segunda-feira, novembro 29, 2010

Jorge

Os dentes, titânio;
os braços, puro aço;
a vontade, ferro;
o cabelo, prata;
a pele, bronze;
e o coração, ouro.

Jorge Silva vê-se a si mesmo como uma espécie de herói de acção da banda desenhada enquanto toma o duche matinal. Gosta de imaginar que é uma personagem, um herói de banda desenhada e até tem nome para si mesmo: "Metalman", o que lhe permite fazer uma campanha de trocadilhos e respostas mordazes e engraçadas.

Metalman é o seu "guilty pleasure". Quando era mais novo, Jorge desenhava bem e fazia cartoons a pedido dos colegas de turma que lhe veneravam os dotes artísticos e o talento para o teatro.

Mas Jorge era de uma família convencional com larga tradição na área da Gestão e da Economia e foi pressionado pelos pais a fazer um "curso a sério", que teria sempre tempo e oportunidade de explorar os passatempos depois de garantir a sua subsistência com um emprego "a sério".

E portanto, Jorge tornou-se num contabilista medíocre e obeso, de 45 anos, cujo ponto alto do seu dia era sonhar com os heróis de banda desenhada que poderia ter criado e as personagens que encarnaria se não tivesse sido tão ajuizado.

Hugo

"Quero-lhe partir a cara de cada vez que ela me fala, de cada vez que ela comenta uma coisa qualquer minha no facebook, de cada vez que recebo uma mensagem comunitária em que ela fala à bebé.
"Puka munina gota munto de ti, nunhé?"
Quero-lhe ir à cara, pronto, doutor, é isso, quero-lhe partir aquele focinho."

Marina já fazia psicoterapia com Hugo há mais de meio ano.

"Hmmmm"

Hugo vocalizou um incentivo neutro para Marina continuar a falar. Eram típicos estes acessos de raiva sem razão aparente nesta cliente. Tinha sido a forte emocioanlidade e a dificuldade em reagir friamente perante situações de interacção uma das principais razões de Marina o ter procurado. "Sou demasiado impulsiva, tempestuosa" dissera ela na entrevista de avaliação terapêutica.

"Quer dizer, doutor, eu não lhe quero bater, não tenho interesse nenhum em chegar a vias de facto. Mas muitas vezes, quando estou sozinha, imagino que lhe dou um par de estalos e as coisas que gostava de lhe dizer."

A possibilidade de estar perante alguém com uma perturbação de personalidade borderline ocorrera-lhe num primeiro momento. Chegou mesmo a perguntar-lhe se ela estivera envolvida em episódios de violência física, mas a sincera estranheza aversiva com que esta respondeu à questão deixara-o logo na altura com a impressão que mantinha até ao momento, de que Marina simplesmente vivia as coisas com uma intensidade momentânea descabida, mas era fundamentalmente inofensiva.

"Hmmmm"

Hugo procurava manter uma atitude de especial neutralidade com Marina. Sabia que isso a enervava e, embora tivesse fundamentação terapeutica para esta atitude, admitia para si mesmo que o divertia enervá-la com esta atitude. E gostava de esticar a corda.

"Sinto que está tensa, Marina."

Hugo percebeu um esgar de vitória em Marina. E apreciou como ambos jogavam o mesmo jogo de gato e rato por entre os conteúdos das conversas, replicando as dinâmicas de Marina no seu quotidiano.

Marina respondeu com "Hmmmmmm"

E Hugo não conseguiu deixar de sorrir divertido. E de pensar como gostava do seu trabalho, como o considerava desafiante e interessante. Que sorte tinha por poder lidar com pessoas tão diferentes e que lhe davam luta, sem se aperceberem que estavam a desemaranhar os seus próprios novelos.

Mexeu-se na cadeira, ajustando a sua posição, inclinou-se para ela e perguntou, olhando-a directamente nos olhos:

"Fale-me dessa situação."

E pronto,com uma simples questão acabara com a ilusão da cliente que achava que o tinha vergado e feito perder a calma.

Marina, com um ar perfeitamente incrédulo e mesmo ultrajado, desatou de forma emocionada a descrever como o processo terapêutico e a neutralidade do psicólogo a irritavam, como ela nunca sabia o que ele estava a pensar, como não sabia o que ele estava a perguntar e muito menos o que responder a maior parte das vezes. E que ela, por seu turno dizia tudo o que lhe passava pela cabeça, sem restrições; ela não tinha segredos para ele. E que acabava por não perceber muito bem o que é que andava para ali a fazer se ele não lhe dizia nunca merda - desculpe doutor - coisa nenhuma, se não lhe dava qualquer solução.

Hugo ficou feliz por finalmente ver expostas as ideias que sabia que Marina alimentava há algum tempo e decidiu provocá-la ainda mais:

"Então porque é que volta?"

Hugo sentia-se sempre como um jogador de vólei que faz o bolar: ele atirava a bola com perícia, agilidade e convicção, mas depois ficava de olhos fixos nela, torcendo para que não se desviasse da rota pretendida e não fosse bater na rede. Desta pergunta poderia surgiu absolutamente qualquer coisa. Até a agressão que não esperava.

Mas Marina permaneceu em choque e depois de uns momentos sem conseguir articular palavra, respondeu:

"Oh doutor, francamente..."

"Sim?"

Confirmou a pergunta com mais confiança.

Hugo sabia que Marina não tinha uma resposta para aquela pergunta. Não tinha. Pelo menos nada que fosse coerente com a explosão anti-psicologia que acabara de ter.

"Porque isto me ajuda." disse finalmente a cliente e em voz sumida.

"Como assim?" perguntou neutralmente o terapeuta, já sem provocar, apenas querendo que Marina reflectisse sobre o processo terapêutico.

"Porque saio daqui aliviada. Parece que me tiraram um peso de cima. Porque lhe digo a si o que não tenho coragem de dizer a mais ninguém. Mesmo que o doutor não me diga coisa nenhuma relativamente à forma como devo agir. Eu sei que a terapia me faz falta e sei que estou melhor. Sei que penso mais claramente depois de falar consigo."

Hugo sorriu e depois deste desvio relativamente à questão central, achou que devia subrepticiamente voltar ao argumento principal da consulta.

"Hmmmmm. E em relação à sua amiga?"

"Amiga? Mas ela não é minha amiga!" - Marina soltou a frase e parou, reflectindo.

"Ela não é minha amiga. É só uma pessoa que eu conheço" disse novamente como se quisesse cimentar a recém-descoberta verdade.

"Hmmmmm" - vocalizou Hugo, disfarçando o sentimento de vitória e satisfação por a cliente ter chegado à conclusão que ele desejava desde o princípio da consulta.

"Ora nem mais, então ela não me devia conseguir afectar desta maneira, não é?"

(a situação pelos olhos de Marina em http://personifixar.blogspot.com/2010/10/marina.html)

Rita

One day at the briefing
she'd heard a man say,
"Go perfectly limp,
and be carried away."
                                                                         (Go Limp, Nina Simone)

Rita vomitou o almoço e planeou dar mais uma volta à pista no treino da tarde.

Levantou-se da sanita e enquanto lavava as mãos virou-se de lado para examinar a sua barriga "enorme". Achava a sua cara grande demais, bolachuda. Não gostava das pernas. Achava que a celulite do seu rabo se via a léguas. Acreditava que toda a gente reparava como tinha uma pele horrível e um cabelo estragado. E como os seus braços eram desproporcionais ao corpo, sendo grandes demais. Até os seus olhos de um verde intenso e invulgar considerava estranhos e desadequados.

Aos 18 anos, Rita preparava-se para entrar no curso de Medicina na Faculdade da sua primeira escolha. Era uma aluna dotada, brilhante, perfeccionista. Incapaz de entregar um trabalho acabado de fazer na véspera ou que considerasse incompleto. Obcecada com as datas e os horários, não tinha dificuldades em prescindir das suas horas de sono ou tempo pessoal para concluir uma qualquer tarefa. Rita tocava ainda piano a um nível quase profissional, estando a concluir o oitavo grau do conservatório neste instrumento.

O orgulho da família em Rita, a menina bonita, elegante, bem educada, inteligente e dotada era transbordante. A todos Rita era dada como exemplo a seguir, como a virtuosa.

E Rita era boa em tudo aquilo que fazia e em tudo aquilo a que se propunha. Era especialmente exigente consigo mesma e achava que tinha de se esforçar para ser sempre merecedora.

Mas não era feliz e nunca viria a encontrar aquilo que procurava, porque na realidade, Rita não gostava de si mesma.

No amor, Rita viria a provar ser uma mulher insegura e desejosa de aprovação, sujeitando-se aos caprichos mais degradantes dos namorados que quase sempre tinham um perfil dominante e abusivo. A família consideraria sempre que estavam claramente abaixo do seu nível, e não andavam longe da verdade, porque Rita não se permitiria envolver com ninguém de quem realmente gostasse, por não se considerar ao mesmo nível.

Passaria toda a vida à procura daquilo que podia fazer para encontrar o mais desejava.

Se ao menos lhe tivessem explicado um dia que aquilo que ela mais queria, amar e ser amada tinha tão pouco a ver com a sua aparência ou com as suas competências e mais com a sua coragem, a sua tolerância à rejeição e a sua capacidade de estar e permanecer vulnerável.

sábado, novembro 27, 2010

Ofélia

Bateu furiosamente na porta do elevador. Parecia um pesadelo.
Em miúda tinha adquirido um medo irracional de andar de elevador depois de ver uma novela em que a mãe da protagonista morria quando um dos cabos do elevador se soltava e levou uns bons dez anos a voltar a conseguir andar de ascensor.
Não interessava se a casa do padrinho era no 13.º andar, se tinha que subir 3 lanços de escada no hospital quando estava doente, se não compartilhava animações na feira popular com os amigos: nunca em qualquer circunstância a apanhavam num elevador.
Um dia, um amigo percebeu o seu medo e levou-a à casa das máquinas do elevador do prédio onde era responsável pelo condomínio e explicou-lhe todas as medidas de segurança que os aparelhos englobavam.
Teve pesadelos durante uma semana, em que o elevador caía, em que saia do elevador pelo alçapão superior e ficava esmagada quando ele chegava ao último andar ou então que ficava presa no poço do elevador e era assim esmagada quando ele chegava à cave. Acordava sobressaltada e depois repetia-se o sonho sem nunca conseguir controlar nem racionalizar os seus elementos.
Quando acordava racionalizava o mais que podia, que tudo aquilo era impossível, que nada daquilo acontecia a ninguém a não ser nos filmes e nas novelas, que nunca se ouviam notícias de acidentes com elevadores.
Depois de tanto dar sermões a si mesma, decidiu que era altura de deixar de ser mariquinhas e andar de elevador. Escolheu o elevador do hospital, porque era sempre frequentado e vigiado e porque, na pior das hipóteses, tinha médicos por perto, para a salvarem.
Nesse dia andou tantas vezes no elevador que o segurança a interpelou e quase a expulsou, até ela fazer "olhinhos de corça" e explicar a situação – altura em que o segurança lhe indicou um outro elevador que chegava a 3 andares mais acima, com a condição de andar uma vez e se ir embora.
Desde então, foi sempre capaz de andar de elevador ao ponto da preguiça, de usar o aparelho para subir um andar ou de descer para a cave de ascensor.
E agora, o que ela havia relegado para 3.º, 4.º, 5.º plano, estava mesmo a acontecer. O elevador estava parado entre o 3.º e o 4.º andar do prédio do namorado. A porta estava fechada, mas o elevador, a que ela por graça chamava "o elevador da morte" aludindo aos ruídos estranhos que fazia desde sempre e que sempre assustavam as pessoas que andavam nele pela primeira vez, não se mexia.
Começou por calmamente esperar que a luz voltasse. Quando as luzes se acenderam, achou que o elevador voltaria a mover-se. Gritou por ajuda dez minutos depois, debalde. Tocou o botãozinho do alarme, apenas para se lembrar como os condóminos haviam decidido desactivá-lo, uma vez que os miudos tinham o estúpido hábito de o fazer soar a torto e a direito e a qualquer hora do dia ou da noite. Então começou a bater na porta e a berrar. Até a merda do telemóvel estava sem rede. Bateu, bateu, bateu. Berrou. Berrou. Berrou.
Finalmente apareceu alguém para a salvar. Abriram a porta do elevador manualmente e ela teve uma sensação de deja vu: o elevador encontrava-se entre andares, a meio caminho do 4.º andar e teriam de a içar para a retirar. No sonho semelhante que tinha tido recorrentemente, quando era mais nova, o elevador caía, quando ela estava a sair, cortando-a ao meio.
Achou que era mau demais o que lhe estava a acontecer e começou a chorar convulsivamente. Sentia-se paralizada e incapaz de fazer fosse o que fosse, como um carneiro levado ao matadouro.
A muito custo a convenceram a mover-se. Talvez do pânico ou de ter chorado muito, sentia o chão inseguro, como se se movesse ou balouçasse, o que em nada contribuia à situação. Aquela merda daqueles barulhos que a porra do elevador fazia sempre estavam a deixá-la à beira de um novo ataque de nervos.
Onde raio estava o seu namorado que não chegava? Os vizinhos aglomeravam-se à porta do elevador cada um mandando mais bitaites que o outro e foi mais do que podia aguentar. Desmaiou.
Quando acordou estava exactamente no mesmo sítio. Ninguém a tinha tirado dali. Mandaram os vizinhos sair e chamaram o INEM. A visão de gente da saúde, que lhe inspirava tanta confiança deu-lhe a coragem de que precisava, não obstante os ruidos do elevador e a sensação de chão balouçante que tinha.
Percebeu que precisava de mais coragem do que tinha. Ganhou lanço e sem pensar atirou-se contra a parede, rumo à frincha de meio metro que em que a porta se abria.
A última coisa que ouviu foi um "strap" quase surdo e o som quase musical de uma corda de aço a soltar-se e a deslizar entre os cabos.

segunda-feira, novembro 08, 2010

São

"São.
São!
Ó São, anda cá!"

Fernando Gomes permaneceu sentado no sofá enquanto esperava que a mulher corresse para  a sala onde ele permanecia sentado em frente à televisão.

"Anda cá ber isto, carago!"

Conceição largou a loiça que lavava no rescaldo do almoço e dirigiu-se apressadamente para a sala secando as mãos no avental estampado com galos de Barcelos.

"O que é que foi home?"

"Senta-te aí! Olha!" - respondeu Gomes, apontando com incredulidade e veemência para o LCD.

São olhou para as imagens do notíciário e de repente, os olhos ficaram rasos de água.

Casara com Gomes depois de ter engravidado do filho, Tininho, e já tinha uma barriga bastante proeminente quando entrou de branco na Igreja do Senhor de Matosinhos. A sua vida não era fácil. Quando era mais nova trabalhara na lota como peixeira, mas a descoberta de um sopro no coração dera uma empurrão à opção por que Gomes tanto desejava e São deixou o trabalho para se dedicar à casa e à família.

Contando apenas com o salário de Gomes, a vida não era fácil. Gomes era trabalhador por conta própria, realizando trabalhos de pichelaria aqui e ali. O negócio não corria mal, mas era muito variável e implicava uma grande capacidade de gestão financeira e emocional por parte do marido a quem por vezes ficavam a dever muito dinheiro.

Gomes gostava da ideia de ter São sempre disponível em casa, à moda antiga. Tinha sempre a casa limpinha, as camisas passadas e a segurança de ter uma mulher que dependia dele para tudo e cujo dinheiro era ele que controlava.

Embora São fizesse rissóis para fora e tivesse uma ou duas senhoras a quem passava roupa, o dinheiro que ela fazia era muito pouco e entregava-lho a ele, para que gerisse a soma maior, de modo a irem guardando algum "para caso de necessidade" e para um dia pagarem aquilo que fosse necessário para "ver o nosso Tininho doutor".

A vida que levava era dura, numa constante gestão de trocos, na contagem diária das possibilidades de poupança, na ginástica de fazer render um orçamento muito magro, mas que ela queria que desse para tudo.

São sabia todos os ofícios da perfeita dona de casa, mas muitos deles aprendera depois de casada e com o seu esforço, porque queria poder valer à família, dar-lhes mais do que o dinheiro fazia render. Sabia os ofícios da costura e da cozinha, bordava, fazia arraiolos, arranjos florais, cultivava no pequeno terreno atrás dos anexos em que viviam legumes e outras plantas comestíveis e convencera Gomes a criarem galinhas.

Por Gomes e Tininho daria a sua vida sem pestanejar. Apesar das noites mal dormidas, das discussões, dos sapos que engolia quando apanhava mechas de cabelo de cor loiro-prostituta-barata na roupa de Gomes, dos tabefes ocasionais que levava em dias de maior frustração do marido e das dores de barriga com medo de o orçamento não chegar. Amava ambos os homens da sua vida mais do que conseguia expressar e seria capaz de qualquer coisa por ambos e especialmente por Tininho, de quem esperava o mundo.

E foi por tudo isto que a escolha do seu filho de entre todos os meninos presentes pelo entrevistador da televisão para dizer o que é que achava do início das aulas e da mensagem da ministra da educação, lhe soube como um prémio desejado e inesperado. Como se depois de todos estes anos, Deus lhe estivesse finalmente a piscar o olho e a mostrar que tudo via. E os olhos de Conceição encheram-se de lágrimas de incontida felicidade e orgulho perante o súbito estrelato do filho.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Ana Maria

No dia 1 de Novembro, Ana Maria saiu de casa com Rafael, segurando a sua mãozinha pequenina. Tinha um orgulho imenso no seu filho e na forma como, tão pequeno, era já tão atinado e responsável.

Ana Maria foi mãe já tarde na sua vida. Rafael foi um filho muito desejado e muito "batalhado". Ana Maria passou anos na tortura médica das fertilizações, foi a bruxas, perdeu a cabeça com mezinhas e métodos. Mas foi o Bom Jesus de Braga que lhe deu a criança que ela tanto amava e desejava e pela qual tanto sofrera.

Devota fervorosa, todos as noites rezava por um filho. Pedia essa bênção nas missas e rosários. Fez promessas incontáveis e nunca teve uma resposta um sinal de Deus, tendo chegado a considerar-se esquecida pelo Altíssimo.

Um dia, 6 anos depois de ter começado o seu martírio de tratamentos, de contagem de dias, de frustrações de uma ausência total de esperança, Ana Maria foi ao Bom Jesus de Braga sozinha.

Era um dia de semana, de tarde, chovia muito e não estava ninguém na nave central da catedral. Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e disse, entregue, humilde e resignada entre as lágrimas inevitáveis e grossas.

"Seja feita a Tua vontade, Senhor".

Nesse momento, abandonou-se e abandonou toda a esperança de ter um filho. Resignou-se à vontade divina, aceitando-se impotente, insignificante e infértil. E decidiu seguir com a sua vida de outra forma, se era essa a vontade de Deus.

Um mês depois estava grávida.

Rafael de Jesus foi recebido por todos com uma alegria incomensurável. A avó Lucinda desdobrou-se em trabalhos manuais e encomendas para fazer um enxoval minhoto digno do seu neto que mais custara chegar. O avô Luís, ficava com os olhos rasos de água sempre que falava no assunto. Os dois irmãos e a irmã de Ana Maria trataram dela como se fosse uma princesa e o advento de Rafael foi visto por todos como um milagre merecido e desejado que chegava a uma pessoa querida que todos tinham visto sofrer e chorar durante seis longos anos. Teresinha, a prima mais velha de Rafael foi escolhida para madrinha, por ser a mais velha e ajuizada, mas também por ter feito tantas vezes de filha para Ana Maria, quando a percebia mais desanimada e triste.

Depois do nascimento de Rafael, o clã subiu a pé o Bom Jesus em sinal de agradecimento. O bebé foi aí baptizado e todos os anos uma vela com o tamanho da criança era depositada no altar das ofertas do templo.

"Seja feita a Tua vontade" passou a ser uma espécie de lema informal de toda a família, mas especialmente de Ana Maria.

Rafael tinha agora sete anos e era a sua razão de viver. Era uma educadora extremosa, mimando mas impondo disciplina. O amor a Rafael era incondicional, mas o seu comportamento era necessariamente exemplar, porque Ana Maria acreditava que ensinar os valores e "dar educação" era a maior prova de amor que podia dar ao filho. Mesmo que às vezes isso lhe custasse horrores.

E Rafael sabia que entre os "obrigado", "se faz favor", "desculpe" e outras regras básicas, uma das mais importantes era nunca largar a mão da mãe quando fosse na rua.

Na fracção de segundo em que Rafael se soltou da mãe para ser brutalmente atropelado por um carro que não o viu chegar, Ana Maria viu o seu mundo seguir em câmara lenta.

Teve tempo para não compreender porque é que Rafael se soltava da sua mão se ele sabia que essa regra era muito importante, teve tempo para querer agarra-lo e ralhar com ele, teve tempo para ver o carro chegar, para ver o filho seguir em frente incauto e para ver a carinha dele uma última vez antes de acontecer o pior. Sem conseguir mexer um músculo.

Perante os seus olhos aconteceu tudo tão devagar como um aviso. E quando estava consumado, Ana Maria apenas conseguiu dizer no mesmo tom que o fizera 7 anos antes, para espanto e choque dos que o testemunharam,

"Seja feita a Tua vontade, Senhor."