sexta-feira, março 29, 2013

Julião

Julião era uma pessoa de mal consigo mesma.

Artista plástico, desde cedo demonstrara grande domínio das mais diversas técnicas expressivas e desde sempre ouvira fartos elogios ao seu trabalho, ao seu potencial e como eram esperadas de si coisas grandiosas.

Munido desta confiança que tinha algo de muito excecional para oferecer ao mundo, Julião estudou nas melhores academias de arte dentro e fora do país e investiu todo o tempo e todo o dinheiro ao seu alcance para ser o melhor possível.

E não se saía mal; era um aluno sempre no top três das turmas que frequentava. E assim, o artista confirmava a cada dia que passava que era muito bom e que tinha potencial para fazer coisas muito boas, quiçá para revolucionar o mundo da arte por inteiro.

Mas à medida que aumentava o nível de conhecimentos, aumentava também a expectativa que o jovem tinha sobre si mesmo, o quão exigente era para consigo próprio. E paralelamente, também o quanto se gabava.

Ao mesmo tempo que estes dois fenómenos aumentavam - a expectativa esmagadora de si sobre si mesmo e a forma empolgada e exagerada com que falava do que estava a fazer - crescia também o medo inconfessável de Julião de ser um fracasso, um falhado. De investir a sua vida toda para depois a montanha parir um rato.

Julião sentia que a na sua vida sempre tinha conseguido superar as provas a que se submetia, e estava habituado a ser testado. Mas não sabia o que fazer nem o que esperar do "mundo real" onde as regras nem sempre são explícitas - sobretudo no que toca à arte - e onde nem sempre é a qualidade artística pura e simples a determinar as oportunidades oferecidas.

Num exercício de procrastinação refinada e muito bem camuflada, refugiava-se na necessidade de se refinar para continuar sem apresentar uma exposição só sua. Participava em exposições coletivas ocasionalmente com boas críticas, mas dizia que queria "quando saísse para o mundo", sair logo a deslumbrar, a vencer, a não falhar.

Falhar, para si, não era admissível, simplesmente. Sempre fora o melhor, e a sua carreira profssional não tinha qualquer motivo para ficar atrás disso.

Assim, de cada vez que empolava mais o seu castelo de ar, mais duro se tornava para consigo, mais dificuldade tinha em trazer à luz do dia as muitas ideias que lhe fervilhavam na cabeça. Mais medo tinha de não conseguir, mais intolerante se tornava à crítica, mais impossível era olhar de frente para si mesmo.

E esta dualidade daquilo que não se faz e daquilo que já se devia estar a fazer, dividia-o e punha-o num conflito interno muito grande.

Julião vivia atormentado entre a pequenez que sentia de si nos momentos de introspeção e a megalomania que passava aos outros quando falava do seu percurso, fazendo sempre com que tudo parecesse muito melhor e maior do que era na realidade.

Não vivia em paz consigo mesmo porque tinha medo que as pessoas descobrissem que ele não era tão bom como dizia, que não tinha o sucesso que apregoava, que ele era mais um a lutar por um lugar ao sol, embora se recusasse a aceitar este facto tão vulgar, comum e... normal - todos os adjetivos com que não suportava identificar-se.

No encarnar desta personagem fabulosa e cheia de uma vida que ele não tinha e que se tornava mais e mais evidente à medida que o tempo passava para quem estava atento, Julião ia-se convencendo temporariamente da sua invulnerabilidade e ia sendo progressivamente mais desagradável com as pessoas que conhecia e as que lhe eram apresentadas sempre que estas estivessem frágeis ou demonstrassem insegurança.

Neste contexto, Julião oferecia com prontidão pérolas de sabedoria, receitas escrupulosas do que as pessoas deviam estar a fazer  com as suas vidas e não estavam a cumprir, entre comentários que podiam ser trocistas e que eram sempre de superioridade. Julião acreditava verdadeiramente que sabia muito da vida e que a sua visão do mundo era a mais correta e mais límpida e dizia tudo o que pensava com grande eloquência e convicção. E desta forma, fazia-as sentir-se pequenas e por vezes chegava mesmo a humilhá-las.

Não é que Julião fosse má pessoa, no fundo; simplesmente, as pessoas que têm egos muito grandes e obras muito pequenas precisam de diminuir os outros a fim de conseguirem resolver a sua angústia de poderem ser muito e não serem ninguém.



quarta-feira, março 20, 2013

Felicidade

"Felicidade sou eu." era a piada que Felicidade Graça, professora de Filosofia, gostava de dizer quando debatia o tema nas aulas.

E por egocentrismo ou afinidade de nomes, este era também o seu conceito preferido e a coisa que mais gostava de abordar nas aulas e até nas conversas em geral.

Gostava que a busca da Felicidade fosse o primeiro direito defendido pela Carta Universal dos Direitos do Homem. Gostava que a Felicidade fosse o bem mais precioso que qualquer pessoa pudesse almejar, sem que pudesse jamais ser comprada. E gostava de debater o conceito com as mais variadas pessoas - embora os amigos já a conhecessem de gingeira e por vezes virassem o bico ao prego, dizendo "para mim, a Felicidade és tu!" - e até tinha um amigo que acrescentava a graçola na mesma onda dizendo "e eu nunca hei de ficar sem mãe, porque a minha mãe chama-se Esperança e toda a gente sabe que a esperança é a última a morrer!"

Felicidade levava a felicidade tão a sério que as suas angústias existenciais tinham sempre a ver com se ela estava a dar o seu máximo, se estava a contribuir o suficiente para a felicidade alheia (sim, esquecendo muitas vezes a sua própria) - porque Felicidade acreditava que a felicidade suprema era fazer os outros felizes.

E perguntava-se muitas vezes se estava a dar o melhor de si, o seu máximo. E sabia que não - porque ninguém nunca atinge o máximo das suas potencialidades.

E preocupava-se.

Ao mesmo tempo, sabia-se insignificante, um grão de areia. E pensava: o que acontecerá quando eu morrer? Quem se lembrará de mim? Será que eu contribuí de alguma forma para fazer deste um mundo melhor?

Acalmava a sua angústia existencial dizendo que a vida se vive no presente, no aqui e agora.

No pretérito presente e no gerundio. No momento e no lugar em que se está e que se vai estando.

E que isso representa uma escolha. aliás várias escolhas, porque cada opção representa uma infinidade de outras opções que não se selecionou. É o que se chama em Economia o "custo de oportunidade".

Por exemplo, não adianta esperar que os outros se lembrem de nós quando nós desaparecemos por completo ou até quando simplesmente não aparecemos com regularidade. Não significa que tenham deixado de gostar de nós ou que a sua opinião acerca da nossa pessoa tenha mudado; significa sim, que não estamos à mão de semear e que eventualmente deixaremos de ser lembrados.

E inevitavelmente, com o girar do mundo, vamos deixando de estar e de ter "à mão de semear" pessoas que são importantes para nós, seja porque motivo for. E que à medida que o mundo vai girando, vamos percebendo que a "importância para os outros" é uma coisa apenas circunstancial; acontece em dados momentos da nossa vida que depois passam.

Mas que há pessoas que nos marcam tanto que mesmo tendo deixado de ser importantes para nós no nosso quotidiano presente, mantêm um lugar cativo nos nossos corações, por aquilo que connosco viveram ou viviam. E nós nos dos outros.

Porque o passado pouco importa. É o presente, o presente gerúndio que conta. Não é o que se fez. É o que se faz - e mais importante ainda, o que se vai fazendo.

Porque insignificante não é o mesmo que zero.

E por isso, Felicidade tinha momentos em que se contentava com a sua pequenez e a forma como estava sujeita à completa aleatoriedade da vida.

E então, percebia que felicidade é o cheiro do pão quente, é a sombra da árvore no jardim da biblioteca, é ver a ponte bonita de manhã, é fazer festas aos cães, é ver o sorriso dos sobrinhos e responder às suas perguntas, é dançar. é estar aqui, existir e ser grata.

"Felicidade sou eu."