sexta-feira, outubro 15, 2010

Gilberto

Chegou a casa às 4h05 da manhã e foi cumprimentado pelo cão carente. Pousou o casaco nas costas da cadeira da sala. Pegou no portátil para ver quem estava online e olhou à sua volta. Por todo lado sentia a presença dela, até ser quase palpável. Estava exausto além do aceitável, mas não conseguia ir dormir.

Olhou para o sofá vazio e pensou que daria um braço para poder ir deitar-se na cama e ter lá alguém à sua espera. Não queria necessariamente sexo, não era isso. Aquilo por que ele daria um braço era a intimidade muda de poder entrar numa cama onde outra pessoa estivesse a dormir, sem ser estranhado e se poder aninhar com familiaridade. Alguém com aquele grau de confiança e intimidade em que uma pessoa não precisa de pedir licença para se tocar e beijar; mesmo num estado de semi-conscência ou insconsciência como é o sono.

Gilberto e a agora ex-namorada tinham terminado a sua relação havia dois meses.

Depois da separação, Gilberto estava também mais contacto consigo mesmo. Relembrara coisas que gostava de fazer e de que se abstinha porque sabia que não eram da preferência dela. Conhecera gente mais interessante. Ia a sítios mais in e cool. Ia ao cinema, a concertos, a exposições, viajava e saía à noite.

Mas, desde então, nunca mais tinha conseguido dormir confortavelmente. Saia todas as noites porque não suportava a solidão das noites em casa, porque tudo o fazia pensar nela e na falta que ela lhe fazia. Porque se sentia incompleto, vazio.

Lembrava com saudade as pequenas coisas, que com o passar do tempo se tornavam mais douradas e ofuscavam os motivos da separação. Dos serões no sofá a ver televisão que não interessava a ninguém. De encomendar uma pizza e ver um filme no sofá com o cão a pedinchar  mimos e um pedaço do que quer que fosse que comessem. De telefonar a saber se era preciso alguma coisa de que se tivesse a esquecer do supermercado. De cozinhar para ela e partilhar as descobertas culinárias de que eram ambos fãs. De ter a quem telefonar por qualquer motivo ou a quem contar o dia correu mal ou os seus dilemas pessoais sem o julgar. Da companhia no sono. De fazer parte de algo maior que ele próprio.

Gilberto e Natália tinham temperaturas corporais muito diferentes, ela tinha sempre frio e ele suava sempre de calor. Depois de uns tempos em que Natália se constipou um mês seguido e em que ele não conseguia dormir sem se destapar completamente, optaram por ter dois edredões individuais na cama: um leve para ele e um de penas para ela. Esta diferença fisiológica impedia-os de dormirem toda a noite abraçados, mas não impedia a sua cumplicidade e dormiam de "pés dados". Com o passar do tempo e à medida que se afastavam na sua relação, Natália começou a dormir de costas para ele e abraçada à almofada. Racionalmente insensível a mais este pequeno sinal, Gilberto adquirira o hábito de dormir com as costas da sua mão nas suas costas numa ligação quase umbilical, subconscientemente declarando-se seu, pedindo-lhe que não o deixasse.

Mas ela deixara-o e agora a casa ficara vazia, mas ainda cheia de si, e os vestígios da sua presença passada tornavam a sua ausência quase palpável. Insuportável.

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