quinta-feira, maio 31, 2012

Penélope

Há histórias que se tecem devagar e com a alma. Fio por fio, desfiando os nós do peito e da garganta. Com paciência.

Há paixões que se acalentam em lume brando, nessa mágica arte de manter a chama pequena, sem a abandonar; na esperança de um dia se poder deixar queimar tudo o que puder consumir e sem a deixar apagar.

A Penélope da lenda, da literatura clássica, esperava o seu herói sem o dizer a ninguém. Arranjou o pretexto de uma colcha que tinha de tecer para afastar os pretendentes que lhe queriam impor, dizendo que Ulisses não voltava. De dia, fazia lentamente a colcha e de noite, desfazia quase outro tanto, para atrasar a necessidade de aceitar outro marido, como insistiam que fizesse.

Sem acreditar em predestinações, Penélope gostava de acreditar que havia um fado intrínseco nos nomes.

Guardava a sua esperança como um segredo tão bem guardado que às vezes até o guardava de si mesma. E porque é no contar de histórias que a gente se encontra, Penélope contava a sua história como a construía: devagar, timidamente e com a alma, sem deixar que a chama  brilhasse demasiado por ser tão incerta a possibilidade da sua sobrevivência.

É que a história que Penélope construía devagar era uma história improvável, daquelas que as gentes mais sábias e experimentadas olham de lado e com o nariz torcido. E que o bom senso dizia a Penélope que não era lá muito viável, com tantos ventos contraditórios.

E por isso, Penélope tratava a sua história, que tecia com paciência e amor, como se trata a seda, com delicadeza e reservando-a para as ocasiões especiais.

Como a seda, a sua história era leve, delicada e brilhante. Para muitos, era nada mais que um capricho, uma coisa desnecessária, melhor substituída por algodão ou ganga. Cetim, se fosse o caso de querer mesmo algo que luzisse.

Mas Penélope habituara-se à seda com as suas qualidades e desvantagens e não estava disposta a abdicar dela. Pelo menos não enquanto não acabasse a colcha que tecia de dia e desfazia de noite.

E aguardava o seu Ulisses com paciência e esperança, sem se amarrar a projetos e sonhos concretos.

Porque se é certo que a seda é um material mais delicado que a maioria, também é certo que tem propriedades únicas.

E que independentemente de quão resistente, duro e até tosco o tecido, todos estão sujeitos às mesmas manchas e todos sem exceção se podem estragar.

É que a durabilidade dos tecidos, como a vida das relações humanas, é mais determinada pelo trato que lhes damos do que pela sua natureza inicial.

segunda-feira, maio 28, 2012

Maria qualquer dia

“Maria Ventania!”

No sonho, estava sempre na roda gigante, muito agarrada a André porque fazia vento e as cadeirinhas balançavam mais e ela tinha medo das alturas. Podia ver a cidade toda: parecia ser Antuérpia ou pelo menos uma cidade belga, com cursos de água e casas baixas. A cadeirinha circular em tons de azul, onde estavam os dois, chiava ao balançar-se na corrente de ar.

“Maria Tonteria
André agarrava-lhe as mãos e não conseguia deixar de sorrir trocista perante o medo evidente que ela tanto tentava disfarçar.

“Não vamos cair, Maria Valentia. Não podemos.” – Sorria e dizia-lhe que apreciasse a paisagem e sentisse o vento na cara.

Ela encostava mais o corpo a ele e largava a sua mão para dar a cara ao vento, conquistando o medo pouco a pouco. Sabia bem ter o vento na cara. Tentava gozar a vista, mas sentia náuseas.

“Maria Cobardia…”
E nesse momento, ele caía e deixava-a sozinha.

Nunca o via chegar ao chão e ele nunca parecia aterrorizado. Caía a fazer as rimas que tanto gostava, a brincar com o seu nome.

“Maria Pontaria, Maria Gritaria, Maria Sinfonia!”
E ela queria agarrá-lo mas não conseguia largar o banco da roda gigante.

E acordava sobressaltada, Maria Nostalgia.

Acordava na cama vazia.
Acordava na cama, vazia.

Aguentava o lento passar dos dias pesados, com a determinação muda dos passos de uma vaca transmontana fora da manada. Ouvia o pendulo do relógio de sala que tinha sido do avô bater ritmadamente, ordenando ao seu coração o compasso que ele queria esquecer. Mexia-se de forma mecânica e sem pensar, só porque tem de ser, porque é preciso ir à vida, porque é preciso fazer, porque há contas para pagar.

Lenta. Sem outro propósito.
Maria Anestesia.
Abrir os olhos para o teto branco com pontos de humidade, o quarto iluminado pela persiana que nunca fechava e que mais valia não existir. Pensar em ficar mais tempo a dormir. Ouvir o telemóvel soar o despertador em alarmes adiados de 5 em 5 minutos. Só mais 5 minutos. Só mais cinco minutos. Só mais 5 minutos. São só 5 minutos.

Sentar-se na cama. Levantar-se da cama. Chinelos. Chuveiro. Água quente no pescoço, no peito, no torso, nas costas, no cabelo. Mais água. A água que lhe sai dos olhos e se mistura com a água do banho. Mais água para lavar o corpo e as mágoas. Só mais 5 minutos, vamos lá.

Prolongava o banho como se lavasse a alma.
Depois do banho não se chora, depois do banho não existe mais Maria-coração-partido, depois do banho só a Maria-profissional.

E a Maria vai para o trabalho e não pensa em mais nada até à hora de sair, depois de fazer horas extraordinárias.

E faz tantas horas extraordinárias quanto pode para evitar parar, pensar, existir, sentir.

Maria Catalepsia.

Fazia este “jogo de externalizar” consigo mesma quando se queria martirizar por todas as coisas que não fez e que devia ter feito, aquilo que poderia ter dito e não disse.

Fazia estes negócios de 5 minutos consigo mesma. 5 minutos sem pensar em nada. Só 5 minutos a pensar nele. 5 minutos para chorar. 5 minutos para o insultar. 5 minutos para ter saudades. Intervalinhos pequenos e sustentáveis para a ajudar a digerir o que não podia ser mudado. Intervalinhos pequenos e alcançáveis. Só mais 5 minutos. Vamos lá, 5 minutos é num instante.

Sabia que tudo havia de passar e depois a vida continuaria como dantes. Mas quando? Quando?

E nestes intervalos pequeninos, de horizonte visível, Maria praticava a sua paciência esperando que em breve a vida melhorasse e lhe trouxesse outras coisas muito boas.

E havia de trazer.

Maria, qualquer dia.

segunda-feira, maio 21, 2012

Premonição


A minha mãe dizia que sonhar com dentes era morte e eu sonhei que me caiam os dentes todos. Sonhei que ficava com os dentes na mão e acordei a suar em bica de madrugada.

Ninguém pode morrer, e muito menos pode morrer toda a gente.

Mas eu ficava com os dentes todos na mão e ficava a olhar para eles. Sentia o lábio a rodear a gengiva. Sentia o sabor metálico do meu sangue percorrer-me a língua e descer-me pela garganta.

E matava-me a sede, sabia bem. O sangue morno, metálico e muito líquido sabia-me bem. Mas eu não sabia o que fazer com os dentes.

Estava atónita perante aquele espectáculo macabro.

E quando acordei, percebi que estava sozinha e que nada das tradicionais interpretações dos sonhos poderia ser verdade, porque nunca me poderiam morrer todas as pessoas, como me tinham caído todos os dentes no sonho.

Mas fiquei desinquietada com o presságio.

E no meio do choque queria perceber como é que aquilo tinha acontecido, qual era a história por detrás da queda dos dentes no sonho. Acho que me tinham caído suavemente, de forma indolor, como se fossem pequenos bagos de romã que eu libertava sem dor nem arestas. Eu até tinha noção de que eles me estavam a sair, tanto que colocava a mão à frente da boca para que não caíssem ao chão.

E soltava-os um a um depressa até estarem todos na mão.

Depois olhava para cima horrorizada, ainda tinha alguma sensação física da minha boca mas ficava paralisada pelo choque e não sentia mais nada.

E, de repente, ocorre-me. Há uma maneira muito simples de eu perder toda a gente.

É se toda a gente me perder a mim, se eu morrer.

Olho à minha volta e está tudo vazio. O Talmud diz que "para onde quer que olhes há algo para ser visto", mas eu não vejo nada.

E subitamente apercebo-me: eu já não existo. Eu não tenho mãos, nem dentes, nem corpo nem nada. Eu sou só este pensamento e os meus sonhos.

Shakespeare disse que a morte é um sono sem sonhos. Suponho que ele estava enganado.

E, sendo assim, parece-me agora claro que na morte como na vida é na nossa capacidade de sonhar que reside o nosso próprio céu ou o nosso próprio inferno.

domingo, maio 13, 2012

Aninhas e a puta da velha

Aninhas não gostava da puta da velha. Implicava com ela e ela implicava com Aninhas.

A puta da velha era mesquinha, picuínhas. Ficava-lhe com as revistas que espreitavam de fora da caixa do correio, sacudia as toalhas dela para a varanda de Aninhas, tinha prazer em dificultar a vida da pequena.

Aninhas era uma boa alma, menos se a enervassem. Aí era só mazinha.

Fazia de conta que não via os panos que caiam do estendal da vizinha na varanda. Fazia festas e pedia aos convidados para não falarem mais baixo depois das 22h. Quando via que o gato da vizinha se tinha escapado, nunca avisava a velha.

O que realmente tirava Aninhas do sério não eram estas mesquinhices. Era que Aninhas tinha deixado de viver numa terra pequena para ter liberdade e a puta da velha controlava-lhe a vida.

Ficava à janela para ver quem entrava em sua casa e depois contava aos vizinhos da frente e nas lojas de comércio tradicional quando tinha gente em casa, se eram homens ou mulheres, até que horas tinham ficado. Se tinha ouvido barulhos. Que tipo de carro conduziam. etc.

E Aninhas ficava louca com este hábito da puta da velha. 

Ainda por cima a puta da velha era a administradora do condomínio. De vez em quando lá tinha bilhetinhos a dizer que tinha de varrer a varanda, ou que não podia ter plantas, ou recados para o senhorio a dizer que tinha de comparecer à reunião de condomínio. E despedia-se sempre da mesma forma, deixando-lhe o número de telefone. Como se fosse servir para alguma coisa.

"Ao seu dispor, Susana Santos tel. 91 9970112"

Aninhas tinha a sensação de ter já visto tantas vezes o raio do número de telefone da mulher que já o saberia de cor. Ainda por cima, um dia, a irmã chamou-lhe a atenção para o facto de que o número da sua arqui-inimiga tinha em si o aniversário da sobrinha: 9 1997-01-12.  Doze de Janeiro de 1997. Com um nove à frente. A idade que tinha o sobrinho mais velho nessa altura (que depois, quando se começa a querer ver coincidências, vêm-se coincidências em todo o lado...!)

Que puto de azar. Que ironia. Sabia tão poucos números de telefone de cor e agora tinha aquele agrafado à memória,  em vez de outra coisa qualquer que lhe pudesse ser útil. ora bolas.

Aninhas não passava muito tempo em casa e tentava não se ocupar com isto mais do que o estritamente necessário, mas a raiva miudinha punha-a por vezes a pensar na velha.

A velha nem sequer era mal ajambrada, embora não tivesse grande ar. Andava de roupão o dia quase todo. Mas já tinha havido uma ou outra ocasião em que Aninhas a tinha visto de batom rosa brilhante, apesar dos seus - quê? - 60 anos? Devia ser, mais coisa, menos coisa.

Até já lhe tinha visto de fugida no estendal certa vez roupa interior vermelha. Pensou que a imagem mental que se lhe seguiu era uma visão do inferno. Credo.

Aborrecia-a profundamente pensar que a puta da velha tinha tanto prazer em estragar-lhe a vida. Não é que fosse assim tão mau, na realidade, que ela cuscasse a sua vida aos vizinhos, porque Aninhas era uma mulher livre e não considerava que tivesse de dar satisfações a ninguém sobre os seus namorados e amigos. Mas aborrecia-a e aquela era uma daquelas moínhas que não são grande coisa, mas vão moendo, moendo, moendo. "Não mata, mas mói.", como diz o ditado.

Chateava-a que a vizinhaça toda soubesse da sua vida, pronto. E percebia nas entrelinhas dos comentários que ouvia que havia uma certa repreensão moralista perante o seu estilo de vida.

Ela até tinha tentado ser simpática com a senhora a princípio, mas depois verificou que não era viável. Simplesmente não era viável. Que a puta da velha, quando ela lhe sorria, virava-lhe a cara e tratava-a ainda pior.

Que raiva.

E agora com gripe, uma daquelas a sério, que duram 3 dias a curar, Aninhas via-se confinada à sua casinha e à guarda da vizinha. Uma neura em cima da outra.

O inverno veio tarde, e a ajudar à festa, o dia estava chuvoso e com trovoada. Às duas da tarde houve um qualquer problema com o serviço de internet e televisão e Aninhas ficou sem ambos.

Podia ler um livro mas não lhe apetecia. Aninhas ficava doente raríssimas vezes e gostava de aproveitar para ser completamente inútil nesses dias.

Ganhou coragem e foi ao quiosque mesmo em frente a casa comprar o jornal e umas revistas de fofocas. O senhor lá lhe disse que já sabia que ela estava doente porque a puta da velha tinha comentado que a menina estava em casa, que hoje não tinha saído para o trabalho, mas estava sozinha.

Aninhas rosnou um sorriso e veio para casa. Irritada, lembrou-se de uma das coisas que mais gozo sempre lhe dera e que já não fazia há séculos: ler a secção de relax do JN!

Ria-se sempre com a gíria que que tentava decifrar em cada pequeno quadradinho de linguagem obscena camuflada (ou não) para apelar à luxúria dos leitores. Os seus favoritos eram os dos travestis.

"A A A A A RUA DA ALEGRIA TRAVESTY 1ª VEZ
21 aninhos. Anaconda, p50, dote xxxxxxxl, o...natural, botão de rosa, dominaçao. 2.ª oportunidade com banho de gato. Foto real, comprove sem enganos. Tel.XXXXXXXXX"


Ora bem, "anaconda", uma cobra gigante da América do Sul deveria ser um código para dizer que o pénis era grande. p50?? que raio seria p50??, ok, seguindo, "o... natural" deve ser sexo oral sem preservativo. botão de rosa - essa não tem mistério. dominação, também é bastante claro. 2.ª oportunidade com banho de gato??? What??? 

Era uma diversão rápida porque a partir de certa altura se tornava cansativo e mesmo deprimente.

"Dupla perfeita Agora com muitas novidades..algemas, strap-on, vibradores….destinados a cavalheiros, senhoras ou casais de nível, que sabem o que querem e que valorizam o bom gosto. Adoramos submissão, inversão de papeis, oral ao natural…..tudo sem limites ou tabus. Proporcionamos momentos diferentes repletos de sedução,discrição e cumplicidade. Possibilidade de momentos a 3 despidos de preconceitos! Ambas portuguesas, com formação superior e desempregadas. Apenas deslocações a hotéis /motéis sem pressas na zona de Viseu"


"com formação superior e desempregadas" como ponto de um anúncio de relax. Que tristeza...


Já prestes a desistir da secção de relax e pronta para ler tudo o que havia para ler acerca das infidelidades do rei de Espanha, na revista de fofocas, heis senão quando um anúncio chamou a sua atenção:

 "A A A A A A...SUSANA 50TONA
Safada peludinha.Carinhosa, O...Mutuo Ardente e Delirante,Garg.Funda,Mass.Prostática,B. Rosa,Compl.Simulação masculina. Dominação.24H. Apenas deslocações. Tel.
919970112."


Demorou a perceber porque raio se tinha fixado no anúncio. E depois olhou melhor para o número. 

9 1997 01 12.


Doze de janeiro de 1997. Com um nove à frente.


E esta hein? 

Não é que afinal Aninhas tinha tido sempre razão acerca da moralista da velha?



sexta-feira, maio 11, 2012

A Aldeia

O tempo ficava preguiçoso naquela aldeia em Trás-os-Montes.
A aldeia vivia num estado de permanente letargia, entre os velhos de bengala e chapéu de feltro ou boina que se encontravam nos bancos de pedra, espalhados um pouco por todo o lado. Os cães dormitavam aos seus pés, indiferentes às moscas frenéticas e zombeteiras.
De vez em quando, uma vaca vagarosa passava pelas ruas de terra batida para ir beber ao tanque no centro da aldeia. O passo da vaca era lento e certo, como se fosse o eco dos relógios que ficavam perdidos no marasmo.
Os velhos encontravam-se para jogar cartas e damas, para beber bagaço e café, para conversar sobre coisa nenhuma; para ficarem parados a olhar para o nada, naquele estado de sábia quietude que é apenas dos velhos, agarrados às suas bengalas. As velhas encontravam-se nos alpendres e nas cozinhas, discípulas de um tempo em que uma mulher séria não entra num café. Conversavam entre o tricot e a malha que faziam sem precisar de usar as vistas gastas. Contavam as novidades e as cusquices, debatendo a moral e os costumes da vizinhança, da juventude de hoje, das personagens das novelas. Pregando sem púlpito e fazendo correr a informação como se fosse o sangue da aldeia entre os seus membros.
E sempre que morria um velho, e sempre que um jovem se ia embora, a aldeia ficava mais manca, mais incapaz de andar, mais incapacitada.
O próprio tempo parecia definhar na aldeia, demorando-se a passar pela escola vazia e desactivada há mais de 25 anos, mas ainda intacta, com as carteiras preservadas e os livros que a última professora deixou, com os cadernos dos meninos. Como se fossem só de férias e fossem voltar dentro de pouco tempo. Os globos terrestres, as figuras geométricas de madeira, os quadros com o abecedário e o mapa-mundi. O crucifixo na parede. Pedaços gastos de giz na borda do quadro preto.
A aldeia percebeu quando a Escola Primária fechou que era o princípio do fim, mas guardaram todos a esperança secreta, recusando-se a aceitar que a Escola não voltaria a abrir. Guardavam a escola como uma velha solteirona guarda o enxoval, que reserva por estrear na arca de cânfora, para não se estragar. À espera de um dia que cada vez tem menos vontade de chegar e que depois não aparece. Vigiavam a escola e certificavam-se que nada de mal lhe acontecia, como se fosse ela mesma uma das crianças da aldeia, cada vez mais raras.
Um quarto de século depois, apenas o pó e as teias de aranha tinham mudado o rosto da escolinha. Não havia um vidro partido, uma telha levantada. Como se também a divina providência preservasse à sua maneira o edifício.
Ao lado da escola estava o casebre de latão do bêbedo da cidade, um homem azedo e malcriado. O latão era feio e tinha pintadas com tinta de um vermelho muito garrido, as palavras “Deus te dobre o que me desejas”.
O tempo sorria com a sabedoria simples e eficaz de Caninho, o bêbedo. Prosseguia, passando pelo parque infantil que a junta mandou construir, para que os netos estrangeiros da aldeia pudessem brincar em Agosto, o único mês em que o tempo ganhava ritmo e se apressava para voltar a França, a Espanha, à Suíça, à Alemanha.
No seu passeio vagaroso, o tempo parava no centro da aldeia, junto ao tanque grande de pedra, onde as vacas bebiam e onde as pessoas iam buscar água para lavar loiça e tomarem banho, no tempo em que as casas ainda não tinham canalização.
E no seu passeio, o tempo ficava indeciso sobre se devia ir em frente para a eira, pelo caminho ladeado por hortas tão velhas como a própria aldeia, onde as pessoas trabalhavam diariamente para comerem o que a terra dava e por causa das quais tantas rixas já tinham acontecido. Ou se devia ir para a esquerda para a “igreja nova” como lhe chamavam os velhos, construída nos tempos do PREC por um candidato à junta de freguesia que meteu uma cunha com o compadre que tinha no governo para a edificar com subsídios, enganando assim os habitantes da aldeia para o elegerem. E que depois arruinaria os cofres da junta.
Ou ainda, se deveria ir para a direita, rumo à fonte onde noutros tempos as moças encontravam os seus namorados às escondidas e tantas vezes se faziam mulheres.
O tempo ficava muitas vezes indeciso sobre o caminho que tomar e frequentemente deixava-se ficar no centro da terriola, admirando a mercearia fechada da Ti Ester, a casa grande com um ar quase senhorial da Ti’lena, a forma como aos poucos o vento erodia as fachadas das casas levando-lhes a tinta e deixando descarnadas as paredes de pedra que resistiam estoicamente.
E na aldeia, viviam essencialmente as recordações e a ânsia pelo mês de Agosto que teimava em demorar todos os anos, como se fosse uma noiva caprichosa que quer deixar o noivo inseguro.
Viviam as recordações do tempo em que a Ti’lena tinha porcos, galinhas, vacas e até um cavalo e de como eram garbosos os filhos dela. Tão diferentes, todos e cada um – que viviam agora na cidade; de quando o marido da Ti Ester tinha abelhas e se fazia bom mel na aldeia. Do lagar do Ti António, que deixava os vizinhos usufruir das instalações para as suas colheitas em troca de uma maquia de azeite que lá produzissem. Dos dias de festa em que a Ti Mona recebia as filhas, que vinham da cidade, e se matava um peru, que era primeiro embebedado e que depois corria sem cabeça pelo largo, para diversão e gáudio da populaça que a vizinhava. Dos rapazes novos e sujos de terra, malandros, que roubavam a fruta das árvores e andavam com fisgas e sem dentes.
A aldeia vivia de se lembrar dos tempos em que as pessoas viviam e celebravam a vida na terra. A aldeia jubilava com a recordação de tempos melhores, em que as castanhas se assavam à lareira e o pão se fazia no forno comunitário. Em que ninguém passava fome porque, embora não houvesse mordomias, havia sempre um pouco de pão a mais e algum trabalho para as famílias mais pobres. Das lembranças dos bailaricos e das longas jornadas no campo a lavrar a terra desde a madrugada, com som distante do sino da igreja para lhes indicar as horas na lonjura.
De quando as pessoas se vestiam de festa para ao domingo irem à missa e ao cemitério. De quando se faziam procissões várias vezes ao ano e a terra tinha o seu próprio padre, que vivia abençoando os paroquianos, ouvindo os seus pecados e convivendo maritalmente com a moça que lhe tratava da casa, sem que ninguém ousasse comentar que o santo padre punha um pé que fosse fora da linha.
De quando havia bodas e baptizados e não apenas funerais na igreja, fora da eucaristia dominical.
A aldeia sabia que morria aos poucos e passava cada ano devagar, definhando, ansiando pela festa e pela volta dos parentes emigrados. Os parentes que no mês de Agosto a lembravam que ainda era muito querida e muito amada, que era lá que eles ambicionavam construir as suas casas de sonho e viver felizes e pacatos. E prometiam voltar cada ano e depois um dia de vez, quando se reformassem.
E a aldeia sorria porque sabia que os seus entes queridos o diziam com sentimento e coração crente, e fazia de conta que não dava fé de que esse sonho era cada vez mais distante, porque a cada ano a aldeia ficava mais longe, ficava mais adormecida, ficava mais deserta.
Mas naquele mês, a aldeia era de novo viva e feliz com os filhos que tinham partido em busca de uma vida melhor e voltavam brevemente. E havia abraços inteiros, acolhendo no peito todo o afeto que a saudade tinha alimentado durante 11 meses. E havia felicidade e orgulho de ver os parentes chegar de carro novo e grande, sinal de que estavam bem na vida. E havia toda uma azáfama para receber o melhor possível os entes queridos, que a gente é simples mas sabe receber. Vinham à porta embaraçados da sua simplicidade e pobreza dizendo “a gente não é fidalga, mas gosta muito de vos ter cá”. E os filhos traziam presentes e as noras loiras de nariz empinado; traziam netos que já não sabiam falar bem o português e desdenhavam os divertimentos simples da aldeia, agarrados às suas playstations e telemóveis e computadores. E havia conversas que se repetiam, por falta de assunto e de proximidade: “Então como é que estás?”, “E como é que vai a vida lá na França?”, “Muito trabalho, tenho saudades da nossa terra, que lá trabalha-se muito é uma vida muito desgraçada.”, “A gente aqui nem sabe dar valor ao bem que tem.” E depois a mesma conversa no café, nos encontros casuais, nos bailes à noite.
E os velhos contavam as novas da terra. Cada vez mais do mesmo. Que morreu o Ti Henrique, o Ti Carlos, a Ti Mona, a Ti’lena e o filho da Ti’lisa. Que este inverno só nas três aldeias vizinhas tinham morrido mais de 20 pessoas. Que o dinheiro cada vez dava para menos. Que a carrinha do Continente agora só vinha uma vez de quinze em quinze dias no inverno. Que a camioneta tinha menos horários e que iam fechar mais uma linha de comboio. Que fechara a última mercearia das aldeias vizinhas e que agora nem que fosse só para comprar um litro de leite, que se tinha de ir à vila. Que as filhas da Ti Mona andavam de candeias às avessas por causa das partilhas.
E eles partiam com as lágrimas nos olhos e lembranças da terra que a cada ano estava mais deserta e mais parada.
Na aldeia, primeiro fechara a mercearia da Ti Ester; depois o café no início da terra, que já só abria em Agosto. A piscina que o Joaquim tinha aberto funcionou dois anos, mas só dava lucro em Agosto e ficou abandonada, com o seu azul piscina cada vez mais gasto, num estranho monumento àquilo que um dia a aldeia fora e que agora já não era. Símbolo de um tempo em que as pessoas de aldeias vizinhas vinham de propósito àquela aldeia. Símbolo do que acontecera entretanto.
E a cada ano morriam mais velhos e ficavam menos jovens, até na aldeia não restar mais do que o tempo e o vento, que de vez em quando brincava com os galhos que encontrava nas eiras, nos pomares e nos olivais abandonados à sua sorte.
A carrinha do Continente levava e trazia todos os dias os velhos nos meses de verão; uma vez por quinzena nas outras estações. A aldeia já não tinha mercearias nem lojas. As mulheres vestiam-se de preto, os homens em tons de terra. A missa já não era ao domingo que o senhor padre tinha de ir a muitas aldeias e aquela tinha muito pouca gente. O cemitério era cada vez mais populado. As funerárias, as empresas de cuidados domiciliários e os lares floresciam, na zona.
E a aldeia vivia cada vez mais das recordações e das lembranças. Sabia-se de cabeça e de boca de quem eram as coisas que se herdavam depois de os habitantes morrerem. A macieira do Zé, as oliveiras da Ana, a horta da Rosa. Mesmo se a Rosa vivia muito longe, no Porto, e o Zé só aparecia na altura da festa e nem sequer era todos os anos.
A aldeia atrasava-se no seu fim, na esperança de mais um Agosto, de mais um fôlego, de mais uma criança. Enchia-se poesia serena, exacerbando a sua beleza triste à medida que ficava mais quieta, com menos gente.
Vivia sem pressa, sem querer dar parte fraca nem querer ser vaidosa, mas rezando para que a fotografassem, a cantassem e a dissessem. Que se lembrassem dos tempos em que os seus enchidos eram famosos, porque naquela aldeia, os porcos não eram alimentados com a lavagem, mas com farelos e legumes: batatas pequenas, beterrabas, abóboras. Para que contassem às gerações vindouras como era bonito o entardecer visto da igreja no monte, de como se tinha temido o fim do mundo na noite em que choveram estrelas no céu límpido de Trás-os-Montes. De como eram bonitos a sua forma de vida e os seus costumes agora tantas vezes incompreendidos e quase esquecidos. Uma forma de bolo da lareira nunca se lava com água, mas sim com azeite, senão estraga-se irremediavelmente; a melhor coisa para limpar uma panela de cobre é esfregá-la com areia…
E a aldeia via o tempo passar de olhos rasos de água, como crónica de uma morte anunciada, caminhando ao ritmo da vaca lenta para o seu fim, guardando a esperança de que um dia alguém contasse a sua história e as suas estórias, para que na memória imaginada ou real dos outros ela pudesse viver para sempre.
Porque a vida não é só o que acontece na realidade. A vida acontece muito e muitas vezes é na memória, na imaginação, no coração. Por isso é que contamos com detalhe pequenos momentos de segundos que nos marcaram para sempre e falamos de anos monótonos da forma lacónica e simples “muito tempo depois”.
É que a importância e a longevidade das pessoas, das coisas e dos lugares depende muito de lhes fazermos jus no afeto, pensamentos e narrativas que lhes dedicamos.
E por isso, a aldeia – que sabia ser pequena, recôndita e insignificante - resistia, batalhando em cada fôlego pelo direito a ser recordada por mais uma geração, de viver um pouco mais além da sua existência real.
E por isso, o tempo fazia-se preguiçoso naquela aldeia em Trás-os-Montes.