quarta-feira, setembro 29, 2010

Carminho

16 anos. Olhos azuis. Corpo frágil. Voz meiguinha. Ar sonhador. Quer ser artista e educadora de infância. Agora talvez enfermeira.

Carminho dorme no quarto do IPO, mas hoje os seus olhos movem-se mais por baixo das pálpebras fechadas. Querem que elas se abram, que seja manhã, que seja amanhã muito depressa. como fazem as crianças na véspera de Natal.

No seu "rapid eye movement", sonha com saídas à noite, com primeiras bebidas e primeiras experiências, sonha com o Rafael, o rapaz bonito que se sentava ao seu lado na Escola, com a Escola que detestava e agora almeja, sonha com uma tarde de verão passada à beira rio, sonha com a Universidade, sonha com uma festa de família na quinta, com os primos todos e o avô a dar-lhes banho de mangueira no quintal, sonha com os cães, sonha com a praia.

Antes de ir dormir o médico deu-lhe a boa nova que as análises estavam boas e que esta, à partida, seria a sua última dose de quimioterapia. Que no dia seguinte podia ir para casa.

Carminho não sabe se está mais feliz pelo fim do suplício, dos tratamentos que a põem gorda e careca, dos exames muito dolorosos, de ter de usar quase sempre máscara, de vomitar, de ter as unhas esfareladas e impossíveis de pintar. ou se está mais feliz pelo novo fôlego que a sua vida agora vai tomar. (porque aquilo que sente é exactamente isso: que agora pode respirar de novo, de peito cheio. e bebe o ar às golfadas.)

Mas de uma coisa tem a certeza: ninguém a pára agora que o mundo é seu, todo seu para conquistar.

E ela sente-se bem.

Jaime

Esperou por ela lá fora, apesar de estar frio e de ele estar de t-shirt. O vício do tabaco que ele deixara novamente continuava a ser seu amigo porque continuava a dar-lhe um pretexto inócuo para as conversas a sós que lhe permitiam os momentos de intimidade (ainda que platónica) porque ele tanto ansiava com Célia.

Jaime não era um homem romântico. Era uma daquelas pessoas a quem vida deu tantos encontrões que a dolência era o seu estado natural e não esperava dos outros mais do que companhia: sabia que podia contar consigo e consigo apenas. Era pragmático e racional. Não tinha esperanças sobre a sua realização pessoal em termos amorosos, mas não era por isso que deixava de tentar. Por uma questão de pensamento lógico e probabilístico: quanto mais tentasse maior era a sua probabilidade de algum dia acertar. E sempre ia "mandando umas".

Sentou-se na cadeira de plástico e deixou-se maravilhar secretamente pelo espectáculo que era aquela pequena e delgada mulher. Quase preferia não intervir nas conversas para poder aproveitar e usufruir de cada gota de inteligência, humor e sarcasmo do seu discurso, cada movimento gracioso, cada sorriso, cada toque ainda que ao de leve.

Via-lhe as qualidades tão claramente como os defeitos. e gostava de tudo.

Gostava tanto da sua competitividade desproporcionada como dos caracóis dos seus cabelos. Gostava tanto da sua capacidade de análise e comentários sempre em cheio como da sua aparatosa falta de tacto.

Célia, infelizmente, não era nem poderia nunca ser sua.

Ah, Jaime lamentava este facto tão profundamente! Ter a pessoa certa ao alcance da mão, da voz, do olhar e não poder chegar-lhe. Saber que se sentia tão vivo na sua presença e não poder prolongar para sempre essa sensação.

Sentia-se revoltado e traído - mais uma vez - pela vida e pela sua sorte madrasta.

Mas enquanto trabalhassem juntos poderia sempre servir-se do seu estatuto de colega simpático e amigo de ocasião para continuar a tê-la na sua vida e para sorver cada gotinha da sua essência que lhe fosse dado conhecer.

E era este facto, muito mais que o factor económico que faziam as noites em claro de Jaime quando se lembrava que o seu contrato acabava em menos de um mês e ainda não se sabia se ele iria permanecer na empresa. Mas que provavelmente não.


quinta-feira, setembro 23, 2010

Nina

 "Chocolate ou café? Chocolate, Marieta, que amarga já é a vida o quanto baste."

Sentou-se na cadeira da cabeleireira e ficou imóvel enquanto sentia a fria tinta de cabelo pintar-lhe a alma de outra cor.

Não lhe apetecia ler uma revista, mas a meia hora da praxe para a tinta fazer efeito fizeram-na pegar numa revista de fofocas.

A imagem de uma desconhecida, filha de um qualquer empresário de Vila Verde que o acompanhava numa festa coberta pela publicação deu-lhe no olho.

Unhas curtas com verniz cor de rosa carregado.

Nina não tinha o hábito de pintar as unhas por estas serem curtas e por dar trabalho. Mas aquela imagem não conforme agradou-lhe.

So what se ela não tinha unhas compridas? So what se ela se marimbasse para a ideia que cabelos aos caracóis têm mesmo de ser compridos? So what?

"Cortamos as pontas como de costume, Nina?", perguntou diligentemente Marieta.
"Não, Marieta, quero cortar mais curto, pelo queixo. Surpreenda-me. E já agora faço a manicure. Verniz vermelho."

Cortou o cabelo e pintou de outra cor. Pintou as unhas. Comprou um batom vermelho.

Mudou a disposição das mobílias na casa. Deitou fora tudo o que não estava em condições e fez  uma pilha de coisas que já não queria, para oferecer.

Passou uma semana a dormir no sofá.

Percebeu que já tinha deprimido além do razoável, durante tempo demais. Renasceu e fez-se à vida, disposta a perceber como era a estar na pele desta reencarnação de si mesma. 

Era uma gaivota.



domingo, setembro 19, 2010

Léon

Tomou banho e pôs o perfume de que ela gostava. Escolheu a roupa criteriosamente: as calças que haviam comprado juntos, os sapatos que ela elogiara, o pullover que ela lhe oferecera.

Tinha feito a barba devagar e meticulosamente. Não queria que a cara picasse de forma alguma e sabia que ela tinha daquelas peles sensíveis que acusavam imediatamente o contacto. Já se haviam rido cumplicemente à conta da forma como o queixo e o nariz dela ficavam vermelhos depois de um par de beijos. Ele adorava como a sua falsa timidez a fazia corar, como ela lhe piscava o olho a meio de uma conversa, como se o beijasse levemente sem lhe tocar, da sua teatralidade, da forma como ela o tomava inteiro.

Os olhos dele brilhavam só de pensar na sua amada e sentia o seu peito palpitar com a perspectiva de estar com ela.

Ela era perfeita, pelo menos para ele. Riam-se das mesmas piadas, gostavam da mesma música, tinham sonhos parecidos. 

Mas as coisas não iam bem.

De há uns tempos para cá discutiam mais e ele sentia-a mais distante. E quanto mais distante, mais a tentava desesperadamente agarrar, sem se aperceber que o amor é como a areia fina, se o tentarmos apertar muito, ele foge-nos por entre os dedos.

Ela cumprimentava-o mais friamente, recusava a sua mão, reagia bruscamente. Implicava com ele nos detalhes mais irrisórios, pelas decisões que tomava e pela forma como rapidamente voltava atrás com um qualquer comentário de insatisfação da sua parte.

Ela não estava satisfeita e ele estava perdido, perdido. Não sabia o que mais fazer para lhe agradar. Desesperava-se pensando nas surpresas que lhe fazer, nos presentes que lhe podia dar, nas palavras de amor para a amansar.

Preocupava-se tanto com o que fazia em relação a ela que começou a perder-se de vista, deixou de saber bem quem era e o que queria e começou a não ser mais do que um eco daquilo que Léon achava que ela queria num homem.

Pedia conselhos aos amigos.

E quanto mais se esforçava, pior era.

Mas a ideia de ser deixado, de estar sem ela era insuportável, porque era ela a sua razão de ser, o seu fiel da balança, a bússola por onde ele tomava as suas decisões, a outra metade da sua laranja.

Naquele dia, ela já o esperava zangada no café. Ele tinha-se atrasado por entre todos os seus preparos para lhe agradar. E ela odiava esperar.

Léon sentou-se diminuído na mesa do café que escolhera de propósito porque era famoso pelas tartes de maracujá, as favoritas da namorada. 

Em meros 10 minutos e com duas simples chávenas de café por testemunhas, ela acabou a relação. 

Léon seria capaz de jurar que sentiu o seu coração literalmente partir nesse momento, sem se aperceber que, de facto, aquela era a melhor coisa que lhe poderia ter acontecido.


sexta-feira, setembro 17, 2010

Alba

Decidiu que só queria mais uma noite com ele, enquanto punha as lentes de contacto em frente ao espelho. Só mais uma noite e depois acabou.

Só. mais. uma. noite.

Alba pintou-se e saiu da casa de banho. Escolheu um soutien rendado e bonito para usar por baixo do decote generoso que ia vestir hoje.

Pôs os sapatos de salto fininho e alto que deixavam dois dedos dos pés à mostra.

Alba desejava-o, mas mais que nada queria ser desejada. Queria que ele quisesse mais uma e outra e outra noite com ela. E queria apenas mais uma noite com ele nestas condições. Ele não lhe interessava, com toda a honestidade. Não era homem para ela, de todo. Mas o seu ego exigia-lhe que fosse inesquecível para ele. E que ele a recordasse sempre com carinho e saudade, como a mulher que ele não conseguiu cativar.

Alba tinha uma sensualidade que era notória não só pelo à vontade com que falava de sexo, mas também pela forma como exibia o peito bonito e redondo em decotes generosos que usava de forma igualmente descomplexada.

Divertia-a chocar os outros de forma subtil, quando já tinham posto a sua atitude cool e moderna e não podiam voltar atrás para deixar cair o queixo como lhes apetecia com as coisas que dizia e os assuntos que puxava perguntando o que lhe apetecia sem alardes e com muita naturalidade. E era perita neste exercício. Gostava de dizer palavras como "broche" e "mamas", fazer trejeitos com a boca quando falava de coisas que tinha claras, de tratar todos os temas como coisas que dominava.

O ar sério e controlado que usava na maior parte do tempo e que consolidava com uma capacidade argumentativa e atitude responsável, colocavam-na acima de quaisquer suspeitas, deixando-a livre para cometer as suas loucuras ocasionais nos locais mais extravagantes e com parceiros muitas vezes inusitados.

Via o sexo de forma mais desprendida que a maioria das mulheres, ou pelo menos era assim que falava das suas aventuras e conquistas com as amigas, referindo a ausência de expectativas de um contacto posterior, de uma atenção no dia seguinte.

Mas o facto é que um pedacinho de si se quebrava de cada vez que uma das suas aventuras provava não ser mais do que um momento isolado no tempo a nunca mais se repetir, tal como previamente acordado.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Célia

Levantou-se da cama devagar, como se ainda estivesse a sonhar e pensou no que tinha para fazer durante o dia. E pensou que gostaria de não existir. Que estava morta por dentro. Podre, aos 26 anos.

Deixou a cama desfeita e passou pela roupa amontoada na cadeira. viu o lixo aglutinado, suplicando que o levasse ao balde e fez de conta que não percebeu.

Entrou na banheira e tomou um banho prolongado, como se lavasse a alma. Saiu do banho e achou-se feia, inamável. E quase que quis chorar por um momento.

Mas não tinha tempo.

Pintou-se e vestiu-se, por esta ordem. preparou-se para sair de casa.

Tirou uma maçã do frigorífico. Pensou que tinha de limpar a casa com urgência.

Não encontrava as chaves para poder sair de casa e ir trabalhar. Encontrou-as no meio da tralha que tinha trazido do supermercado e não tinha arrumado.

Sentia-se mecânica, uma sonâmbula acordada. Anestesiada para a vida. Queria ter mais emoção, fazer mais coisas. Mas já levava aquela vida há tanto tempo que já nem sabia como. como se de estar tanto tempo a olhar para o sol não conseguisse identificar as sombras onde se refugiar.

Por vezes dava-se conta de uma oportunidade de sair da sua rotina, de um amor, ou de simplesmente fazer algo diferente. Nessas situações ou tinha medo e não aproveitava ou então não se dava conta senão depois de ser já tarde demais do que lhe tinha passado ao lado.

Conduzindo sozinha pensava amiúde "e se eu deixasse o carro ir, não fizesse a curva?". Depois pensava nos pais e tinha pena deles. que não mereciam que ela fizesse uma coisa dessas.

Tinha horror àquilo em que achava que se estava a tornar e acreditava que nunca poderia ser feliz. aos 26 anos.


terça-feira, setembro 14, 2010

Albano

Ele amava-a com um amor cego e dependente, embora percebesse que ela o estava a destruir. Queria afasta-se dela, libertar-se desta relação, mas ela estava como estivera sempre lá para ele: acessível, sem culpabilizações e sempre pronta para o levar a mais um voo sem lhe cobrar nada, aparentemente.

Era ela a presença contínua e unificadora da sua vida. Companheira dos maus momentos, elemento fundamental nos encontros com os amigos, quem o felicitava nos eventos a celebrar, quem lhe fazia companhia nos filmes em casa ou nos serões vazios, quem o acolhia nos momentos de solidão e quem o acompanhava nas suas aventuras.

Lembrava-se de a ter sempre ao seu lado, única amiga constante a quem permitia entrar no âmago sua intimidade, fazer parte de si inteiramente.
Queria-a, amava-a e ao mesmo tempo tinha-lhe raiva pelas coisas que lhe tomava em troca desta falsa relação em que ambos se consumiam por inteiro. Sabia que ela era uma vampira, que ia afastar todas as outras pessoas de si, que acabaria por o destruir, por deixá-lo só e na miséria se nada fizesse.

Mas ele amava-a! Amava-a! 

Como pode uma pessoa escolher afastar-se assim de um amor? Por motivos racionais?!!

Não pode. Não pode. Não pode.

Tomou os comprimidos e disse um “até já” suspirado à bebida que o agarrava, viciante.

segunda-feira, setembro 13, 2010

Sapo

Olhou-o como fazem as mulheres quando sabem que têm poder absoluto sobre um homem. e tocou-o intencionalmente com a palma da mão de forma prolongada no ombro enquanto empurrava levemente o peso do seu corpo até o fazer roçar.

Adalmiro estremeceu e sorriu, rendido como sempre. Lançou-lhe um ar apaixonado e disse "então como queres fazer? De certeza que não preferes antes ir dar uma volta de carro?"

Respondeu de forma afectada e teatral "Sotôr! Por quem me toma! Você sabe que eu não faço nada dessas coisas!"

"Não fazes, mas bem podias fazer. E olha que eu levava-te ao céu."


À ideia de Adalmiro vinha sempre a inocência, encanto e profundidade da obra de Exupery "O Principezinho", quando sentia o seu coração bater daquela forma inusitada, perante a sua presença.

Suspirou. Sentia-se sempre um pouco tonto, a cabeça mais leve quando estavam juntos, e uma sensação de felicidade tão grande, que era difícil de explicar. O seu coração batia tão de força e com tanto ritmo que se tornava difícil prestar atenção a mais o que quer que fosse. mesmo à conversa.

Mas sabia que a relação era impossível. Que não era correspondido. Achava que isso se devia ao facto de ele ser "um sapo". e que os sapos, digam o que disserem as histórias infantis, não se misturam com a realeza.


Um dia, ao passar pela porta do supermercado, Adalmiro viu, mas não quis acreditar. As mesmas mãos que o roçavam provocadoramente em contextos públicos, a enxotar uma pedinte estrangeira com despeito cru, ódio até.

Incrédulo e seguro de que vira mal, mas ainda em choque, o coração de Adalmiro parou por um momento.

Nesse momento, o cérebro de Adalmiro assimilou o que ouvia, sem a confusão sinfónica do batimento cardíaco.

O coração de Adalmiro bateria cada vez mais baixinho e devagar, à medida que as palavras entravam perfurantes como facas de cristal na sua cabeça nos meses seguintes. Palavras negras de intolerância, xenofobia, soberba e falta de compaixão e humanidade. Contos de vinganças mesquinhas, de humilhações alheias. De ódio. de superioridade perante todos e de poder absoluto e mesquinho. De maldade.

Até que um dia, Adalmiro olhou Carlos como se o vira pela primeira vez. E finalmente percebeu: "ele acha-se um príncipe, sem se dar conta que não passa de um sapo."

Mas não se deu conta que aquilo que tornava a relação de ambos impossível se mantinha, porque o inverso era também verdade.


domingo, setembro 12, 2010

Júlio

Sismou com ela porque lhe lembrava uma outra mulher e também se chamava Marta.

Júlio era um homem zangado, frustrado com a sua vida. Achava-se mal empregue, achava que não lhe davam o devido valor, que o que fazia valia muito mais do que lhe pagavam e lhe reconheciam. E era contra o sistema. Tinha uma palavra a dizer sobre quase todos os assuntos que lhe lançassem mesmo sem querer. Sentia-se uma boa alma num mundo de cabrões, mas estava disposto a morder um pouco de volta.

Com as mulheres o seu charme advinha em parte da forma segura e mesmo algo convencida com que dizia uma série bem treinada de argumentos contra e a favor vários assuntos, nomeadamente "as mulheres", "a Igreja Católica", "a Economia Mundial", e "a Vida em geral".

Defendia as suas opiniões apaixonadamente e estava habituado a que, apesar de a sua aparência não ser propriamente muito estética, as mulheres não fossem capazes ou não quisessem discutir com ele e que em relativamente pouco tempo sucumbissem ao seu arrebatamento e audácia.

E "as mulheres" eram um assunto acerca do qual Júlio tinha várias teorias que defendia de forma altiva e segura.

Sismou com Marta Pinheiro naquela noite porque tinha o cabelo da mesma cor que a Marta que conhecera em tempos tinha, com os mesmos caracóis. E foi claramente uma sisma, porque quando chegou à discoteca Júlio já tinha uma loira mais ou menos fisgada, que "andava a cozinhar em lume brando". Mas aquela tipa chamava-se Marta e tinha uma figura e altura relativamente semelhantes à que lhe tinha "ficado atravessada".

Pagou-lhe uma bebida e percebeu que ela já estava muito bêbeda e um pouco drogada. Tentou conversar um pouco com ela, (inconscientemente?) à espera que ela o frustrasse e expusesse as suas estratégias e os buracos nas suas teorias como fazia a outra, sem dó nem piedade e rindo-se na cara dele.

Mas naquela noite Marta Pinheiro não estava em condições de discutir nada. Em pouco mais de uma hora dirigiam-se ao carro dele. E vinte minutos depois estava quebrada a magia. Deu por si a reforçar a sua teoria de que na verdade as mulheres querem é alguém que as use e que lhes mostre autoridade, que essa treta de igualdade, libertação e feminismo era tudo uma grande fachada e que no fundo, no fundo, elas queriam era alguém que as protegesse e tomasse conta delas, de forma não muito diferente das crianças ou dos cães.

E de repente sentiu uma certa repulsa e uma grande vontade de ir para sua casa, tomar um banho e dormir sozinho na sua cama de solteiro. Limpou-se e foi fumar um cigarro para perto do capô do carro, à espera que "a gaja" se arranjasse para poder ir embora.

Acabou o cigarro e pisou-o, expirando o fumo pelo nariz. Ela ainda não tinha saído.
Abriu uma das portas da frente e perguntou "se estava tudo bem", como quem pergunta "porque é que ainda não saíste". Ela disse que sim, mas que estava um bocado mal disposta. Ponderou se a levava a casa, mas achou que não lhe apetecia de todo estar mais 15 minutos que fosse perto dela. Estava cansado e queria ir dormir. Ajudou-a a chamar um taxi e foi-se embora com a boca a saber a amargo. e o pensamento que se Deus existe é um cabrão pior que os outros todos porque não só o fez amar uma mulher que era uma cabra, como ela lhe deu com os pés depois de lhe dar falsas esperanças, como ainda a seguir foi meter aquela puta no caminho dele para ele se lembrar da primeira e lhe atormentar o juizo com a ideia da gaja que ele não comeu e não agarrou apesar de tudo o que investiu nela. e do que estava disposto a abdicar e mudar por ela.

sábado, setembro 11, 2010

Amália

Amália casou aos 18 anos, grávida de Carlos. Mas não casou obrigada, casou por amor. Da mesma forma que se entregou por amor.

David era um homem hábil, inteligente, empreendedor, charmoso. Tinha-a cortejado de forma persistente, insistente e audaz. Enfrentou a sua mãe que não era pera doce. Fez a coisa certa e assumiu o filho que geraram. Tudo por ela.

E ela amava-o tão profundamente.

Amava-o e perdoava-o pelas saídas tardias a meio da semana, pelos desaparecimentos ao fim de semana, pelos telefonemas que interceptava ocasionalmente, pelos seus acessos de raiva, por lhe levantar a mão de vez em quando, por pôr menos dinheiro em casa do que devia, por a recriminar injustamente das atenções que recebia.

Mantinha a casa sempre impecável, todas as camisas passadas. Carlos estava sempre cuidado e disciplinado e Amália preparava pratos da revista teleculinária para o jantar que decorava primorosamente. Recebia-o em casa sempre bem penteada, com a roupa modesta mas de muito bom gosto que expunha na sua figura esbelta e que combinava criativamente com as poucas jóias que tinha.

E pensava no que poderia fazer para ser um pouco mais perfeita. Era a mulher mais bonita do bairro, delicada, feminina, uma verdadeira fada do lar. Era uma esposa dedicada e uma mãe extremosa.

Não percebia o que David via noutras mulheres que ela não lhe podia dar. E esforçava-se diariamente por tornar o seu casamento e a sua casa o mais perfeitos possível. Dizia para si mesma, "é homem, e este é o instinto dele: caçar. Mas volta sempre para mim que sou a mulher dele".

David partir-lhe-ia o coração várias vezes durante a sua vida. Quando a deixou por outra, quando desfilou com várias pelos circulos de amigos de ambos, quando assentou com a mais ordinária de todas, quando descurou o filho de ambos, quando lhe vinha chorar no colo dos infortunios da sua vida, sem nunca mais ser dela.

Mas ela nunca mais deixou de ser dele e nunca mais quis ninguém.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Romeu

Ele era poesia, ela era concretização.

Ela era obsessiva e controladora. Anotava mentalmente cada uma das suas falhas para lhas cuspir na cara num momento de discussão. Tinha a mania das caixas e das limpezas. Queria tomar todas as decisões das suas vidas, sozinha, embora encobrindo com uma capa de "O que é que tu achas, Romeu? Eu acho que....", sem pausa para respirar. Usava-o como um artefacto a gabar perante os outros, a corrigir, reparar e polir em particular.

E no mais íntimo da sua alma, ele percebia isso.

Começaram a namorar quando tinham 16 anos e o que começou num namorico inconsequente de secundário viria a derivar numa relação duradoura de mais de 10 anos e possivelmente de toda a vida.

Romeu era sensível e bondoso. Era bonito e inteligente. Era paciente e poderia ter sido feliz com quase qualquer pessoa porque era uma daquelas pessoas raras com a capacidade de se adaptarem a quase toda a gente e lhes tolerarem as manias.

Aprendeu com ela a fazer contas a tudo, incluindo às pessoas, a notar quem lhe ligava no aniversário, quem lhe dava um presente e o que isso custava, mas não o fazia por hábito. Aprendeu a não tomar decisões, porque quando não eram as opções dela custavam-lhe a sua tranquilidade e vinham-lhe invariavelmente bater na cara em lembretes periódicos em qualquer conversa independentemente do contexto. Adquiriu o hábito de pensar a longo prazo e de se ajustar aos planos alheios. Aprendeu a conformar-se com a vida. Aprendeu que não tinha capacidade de fazer as coisas concretizarem-se, a menos que fosse à boleia da da capacidade dela de executar coisas. Ela que tomava conta dele e que se assegurava que ambos estavam protegidos e tinham um futuro.

Lá no fundo, no fundo, também sabia que isso não era exactamente verdade. Mas que importava?

A vida era o que era e ele não estava arrependido. E 15 anos é muito tempo. Ele não precisava das suas asas, tinha as dela. às vezes assaltava-o a ideia de estar a deitar fora a sua vida e os seus sonhos. E nessas alturas embalava a ansiedade com a verdade irrefutável que já não sabia viver sem ela ou sem a vida e os planos elaborados para o longo prazo que ambos executavam escrupulosamente como se fosse uma obra de engenharia.

quinta-feira, setembro 09, 2010

D. Guilhermina

Desce pesada as escadas a pé. Reclama do elevador, que cheira mal, que não funciona, que o Sr. Joaquim que é o administrador do condomínio devia fazer alguma coisa sobre o assunto, mas não faz.

"Sabe, menina", diz-me ela muito séria, "anda meio perdido, a cabeça dele anda cheia. Parece que se está a separar da mulher".

Guilhermina Cruz é uma mulher de cerca de 60 anos, viúva, cristã praticante. Tem dois filhos, Justina, de 42 anos, com quem está zangada há meses e de quem tem duas netas e Adalmiro, de 38, divorciado, que vive com ela. Tem um ar dócil e determinado e vive no prédio há mais de 30 anos.

Ajudo-a com os sacos e descemos para a rua.

"A menina está bonita."
"Obrigada, D. Guilhermina. A senhora também."
"Está sozinha no seu andar?"
"Estou. Porquê?"
"É. Uma das vizinhas casou há pouco e está-se a mudar. Era já o que se chama uma "solteirona", casou e vai viver com o marido, um rapaz novo, trabalha nas finanças."

Esperamos pelo autocarro.

"Ia com estes sacos tão pesados por aí adiante, D.Guilhermina?" pergunto em tom de reprovação. "Tem de ter cuidado consigo."
"Ia, menina, tem de ser. O meu filho é uma jóia de moço, e ele que não sonhe que eu ando assim com pesos. Mas eu preciso mesmo de fazer uns recados e ainda vou podendo."
"A menina trabalha em quê?"
"Eu estudo, D. Guilhermina."
"Ah, mas não é como a outra estudantada que para aí anda. É atinadinha. Já tivemos muitos problemas no prédio por causa de uns jovens que moravam no 2.º andar. Era festas todos os dias. Tivemos de chamar a polícia algumas vezes. Uma pouca vergonha. Muito bem..."

Chega o autocarro e ela sorri abertamente enquanto se senta no lugar mais perto de mim e me conta das suas peripécias de quando era mais nova, de como protege o filho, seu orgulho e glória, e de como ele a trata bem. Pena que esteja sozinho. Como ela queria uma nora que garantisse que ele ficaria bem cuidado depois de ela morrer!

Chega a paragem dela e sai, depois de se despedir de mim com entusiasmo.

A D. Guilhermina é uma mulher perspicaz e hábil. Percebe as subtilezas do ambiente que a circunda pelos indícios mais pequenos e é inteligente ao ponto de se fazer subestimar para assim ter acesso a mais informação.

Sorrio com a satisfação que demonstra ao contar-me as cusquices apimentadas, rejubilando com as novidades que me dá a mim, que pareço vinda de outro planeta e nunca sei de nada.

E de como sempre faz campanha sobre o filho quando me vê. À medida que a vejo afastar-se, pergunto-se se de todo não se apercebe, se apenas finge não saber, ou se está em negação.

É que o filho da D. Guilhermina é gay.