quinta-feira, abril 11, 2013

Alice

( participação de Joana Vilaverde no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Respondia às mensagens de aniversário como quem come aos bocadinhos um chocolate muito bom e muito caro. Guardava os emails, mensagens de facebook, mensagens e o que mais pudesse, para mais tarde. Que as coisas boas consumidas todas no mesmo dia enjoam e às tantas já nem lhes sentimos o sabor, só as queremos despachar.

E uma boa conversa, uma boa palavra, era algo que Alice se recusava a despachar, por lhe parecer o pior dos desperdícios.

Então, respondia-lhes com calma e doçura, devagar, a conta gotas nos dias maus, em que tinha mais saudades das pessoas que não via com tanta frequência como gostaria. em que precisava de um abraço.

era um ritual lento e prazeiroso, de luas. Podia estar a responder a mensagens o ano inteiro, porque quem dá coisas boas, recebe coisas boas e era fácil obter respostas que começavam conversas, deixando ainda por responder, guardadas como se estivessem fechadas na embalagem, as mensagens restantes.

porque as pessoas esquecer-se-ão de quão depressa se fizeram as coisas, mas lembrar-se-ão de quão bem feitas foram.

Alice acreditava pouco em convenções sociais. A sua mente estava permanentemente "fora da caixa", como se vivesse sempre do lado de lá do espelho, e conseguia transformar qualquer sítio onde estivesse numa festa, num sofá com lareira à frente. num fim de tarde na praia.

E através dos seus olhos os outros viam-se mais bonitos, mais bondosos, melhores na sua condição humana.

Alice era perita neste jogo que podemos chamar de ilusionismo humano, mas que na verdade podia ser simplesmente a descrição de Thoreau daquilo que é a arte: não importa para onde se olha, o que importa é o que se vê.

E na arte da fotografia humana, Alice via o positivo.

e mostrava-o.

Porque a sua maior qualidade não residia na arte definida por Thoreau, mas por Degas: a arte não é o que se vê, a arte é o que se faz os outros verem.

E Alice conseguia quase sempre fazê-los verem-se pelos seus olhos: numa festa, num sofá confortável. num fim de dia na praia. Bonitos, bondosos, inteligentes e justos - como ela os via.

Do outro lado do espelho.

Porque um espelho tem tantos lados quantos os olhos que o vêem.


quarta-feira, abril 03, 2013

Estrela


( participação de Sophie Lucha no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)

Estrela era uma mulher bonita e tinha bom gosto. Era alegre e bem disposta. Amada por todos os que a rodeavam, era mãe de duas crianças pequenas e bonitas. Tinha uma casa bonita no meio do campo e um trabalho bom com horários flexíveis. Tinha uma família bonita e carinhosa.

Estrela era conhecida por sorrir sempre, por ter sempre uma boa palavra para quem se cruzava com ela.

E tinha sempre paciência. E parecia ter tudo mais que uma pessoa possa querer na vida.

Um dia encontraram o carro dela com uma carta despedida dentro.

As estrelas - sóis - são corpos celestes, não são da terra. E Estrela, que sentia que tinha de iluminar as vidas dos outros, não permitia que a vissem com menos luz. Escondia o negrume dentro de si. Guardava-o tão bem guardado no centro secreto de si que começou a colapsar de dentro para fora, como se tivesse dentro de si um buraco negro.

Quando percebeu o que lhe acontecera, Estrela achou que se poderia estar a tornar ela mesma num buraco negro e temeu em breve começar  não só a desintegrar-se, mas também a atrair para si toda a matéria circundante que assim se colapsaria também. O seu negrume mentiu-lhe que corria o risco de ser a destruição dos colegas, dos amigos, da família. Dos filhos.

E achou que o negrume que a devorava secretamente poderia em breve começar a devorar os outros, a começar pelos que lhe eram próximos e queridos. e este pensamento era-lhe insuportável.

Não lhe ocorreu que as estrelas não são sem arestas, que brilham apesar do impacto de outros corpos celestes. Esqueceu-se que o seu brilho iluminava e aquecia a vida dos outros, mas que não era o único, que havia outras estrelas na mesma constelação e que o seu negrume era apenas seu, e que os outros à sua volta eram também corpos celestes (cometas, planetas e outros astros). e que também tinham força para a ajudar. que podia ser vulnerável e ter escuridão.

Perante a perspetiva aterradora de poder prejudicar as pessoas que tanto amava com o negrume que não suportava mostrar nem partilhar, e sobre o qual não sentia qualquer controlo, Estrela decidiu apagar o seu fogo nas águas do rio grande que atravessava todos os dias.

Como-se ao se apagar nas águas do rio, pudesse impedir o negrume de se alastrar.

E num dia triste de chuva, despediu-se da vida terrestre atirando-se de uma ponte alta para as águas fundas e conturbadas daquele rio. E o céu ganhou uma estrelinha nova que se vê ao longe, e que ao contrário dos seus receios mais íntimos, inconfessados, nunca estivera destinada a ser um buraco negro mas cujo brilho e calor se sentiriam para sempre.