seu andar?"
"Estou. Porquê?"
"É. Uma das vizinhas casou há pouco e está-se a mudar. Era já o que se chama uma "solteirona", casou e vai viver com o marido, um rapaz novo, trabalha nas finanças."

Esperamos pelo autocarro.

"Ia com estes sacos tão pesados por aí adiante, D.Guilhermina?" pergunto em tom de reprovação. "Tem de ter cuidado consigo."
"Ia, menina, tem de ser. O meu filho é uma jóia de moço, e ele que não sonhe que eu ando assim com pesos. Mas eu preciso mesmo de fazer uns recados e ainda vou podendo."
"A menina trabalha em quê?"
"Eu estudo, D. Guilhermina."
"Ah, mas não é como a outra estudantada que para aí anda. É atinadinha. Já tivemos muitos problemas no prédio por causa de uns jovens que moravam no 2.º andar. Era festas todos os dias. Tivemos de chamar a polícia algumas vezes. Uma pouca vergonha. Muito bem..."

Chega o autocarro e ela sorri abertamente enquanto se senta no lugar mais perto de mim e me conta das suas peripécias de quando era mais nova, de como protege o filho, seu orgulho e glória, e de como ele a trata bem. Pena que esteja sozinho. Como ela queria uma nora que garantisse que ele ficaria bem cuidado depois de ela morrer!

Chega a paragem dela e sai, depois de se despedir de mim com entusiasmo.

A D. Guilhermina é uma mulher perspicaz e hábil. Percebe as subtilezas do ambiente que a circunda pelos indícios mais pequenos e é inteligente ao ponto de se fazer subestimar para assim ter acesso a mais informação.

Sorrio com a satisfação que demonstra ao contar-me as cusquices apimentadas, rejubilando com as novidades que me dá a mim, que pareço vinda de outro planeta e nunca sei de nada.

E de como sempre faz campanha sobre o filho quando me vê. À medida que a vejo afastar-se, pergunto-se se de todo não se apercebe, se apenas finge não saber, ou se está em negação.

É que o filho da D. Guilhermina é gay.