terça-feira, março 29, 2011

Ernesto

(personagem construída para o Projecto Curta Metragem)

Ernesto chegou a casa mas não estava cansado. Sentou-se à mesa cheia de papéis e livros há uma quantidade de tempo indefinida. Notava-se que tinham sido depositados em cima da mesa em tempos distintos, frutos de ideias geniais repentinas a realizar a breve trecho, com potencialidades explosivas, mas que depois ia deixando no seu mar de "projectos até um dia" poeirentos, ultrapassados e claramente fora de tempo.

A pilha incluía recortes de revistas, livros seus, livros emprestados, livros da biblioteca fora de prazo, cartas pessoais, desenhos, decretos-lei, jornais e mesmo os insuspeitos restos mortais de um pacote de batatas fritas esquecidas no meio da bagunça.

O sofá de Ernesto estava também ele cheio de tralhas que foi acrescentando quando lhe faltou o espaço na mesa ou quando quis libertar a mesma para outros projectos ou mesmo para comer. Por cima de toda a tralha no sofá ficava sempre o casaco de onde por vezes fugiam as chaves que teimavam em se esconder nos labirintos insondáveis da sua tralha depositada no maple.

Sentou-se na cadeira encostada à mesa e serviu-se de um copo de whisky sem gelo e amargou.

Amargou os seus malditos 40 anos, velhos demais para ir para outro sítio, novos demais para se reformarem. o seu sucesso mediocre, alvo da inveja de outros escritores que tiveram de mudar de vida e traidor do potencial extraordinário que identificaram professores e pares toda a vida.

Ernesto trabalhava para a ficção nacional num lugar perfeitamente invejável para a maioria dos escritores e argumentistas portugueses.

Ganhava bem e até tinha contrato.

Arrendava uma casa mais por capricho que por falta de opção.

Tinha namoradas e casos a granel, já que possuía um charme e uma dose de intrepidez e inconsequência que o tornavam irresistível às mulheres.

E no entanto, neste momento da sua vida sentia-se um traidor, um vendido e um falhado, que nunca fez realmente jus ao seu potencial, nunca arriscou. Ernesto nunca iria ganhar um Oscar, um Emmy, um Pullizer ou o Nobel da Literatura, como em tempos sonhara. Nunca chegaria ao topo.

Adiou tanto assentar com alguém que sentia que fazê-lo agora seria quase contariar a sua natureza. Mas amargava nunca se ter entregue a ninguém, nem ter constituído família.

Sabia que não havia nada por que fosse lembrado nas gerações vindouras.

E isto, estes desejos frustrados de plenitude e imortalidade faziam-no amargar nos fins de tarde, agarrado ao seu copo whisky.

segunda-feira, março 14, 2011

Gisela

No princípio, a saudade doia-lhe com uma taquicardia aguda. Uma dor localizada no peito quando lhe faltava ela, quando sentia falta dela nos momentos mais inusitados.

No supermercado quando via uma coisa que lhe costumava comprar, quando lhe falavam de uma saída ou concerto e pensava como ela gostaria de ir, à noite, em casa, quando dormia só, quando conduzia no meio do transito, sem lhe telefonar para matar o tempo com as parvoíces cúmplices que tinham possuído em tempos.

Era como se lhe faltasse uma parte do corpo, por não ter o seu abraço. Deitava-se no sofá e aninhava-se nas costas fofas do móvel como se fora ela, nos piores momentos.

Sentia-se incompleta, amputada numa qualquer parte do corpo onde não era possível criar próteses.

E nenhum dia era pior que o Domingo.

Dava por si a fazer expressões de infelicidade, a sentir nada mais do que tristeza e reparava na delicadeza exacerbada das pessoas que lhe eram queridas que intuíam ou sabiam o que se estava a passar.

No princípio, a sua ausência deixava Gisela de rastos. A saudade fracturava-a de ponta a ponta e deixava-a imóvel, paralizada e cega.

Mas o tempo passou e o comportamento errático de Joana,  ora adesiva ora evasiva, prosseguiu.

Gisela teve momentos de raiva absoluta, mais contra si por permitir que a relação continuasse do que contra Joana que a menosprezava. Sentiu-se pequena, insignificante e perdeu um pouco do respeito que tinha por si mesma.

Zangava-se consigo mesma por sentir a falta dela. Por ceder às suas próprias fraquezas. Por gostar tanto dela que fazia de conta que não via os seus imensos defeitos, o pior dos quais claramente não gostar de Gisela o suficiente, embora a quisesse só para si.

À medida que o tempo foi passando, Gisela começou a interiorizar a dura verdade de que Joana não a amava nem nunca a iria amar, não obstante as suas promessas. Lentamente foi-se afundando nela a certeza de que era essa mesma miragem de amor e tranquilidade, de segurança e conforto, que a fazia ultrapassar os hábitos irritantes de Joana, ignorar as suas manias, o seu egoísmo e a sua arrogância absurdas, própria dos ignorantes a quem a vida ainda não marcou nem ensinou grande coisa.

Perguntava-se quanto tempo levaria a deixá-la definitivamente, já que já tinha terminado a sua relação mais vezes do que conseguia contar. De cada vez que reatavam sentia-se mais longe daquilo queria, menos feliz. Mas não resistia. E percebia que quando finalmente o fizesse teria de evitar Joana a todo o custo, que não podia estar mais com ela, porque Joana não era boa para Gisela e, não obstante, Gisela era absolutamente incapaz de lhe resistir.

quarta-feira, março 02, 2011

A casa

A casa gritava por ela, em cada canto, em cada estante, nos bibelots das mesas, nas fotografias por toda a parte, nos livros abundantes e nas plantas que ela escolhera.

A casa estava em silêncio.

A casa gritava por ela e o grito tinha o som branco do ar condicionado. Omnipresente, intolerável, insuportável.

A casa sentia a falta dela como se fosse órfã. Como se lhe tivessem arrancado um membro. Como se tivesse perdido o sentido.

A casa parecia catatónica.

E a casa chorava - ostensivamente, nada menos.

Eles tentaram fazer com que a casa sossegasse; mudaram as divisões dela, transformaram os espaços que eram só dela, eliminaram as coisas que apenas ela usava e que a faziam mover, os projectos dela. O escritório, a cama, o canto das especiarias na cozinha.

Mas a casa não se deixava enganar.

E chamava por ela continuamente, como a cria abandonada de um animal selvagem.

Quase – quase – que era possível sentir o cheiro dela, ouvir o tilintar dos brincos dela, sentir o toque mão dela a ajeitar uma almofada, porque a casa lutava com todas as suas forças para que a presença dela não fosse apagada.

Porque ela estava no DNA da casa, indelével, intrínseca, sanguínea.

As paredes da casa eram dela, os quadros nas paredes transpareciam a essência dela, a disposição dos móveis fora estudada por ela e escolhida até à perfeição, os tapetes comprados por ela e o candeeiro da sala a ela oferecido.

A casa era deles e era dela. Era muito dela.

E eles tinham de viver na casa, os dois, sem que esta lhes desse um momento de sossego na lembrança de que ela existira, de que ela era ela, insubstituível, e que ela já não vivia entre eles, que ela tinha morrido.

E que nunca mais voltaria à casa.