quarta-feira, junho 20, 2012

Carmen

Carmen levanta-se normalmente às 7 da manhã. Sai da cama, toma banho, veste-se e começa a preparar o pequeno-almoço, depois de chamar os filhos que têm de se levantar para irem para a escola. O marido de Carmen chega à cozinha um pouco depois e trata do resto do pequeno almoço, enquanto Carmen vai ajudar os filhos a prepararem-se para sair. Faz-lhes a lancheira e certifica-se que a roupa que escolheram é adequada às condições atmosféricas do dia e da estação. e que não tem manchas.

Saem de casa e vai para o trabalho. O marido leva as crianças para a escola. Vai almoçar a casa, aproveitando sempre para adiantar alguma tarefa doméstica e regressa ao trabalho até às 17h. Quando sai do emprego, liga aos filhos ou ao marido a saber se já estão em casa e se está tudo bem e depois vai tratar da mãe para o Hospital Psiquiátrico até às 19h30. Quando chega a casa, faz o jantar e janta com a família. Arruma a cozinha. O marido colabora nas tarefas domésticas, mas é mais lento que ela. Fica a secar a loiça enquanto ela vai ver a roupa suja que há e verifica se é suficiente para fazer uma máquina de roupa à noite quando tem o plano de eletricidade mais barato. Se houver, ela põe a roupa a secar e no dia seguinte levanta-se 20 minutos mais cedo, para estender a roupa com o marido.

Depois, vai ver se os filhos fizeram o trabalho de casa e o que estão a aprender na escola, pergunta-lhes da sua vida. Se estiverem com dificuldades ajuda-os.

Às 22h30, põe os filhos na cama. Carmen e o marido ajudam as crianças a vestir o pijama, certificam-se que lavaram os dentes e aconchegam-lhes os cobertores.

Daí até mais ou menos às 23h30, sentam-se a ver um pouco de televisão, ou a analisar as contas e certificarem-se que está tudo bem com as coisas do banco. às vezes discutem o seu dia, antes do dia novo que se aproxima, igual ao anterior.

Falam das crianças, das contas, dos trabalhos e Carmen fala muitas vezes da mãe que tem Alzheimer há anos e que há anos que não a reconhece. Que ela vê deteriorar-se em cada dia no corpo da mulher que a criou e que ela ama incondicionalmente.

A mãe de Carmen não reconhece ninguém, embora tal como com os doentes comatosos, haja uma certa tendência para querer ver um sinal de uma qualquer recuperação. Por vezes, Carmen e o irmão comentam que lhes pareceu que num dado momento a mãe olhou para um deles como se os conhecesse, mas que depois ela nunca diz nem faz nada que confirme essa suspeita.

Eva, a mãe, foi em tempos conhecida pela sua boa memória. Era incapaz de esquecer um nome, uma cara, uma data de aniversário. Um ressentimento. Um favor. Era a pessoa a quem se perguntava quem era fulano para se ficar a saber tudo sobre a sua vida e sobre os marcos da família do próprio. Era a pessoa que sabia as receitas de cor com as quantidades muito certas. Que sabia os números de telefone de toda a gente.

E um dia, ainda nova, quando os filhos tinham 18 e 20 anos respetivamente, começou a apagar a memória aos poucos, primeiro com factos, depois com o sítio onde deixava as coisas, depois com as pessoas amigas, depois com os locais onde se movimentava habitualmente, esquecendo até o caminho para a casa de banho de sua casa, e por fim a própria família.

Antes de ser internada, dizia às pessoas que conhecia pela primeira vez e que eram simpáticas para ela que lamentava, mas não se lembrava delas porque estava doente. E as pessoas entre a confusão e a compaixão, respondiam que não fazia mal. Quando começou a acordar a meio da noite na cama onde dormira 30 anos, assustada porque não sabia onde estava nem quem eram aquelas pessoas e tinha muito medo deles, o médico sugeriu que internassem Eva: o peso que assumia na vida da família começava a pôr em risco a própria família.

Foi com um sentimento de culpa enorme e um pesar muito grande que Carmen e o irmão acederam aos conselhos do médico que tratou de todas as diligências para que Eva ficasse internada rapidamente.

Passados quase dez anos desse dia, Eva não era nem uma sombra da mulher espantosa e afetuosa que fora um dia. Já não comia sozinha, nem falava. Há anos que não usava a casa de banho e a maior parte do tempo passava-o agitando-se como uma criança perdida no mato ou um animal. Nos últimos tempos, tiveram de lhe amarrar as mãos, porque se começara a morder muito e a arrancar os cabelos.

E todos os dias, Carmen passava pelo menos duas horas com o corpo da pessoa que um dia fora a sua mãe, e que ela acreditava que ainda ali residia algures, mas que se afastava muito e quase nunca se percebia.

Dava-lhe de comer pacientemente, beijava-a a e mimava-a com uma dedicação exemplar. E chorava todos os dias ao sair do hospital porque a mãe continuava a não a reconhecer e estava pior a cada dia. Por vezes, pensava se não era melhor que Deus levasse a mãe para junto Dele onde ela poderia novamente ser ela e a filha poderia deixar de a ver a piorar todos os dias; depois, batia-se a si mesma e dizia, repreendendo-se "Deus me perdoe", enquanto voltava para a vida que não pára pelas tragédias pessoais. e para o mundo que exigia que ela continuasse o seu trabalho profissional, de mãe, de esposa, de mulher, de irmã, de amiga.

Um dia a seguir ao outro. Levantar às sete e às sete menos vinte nos dias em que há roupa. Cuidar da família, da casa, da mãe, do emprego. Ter tempo para fazer festas de aniversário para os filhos, carapins para os bebés das amigas que engravidavam, o IRS, a costura simples, o assado ao domingo, as caminhadas que o médico mandou, ir às reuniões de pais na escola dos filhos e vir de lá sempre com alguma tarefa para ajudar numa iniciativa: recolher tampas de garrafa, fazer bolinhos para reunir dinheiro para a festa de natal.

E carregar dentro de si, como se fossem siamesas, a alegria das coisas mundanas e da família querida a quem tanto se dedicava, e a tristeza de ver a mãe, não menos querida, que cada vez estava mais longe e que cada vez menos reconhecia na deteriorada senhora de idade que cuidava continuada e carinhosamente no Hospital Psiquiátrico, todos os dias.


segunda-feira, junho 18, 2012

Ti Ester

(para a Maria João)

"Desde que ela veio para a cidade, anda mais depressa a moça. Acho que a gente anda mais devagar porque lá na aldeia temos de acompanhar os animais. E uma vaca é um animal que anda devagar. Menos quando é assarapantada. Que uma vaca assarampatada leva tudo à frente. É estendais da roupa, é bancas da fruta, são as couves... Um vaca assarapantada é uma vaca louca. Por isso é que eu não gosto que os catchopos me atormentem a minha Mimosa."

Ti Ester conversava em Lisboa com a vizinha da frente da neta Maria João, arrancando um sorriso à senhora carrancuda e muito ocupada. Tratava-a sem cerimónias e com a simplicidade bruta e meiga de Trás-os-Montes de onde veio para ver a sua neta, doutora, que agora trabalha num hospital da capital.

A Ti Ester é uma mulher pequena, robusta e vergada pelos anos, vestida de preto, com o cabelo apanhado atrás num carrapito feito com uma travessa em tartaruga, de cabelo branco e buço escuro. De lenço preto na cabeça e omnipresente avental à volta da cintura.

A Ti Ester queria saber onde era a feira, porque uma cidade tão grande deve de certeza ter uma feira muito boa, mas a vizinha da frente não sabe, está habituada a ir ao hipermercado.

A Ti Ester acha que esta gente da cidade é toda muito fidalga, porque tem dinheiro para gastar ao desbarato no Continente, quando no mercado as coisas se vendem a bem melhor preço, mas na sua cabeça as pessoas da cidade não compram as mesmas coisas que ela, de certeza, porque de certeza que não têm os mesmos hábitos.

Ela é uma mulher simples. É a primeira vez que vem à cidade grande e veio porque quis vir ajudar a neta, quis vir vê-la e fazer-lhe da sopa que ela gosta, lavar-lhe a roupa, tratar-lhe da casa um bocadinho. Ver como vive a sua secretamente preferida cachopa.

A Ti Ester pode passar horas à janela a fazer tricot, a ouvir a novela e a ralhar com os personagens que se portam mal, a avisar os bons que estão a ser tramados.

Mas a verdade é que a Ti Ester não está habituada a ficar parada. Em casa é ela que trata de tudo; nunca teve mulher a dias e o próprio conceito é-lhe um pouco estranho. Com os seus quase 70 anos, a Ti Ester continua a tratar da horta e das vacas todos os dias, sem pausas nem descansos. Quando a vizinha da Maria João se quer queixar que o governo lhe tirou o subsídio de férias e vai acabar com alguns feriados, a Ti Ester faz-se desentendida e responde sem malícia:

"Férias? As vacas não tiram férias! A vaca não sabe que é domingo ou feriado ou Natal. A vaca todos os dias tem de se alimentar, ordenhar, tratar. E a vaca também não sabe que uma pessoa está doente e sem poder. Eu não percebo estes meninos da cidade que dizem que a vida é dificil porque não vão ter ponte de Carnaval."

Para a Ti Ester o mundo é simples. Trabalha-se para viver, ganha-se para comer e para vestir. Na sua casa sempre se trabalhou mais porque além de comer e vestir sempre se quis dar educação aos meninos e isso é caro. Uma mulher deve saber fazer de tudo em casa, porque quando se fazem as coisas poupa-se muito dinheiro e a vida é difícil, já se sabe.E o dever de uma mulher é apoiar o marido, dar estabilidade em casa para ele poder ganhar muito dinheiro e assim ajudar a família toda.

E apesar desta ideia muito clara e linear do papel que deve desempenhar na vida uma pessoa e em especial uma mulher - que deve ser recatada, asseada e orgulhosa de si, sem o mostrar - Ti Ester sente um orgulho desmesurado da neta que em nada se enquadra no estereótipo tradicional.

A Ti Ester adora a neta que não limpa a casa, que tem muitos namorados e que foi viver para longe da família. Que lhe dá lenços coloridos e lhe pergunta porque não arranja um namorado que já está viúva há tanto tempo. Que a leva a dançar e ver os bailaricos como se também ela fosse uma moça nova.

A Ti Ester que viveu sempre uma vida dura e foi a pessoa que tomou conta de toda a gente, que sabe o seu lugar na vida e no mundo e que é uma mulher simples, adora a neta. E embora ame igualmente as outras que vivem perto dela e lhe são dedicadas, o carinho que sente por Maria João é acrescido pela sua capacidade de quebrar regras e de a levar com ela, de a fazer sentir-se mais nova e ter asas.

E apesar de tudo, a Ti Ester não queria ter vivido uma vida diferente. E mesmo não querendo ofender a sua neta predileta, a verdade é que já tem saudades de casa e todos os dias se pergunta como estarão a cuidar das suas vacas e do seu quintal.

quinta-feira, junho 14, 2012

Luísa

Luísa, de uma mulher mais velha já não se esperam sonhos inocentes e ideias loucas. De uma mulher mais velha já não se espera um amor puro e inocente e cabeça nas nuvens, senão a amorizade consciente e de pés bem assentes no chão.

E Luísa, de quarenta e três anos, tinha sido inocente. ela tinha sido pura. ela tinha sido apanhada de surpresa.

com a idade que tinha.

E sentia-se ridícula. Ridícula no mais puro sentido da palavra. "Ridícula, a. f., que é alvo de risos." Humilhada, traída, espezinhada.

um nada.

Atirou-se de cabeça e estatelou-se no chão após um curtíssimo período de ar.

Mas a vida é um voo que só termina quando se morre.

e os silenciamentos e anulações nunca funcionam por muito tempo.

E Luísa havia de voar de novo até se estatelar sempre e cada vez mais nos seus próprios medos e menos nas coisas que lhe aconteciam. O inferno são os outros, diria Sartre. Mas o seu inferno era ela mesma. Que se empurrava além da sua zona de conforto nas situações de risco e que se repreendia muito duramente, na voz das tias mesquinhas e madrastas, quando as coisas corriam mal.

Quando Luísa se queria mesmo martirizar, dizia a si mesma que tinha muita bagagem emocional, que já tinha passado por demasiado para poder agora ser feliz.

Dizia-se que o peso da sua bagagem era grande.

e que não se podia libertar dela.

E enquanto estava no fundo do poço, Luísa chorava quase até se afogar.

Mas levantava-se invariavelmente e respondia às suas próprias críticas dizendo que ninguém faz grandes viagens sem levar bagagem.

E desta vez não ia ser diferente.

Porque de que serve afinal acumular bagagem, se não for para se viajar cada vez mais longe?

segunda-feira, junho 04, 2012

D. Joaquina

A D. Joaquina é uma mulher fogosa, corpulenta e carismática. É casada com Aristides faz mais de dez anos e foi a sua única namorada.

Aristides é louco pela mulher e a mulher é louca por ele. Formam uma simbiose perfeita em que um não pode estar sem o outro.

Aristides não vive sem a energia e o fogo da mulher, Joaquina não vive sem a calma e a terra do marido.

A energia de Joaquina contagia e atrai mesmo as pessoas que ela não conhece. É uma mulher culta e inteligente com uma voz que se ouve à distância e uma gargalhada inconfundível.

É claro para toda a gente que quem manda na relação do casal é Joaquina. Que é ela que toma as decisões, é ela que tem a última palavra nas discussões, é ela que tem o poder.

Joaquina é a típica mulher mandona. Foi ela escolheu a casa, o nome dos filhos, a roupa que Aristides tem vestida.

E Joaquina é tudo para Aristides, que se sente como quem lhe tenha saído a sorte grande, quando fala na e com a mulher. Ela é mais do que ele tinha alguma vez imaginado que lhe calharia na rifa e ele sente sempre que não sabe o que é que tem ou o que é que faz para que ela continue com ele, quando, na sua perspetiva, ela poderia ter qualquer homem que quisesse.

Aristides é também o homem perfeito para Joaquina em todos os aspetos, menos num.

É que se Joaquina está habituada a mandar e gosta de ser líder em tudo, a verdade é que gostaria de ser dominada na cama.

Joaquina sonha com o dia em que Aristides a prenda contra a parede, fazendo uso da sua força bruta e a beije, com o dia em que a amarre mesmo a sério, que lhe chame nomes, que lhe diga o que fazer. Lhe ponha uma mordaça, a mande calar.

Já tentou abordar o assunto várias vezes.

Uma vez pediu a Aristides que lhe chamasse nomes:

-Chama-me nomes!

Ao que Aristides respondeu surpreendido:

- Mas... FOFINHA! Nomes?? Como assim, nomes?

- Insulta-me Aristides! Insulta-me! Puxa-me o cabelo!

Atónito, a meio do ato, mas querendo agradar à esposa, Aristides reagiu sem jeito dizendo sem convicção "menina má..." e fez-lhe uma festinha no cabelo.

Joaquina fez outras tentativas, pedido-lhe que desse umas palmadas, que a agarrasse com força, mas o marido - um homem corpulento e musculado - tem sempre medo de a magoar: bate-lhe devagarinho, perguntando imediatamente a seguir "magoei-te, fofinha?" e nunca a agarra de forma a que ela não se consiga soltar.

Esta situação, que não deixa de enternecer o coração de Joaquina, deixa-a frustrada porque sente que o marido não lhe dá o que ela quer e fantasia sexualmente.

Aristides até comprou umas algemas numa sex shop numa tentativa de agradar mais à esposa. Mas as algemas eram de plástico e rapidamente Joaquina percebeu que além de francamente frágeis, elas possuíam uma patilha de segurança que lhe permitia libertar-se quando desejasse e que retiravam metade do picante ao jogo erótico.

Assim, na hora H, quando tem dificuldades em atingir o orgasmo, Joaquina lá tem de recorrer à ideia do polícia com ar de mauzão por quem passa todos os dias e que já a admoestou por duas ou três vezes por pequenas infrações ao trânsito.

A última das quais propositadamente cometida.

Joaquina ponderou que poderia pagar uma multa, mas achou que valia bem a pena. E mesmo que fosse presa, podia ainda assim valer a pena, desde que fosse ele a efetuar a detenção e que a revistasse.

A D. Joaquina ama o marido e sente que seria incapaz de o trair, mas na sua cabeça nunca está muito longe a ideia de que, realmente, seria outra coisa fazer amor com algemas de verdade.