Carmen levanta-se normalmente às 7 da manhã. Sai da cama, toma banho, veste-se e começa a preparar o pequeno-almoço, depois de chamar os filhos que têm de se levantar para irem para a escola. O marido de Carmen chega à cozinha um pouco depois e trata do resto do pequeno almoço, enquanto Carmen vai ajudar os filhos a prepararem-se para sair. Faz-lhes a lancheira e certifica-se que a roupa que escolheram é adequada às condições atmosféricas do dia e da estação. e que não tem manchas.
Saem de casa e vai para o trabalho. O marido leva as crianças para a escola. Vai almoçar a casa, aproveitando sempre para adiantar alguma tarefa doméstica e regressa ao trabalho até às 17h. Quando sai do emprego, liga aos filhos ou ao marido a saber se já estão em casa e se está tudo bem e depois vai tratar da mãe para o Hospital Psiquiátrico até às 19h30. Quando chega a casa, faz o jantar e janta com a família. Arruma a cozinha. O marido colabora nas tarefas domésticas, mas é mais lento que ela. Fica a secar a loiça enquanto ela vai ver a roupa suja que há e verifica se é suficiente para fazer uma máquina de roupa à noite quando tem o plano de eletricidade mais barato. Se houver, ela põe a roupa a secar e no dia seguinte levanta-se 20 minutos mais cedo, para estender a roupa com o marido.
Depois, vai ver se os filhos fizeram o trabalho de casa e o que estão a aprender na escola, pergunta-lhes da sua vida. Se estiverem com dificuldades ajuda-os.
Às 22h30, põe os filhos na cama. Carmen e o marido ajudam as crianças a vestir o pijama, certificam-se que lavaram os dentes e aconchegam-lhes os cobertores.
Daí até mais ou menos às 23h30, sentam-se a ver um pouco de televisão, ou a analisar as contas e certificarem-se que está tudo bem com as coisas do banco. às vezes discutem o seu dia, antes do dia novo que se aproxima, igual ao anterior.
Falam das crianças, das contas, dos trabalhos e Carmen fala muitas vezes da mãe que tem Alzheimer há anos e que há anos que não a reconhece. Que ela vê deteriorar-se em cada dia no corpo da mulher que a criou e que ela ama incondicionalmente.
A mãe de Carmen não reconhece ninguém, embora tal como com os doentes comatosos, haja uma certa tendência para querer ver um sinal de uma qualquer recuperação. Por vezes, Carmen e o irmão comentam que lhes pareceu que num dado momento a mãe olhou para um deles como se os conhecesse, mas que depois ela nunca diz nem faz nada que confirme essa suspeita.
Eva, a mãe, foi em tempos conhecida pela sua boa memória. Era incapaz de esquecer um nome, uma cara, uma data de aniversário. Um ressentimento. Um favor. Era a pessoa a quem se perguntava quem era fulano para se ficar a saber tudo sobre a sua vida e sobre os marcos da família do próprio. Era a pessoa que sabia as receitas de cor com as quantidades muito certas. Que sabia os números de telefone de toda a gente.
E um dia, ainda nova, quando os filhos tinham 18 e 20 anos respetivamente, começou a apagar a memória aos poucos, primeiro com factos, depois com o sítio onde deixava as coisas, depois com as pessoas amigas, depois com os locais onde se movimentava habitualmente, esquecendo até o caminho para a casa de banho de sua casa, e por fim a própria família.
Antes de ser internada, dizia às pessoas que conhecia pela primeira vez e que eram simpáticas para ela que lamentava, mas não se lembrava delas porque estava doente. E as pessoas entre a confusão e a compaixão, respondiam que não fazia mal. Quando começou a acordar a meio da noite na cama onde dormira 30 anos, assustada porque não sabia onde estava nem quem eram aquelas pessoas e tinha muito medo deles, o médico sugeriu que internassem Eva: o peso que assumia na vida da família começava a pôr em risco a própria família.
Foi com um sentimento de culpa enorme e um pesar muito grande que Carmen e o irmão acederam aos conselhos do médico que tratou de todas as diligências para que Eva ficasse internada rapidamente.
Passados quase dez anos desse dia, Eva não era nem uma sombra da mulher espantosa e afetuosa que fora um dia. Já não comia sozinha, nem falava. Há anos que não usava a casa de banho e a maior parte do tempo passava-o agitando-se como uma criança perdida no mato ou um animal. Nos últimos tempos, tiveram de lhe amarrar as mãos, porque se começara a morder muito e a arrancar os cabelos.
E todos os dias, Carmen passava pelo menos duas horas com o corpo da pessoa que um dia fora a sua mãe, e que ela acreditava que ainda ali residia algures, mas que se afastava muito e quase nunca se percebia.
Dava-lhe de comer pacientemente, beijava-a a e mimava-a com uma dedicação exemplar. E chorava todos os dias ao sair do hospital porque a mãe continuava a não a reconhecer e estava pior a cada dia. Por vezes, pensava se não era melhor que Deus levasse a mãe para junto Dele onde ela poderia novamente ser ela e a filha poderia deixar de a ver a piorar todos os dias; depois, batia-se a si mesma e dizia, repreendendo-se "Deus me perdoe", enquanto voltava para a vida que não pára pelas tragédias pessoais. e para o mundo que exigia que ela continuasse o seu trabalho profissional, de mãe, de esposa, de mulher, de irmã, de amiga.
Um dia a seguir ao outro. Levantar às sete e às sete menos vinte nos dias em que há roupa. Cuidar da família, da casa, da mãe, do emprego. Ter tempo para fazer festas de aniversário para os filhos, carapins para os bebés das amigas que engravidavam, o IRS, a costura simples, o assado ao domingo, as caminhadas que o médico mandou, ir às reuniões de pais na escola dos filhos e vir de lá sempre com alguma tarefa para ajudar numa iniciativa: recolher tampas de garrafa, fazer bolinhos para reunir dinheiro para a festa de natal.
E carregar dentro de si, como se fossem siamesas, a alegria das coisas mundanas e da família querida a quem tanto se dedicava, e a tristeza de ver a mãe, não menos querida, que cada vez estava mais longe e que cada vez menos reconhecia na deteriorada senhora de idade que cuidava continuada e carinhosamente no Hospital Psiquiátrico, todos os dias.
1 comentário:
Obrigada minha querida.. *
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