segunda-feira, junho 18, 2012

Ti Ester

(para a Maria João)

"Desde que ela veio para a cidade, anda mais depressa a moça. Acho que a gente anda mais devagar porque lá na aldeia temos de acompanhar os animais. E uma vaca é um animal que anda devagar. Menos quando é assarapantada. Que uma vaca assarampatada leva tudo à frente. É estendais da roupa, é bancas da fruta, são as couves... Um vaca assarapantada é uma vaca louca. Por isso é que eu não gosto que os catchopos me atormentem a minha Mimosa."

Ti Ester conversava em Lisboa com a vizinha da frente da neta Maria João, arrancando um sorriso à senhora carrancuda e muito ocupada. Tratava-a sem cerimónias e com a simplicidade bruta e meiga de Trás-os-Montes de onde veio para ver a sua neta, doutora, que agora trabalha num hospital da capital.

A Ti Ester é uma mulher pequena, robusta e vergada pelos anos, vestida de preto, com o cabelo apanhado atrás num carrapito feito com uma travessa em tartaruga, de cabelo branco e buço escuro. De lenço preto na cabeça e omnipresente avental à volta da cintura.

A Ti Ester queria saber onde era a feira, porque uma cidade tão grande deve de certeza ter uma feira muito boa, mas a vizinha da frente não sabe, está habituada a ir ao hipermercado.

A Ti Ester acha que esta gente da cidade é toda muito fidalga, porque tem dinheiro para gastar ao desbarato no Continente, quando no mercado as coisas se vendem a bem melhor preço, mas na sua cabeça as pessoas da cidade não compram as mesmas coisas que ela, de certeza, porque de certeza que não têm os mesmos hábitos.

Ela é uma mulher simples. É a primeira vez que vem à cidade grande e veio porque quis vir ajudar a neta, quis vir vê-la e fazer-lhe da sopa que ela gosta, lavar-lhe a roupa, tratar-lhe da casa um bocadinho. Ver como vive a sua secretamente preferida cachopa.

A Ti Ester pode passar horas à janela a fazer tricot, a ouvir a novela e a ralhar com os personagens que se portam mal, a avisar os bons que estão a ser tramados.

Mas a verdade é que a Ti Ester não está habituada a ficar parada. Em casa é ela que trata de tudo; nunca teve mulher a dias e o próprio conceito é-lhe um pouco estranho. Com os seus quase 70 anos, a Ti Ester continua a tratar da horta e das vacas todos os dias, sem pausas nem descansos. Quando a vizinha da Maria João se quer queixar que o governo lhe tirou o subsídio de férias e vai acabar com alguns feriados, a Ti Ester faz-se desentendida e responde sem malícia:

"Férias? As vacas não tiram férias! A vaca não sabe que é domingo ou feriado ou Natal. A vaca todos os dias tem de se alimentar, ordenhar, tratar. E a vaca também não sabe que uma pessoa está doente e sem poder. Eu não percebo estes meninos da cidade que dizem que a vida é dificil porque não vão ter ponte de Carnaval."

Para a Ti Ester o mundo é simples. Trabalha-se para viver, ganha-se para comer e para vestir. Na sua casa sempre se trabalhou mais porque além de comer e vestir sempre se quis dar educação aos meninos e isso é caro. Uma mulher deve saber fazer de tudo em casa, porque quando se fazem as coisas poupa-se muito dinheiro e a vida é difícil, já se sabe.E o dever de uma mulher é apoiar o marido, dar estabilidade em casa para ele poder ganhar muito dinheiro e assim ajudar a família toda.

E apesar desta ideia muito clara e linear do papel que deve desempenhar na vida uma pessoa e em especial uma mulher - que deve ser recatada, asseada e orgulhosa de si, sem o mostrar - Ti Ester sente um orgulho desmesurado da neta que em nada se enquadra no estereótipo tradicional.

A Ti Ester adora a neta que não limpa a casa, que tem muitos namorados e que foi viver para longe da família. Que lhe dá lenços coloridos e lhe pergunta porque não arranja um namorado que já está viúva há tanto tempo. Que a leva a dançar e ver os bailaricos como se também ela fosse uma moça nova.

A Ti Ester que viveu sempre uma vida dura e foi a pessoa que tomou conta de toda a gente, que sabe o seu lugar na vida e no mundo e que é uma mulher simples, adora a neta. E embora ame igualmente as outras que vivem perto dela e lhe são dedicadas, o carinho que sente por Maria João é acrescido pela sua capacidade de quebrar regras e de a levar com ela, de a fazer sentir-se mais nova e ter asas.

E apesar de tudo, a Ti Ester não queria ter vivido uma vida diferente. E mesmo não querendo ofender a sua neta predileta, a verdade é que já tem saudades de casa e todos os dias se pergunta como estarão a cuidar das suas vacas e do seu quintal.

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