domingo, julho 01, 2012

Márcia, shhhhh

À noite, o som das ondas a bater continua e impiedosamente nas rochas pode ser tão calmante como assustador.

É o som da inevitabilidade da vida, é o som daquilo que não podemos controlar e que é mais poderoso que nós.

A onda bate com força na rocha ou na costa e depois faz "shhhhhhh", como se pedisse desculpa ou silêncio.

Quando o mar não está agitado, quase só se ouve o "shhhhh" ritmado das ondas a recuar, progredindo na praia, se a maré estiver a encher, ou caminhando de volta para o mar alto quando a maré decresce, dançando para cá e para lá no planeta uma salsa devagar.

Pedindo silêncio à costa que erode lentamente em cada pancada de água, com que a seguir a acaricia e lhe pede perdão.

e silêncio.

Shhhhhhh.

A Márcia, de nada adiantava viver no último andar do prédio da linha costeira, com vista para o mar, com mais assoalhadas do que precisava, piano de cauda e empregada interna.

De nada servia ser a esposa modelo, e ir todos os dias ao ginásio. fazer voluntariado e cursos de arranjos florais em Serralves às quintas feiras de tarde. De nada serviam as surpresas que comprava ao marido com o cartão de crédito dele. De nada servia o curso superior em Filosofia e o bom gosto. Participar em chás de caridade no Sheraton da Boavista. Ser bem relacionada.

"O mar enrola na areia / Ninguém sabe o que ele diz / Bate na areia e desmaia / Porque se sente feliz"

E como o mar pode ser temperamental, também o marido de Márcia era imprevisível. A sua vingança contra os atos invisíveis, que ele concebia, imaginava ou inventava que Márcia tinha perpetrado, era cruel, calculada e mesquinha.

Não a marcava nunca.

E pedia-lhe desculpa muitas vezes. Outras vezes, já sabia que ela perdoava mesmo sem ele pedir, porque ela própria inventava justificações para o seu comportamento vil: o trabalho, o stress, o amor demais que sentia por ela e que o cegava e fazia perder a razão e o controlo.

A violência que o Dr. Rui exercia sobre Márcia era tão refinada como a própria Márcia e levara anos a atingir os níveis de perfeição com que a executava. Começara com pequenos reparos às suas ações e aparência, "para bem dela"; passou a críticas e escrutínios rigorosos acerca de todos os seus comportamentos e opções. Em vagas sistemáticas e ritmadas.

E uma vez que a auto-estima dela estava completamente dependente da aprovação do marido, o Dr. Rui assumiu o controlo total.

Como se ela se tivesse tornado no seu projeto privado, o seu bonsai de estimação, que ele modelaria a seu gosto. Cortando fora as partes que não interessavam.

Com o tempo, Márcia foi-se tornando mais e mais maleável, até fazer tudo o que ele queria.

Mas nessa altura já não chegava. Porque Rui tinha-se habituado a mandar e a fazer Márcia sacrificar-se. O seu "melhoramento" já não era o propósito das chantagens, manipulações e humilhações: era o meio com que alimentava o seu ego e a sua relação.

Modelava-a da mesma forma que o mar modela a costa, que conquista e engole se não se colocam paredões nas praias.

Fazendo o mesmo que o mar com as suas ondas. Batendo e pedindo silêncio de seguida. Magoando e pedindo perdão, no ritmo cíclico e intervalado das vagas.

Erodindo-a e invadindo-a progressivamente, de todas as vezes em que ela assumia a inevitabilidade dos factos e aceitava ficar calada.





O Mar Enrola Na Areia


O mar enrola na areia
ninguém sabe o que ele diz
bate na areia e desmaia
porque se sente feliz

até o mar é casado - ai!
até o mar também tem mulher
é casado com areia - ai!
bate nela quando quer

até o mar é casado - ai!
até o mar tem filhinhos
e casado com areia - ai!
e seus filhos são os peixinhos

ó mar tu és um leão - ai!
a todos queres comer
não sei como os homens podem - ai!
as tuas ondas vencer

ó mar que te não derretes - ai!
  navios que te não partes
ó mar que não cumpriste - ai!
  o que comigo trataste

ouvi cantar a sereia - ai!
no meio daquele mar
tantos navios se perdem - ai!
ao som daquele cantar

até o peixe do mar- ai! 
depenica na baleia
nunca vi homem solteiro - ai! 
procurar a mulher feia

2 comentários:

Judite Moreira disse...

Como eu lamento a tua Márcia... Como eu detesto o Dr. Rui...e até o Mar que enrola na areia...mas que também lhe bate....Pobres estes homens que são tão pequeninos e se julgam uns heróis!!!!

R. disse...

Pobres vítimas, prisioneiras do agressor e de si próprias...