terça-feira, novembro 19, 2013

Vitória

Era como se tivesse dois corações.

O de aqui e agora e o das coisas que já não eram.

Era isso, Vitória tinha dois corações.

E os corações eram como se fossem salas que precisam de ser habitadas, ou plantas que precisam de ser regadas, ou animais de estimação que precisam de alimento e atenção.

E quanto mais atenção dava a um coração, menos atenção podia prestar ao outro.

No dia em que  soube da morte da prima, ainda não tinha recuperado a perda do filho, mas tinha sido logo a manhã em que vira alguma esperança surgir no horizonte, em que achara que estava na altura de se levantar, de se erguer, de continuar com a vida, que já chegava de depressão.

A notícia da morte da prima idosa, porém, atirou-a de volta para o ponto de partida e fez com que as saudades do seu pequeno David aumentassem novamente, com que novamente ressacasse como uma viciada o seu cheirinho, o aconchego do seu abraço. E tudo o que precisava, negociava com os deuses, como se fosse perfeitamente razoável, tudo o que queria naquele dia era apenas um abraço para a ajudar a passar o dia, era só isso, só um abraço pequenino, não era pedir assim tanto.

A morte da prima, o passar da prima do coração-do-agora para o coração-do-que-já-não-é aumentava este último, e como a maior parte do coração-do-que-já-não-é de Vitória era ocupada por David, esta perda deixava-a triste por si só, mas sobretudo lembrava-a da falta que lhe fazia o seu menino.

Como se ao aumentar o coração-do-que-já-não-é, aumentasse o quanto vivia a saudade de tudo que já não exstia, de tudo quanto já não tinha. De todos os momentos perdidos, de todos os locais que nunca mais visitara, de todas as experiências que nunca podeira repetir, de todos os momentos que não foram vividos na sua plenitude. De tudo que em tempos fora e que agora, bem, agora já não era. e que engrandecia esse coração.

E como nem nos corações temos o dom da ubiquidade, nestas estadias de longa duração no seu coração de estimação, Vitória ia descurando o coração vital  do agora, desleixando-o e deixando-o cada vez mais vazio, abandonado, com ervas daninhas.

E nem se dava conta, porque no seu coração-do-que-já-não-é as paredes não tinham uma racha sequer,  tudo estava perfeitamente tratado e era um sítio tão melhor de se estar.

Mas se a vida se vive no sítio onde se tem o coração, Vitória tinha vindo a deixar de estar no aqui e agora para estar numa terra de nenhures, que já não é, e ia falando com os seus mortos, os seus amigos distantes, aqueles que a habitavam de forma tão clara, mas que às pessoas aqui e agora eram invisíveis.

E isto era um verdadeiro problema para as muitas pessoas que aqui e agora a amavam e a sentiam cada vez mais distante, por muito que a tentassem agarrar.


segunda-feira, novembro 11, 2013

Cecília

Eram livros velhos o que lhe restava. Eram o que ninguém tinha querido.

Tinham levado o relógio bonito do avô que ela tinha cuidado e tentado que arranjassem, que era a única que lhe dava corda. Tinham levado as colchas de linho, as rendas da avó, os bordados da mãe, as malhas da madrinha.

Tinham levado o ouro da família - esse fora o primeiro a ir. Tinham levado a mobília, aos poucos, peça por peça, escolhendo as coisas boas, deixando-lhe os monos.

Tinham levado o serviço de cozinha, as tigelas de marmelada (parece que as tigelas que há mais de 30 anos tratavam com tão pouca atenção eram "louça de Sacavém, muito valiosa").

Tinham levado o faqueiro - os faqueiros: o bom, que estava numa mala, mas também, o que estava a uso na cozinha. Os copos de cristal - mas ela sempre contara com isso e não eram estas coisas que a incomodavam que não fizessem parte da sua vista, que não lhe estivesse mais à mão.

Mas deixaram os livros velhos. Os bons, de capa dura com ilustrações a cores, levaram - ela não sabia bem porquê, porque sabia que eles iam permanecer fechados e empoeirados numa qualquer prateleira esquecida.

O que lhe deixaram foi os livros amarelos de papel fraco e mal cortado, aqueles que não ficavam bem nas estantes, que estavam manchados na capa e nas folhas com humidade, que tinham sido rasgados ou riscados por alguém, talvez por uma criança mal mandada.

Deixaram-lhe os podres e estragados - os livros e os monos. Tudo o que não queriam. Os sofás velhos e os móveis carunchosos. e foram-se embora para as suas casas boas com promessas de que haviam de ligar e aparecer muitas vezes. às vezes. de vez em quando. bem, que não a haviam de esquecer. e que qualquer coisa, também, era só ligar, já sabia.

e ela ficou-se no seu canto sem voz, com o que lhe restava e que agora era seu: os monos e os livros amarelos e velhos. e as revistas passadas.


Primeiro entristecida e depois sem mais para onde se virar, decidiu-se a arranjar os livros velhos. Antologias literárias de currículos escolares do tempo do estado novo, com anotações infantis da mãe e das tias; fasciculos de cozinha de onde saiam os desenhos que as crianças dedicavam às matriarcas com carinho e amor; atlas desatualizados onde se tinham deixado esquecidas fotografias de família; um molho de cartas de amor por entre romances de cordel com manchas de humidade; receitas culinárias escritas em folhas em branco de livros avulsos e até uma ou outra revista marota do século passado...

E aos poucos, a filha "que ficou para tia", a que cuidou de toda a geração e que havia de não ter direito a quase herança nenhuma, foi percebendo que afinal, afinal, a sorte até tinha estado do seu lado.

Consigo tinham permanecido as coisas que ninguém queria, como toda a vida. Também a ela lhe tinham entregue os pais e tios quando já não "podiam tratar deles" - e ela com todo o amor que tinha em si foi cuidando deles com afã, amando-os com todos os cantinhos do seu coração.

E o que lhe deixavam, a coberto do pó e do amarelo dos livros era nada mais, nada menos que o maior dos tesouros, eram os melhores bocadinhos da alma dos seus velhinhos queridos, as suas preferências culinárias, os seus comentários, as listas de compras, as suas preocupações, o seu dia a dia, como se os pudesse ter consigo mais um pouco nos bocadinhos que descobria por entre a tralha.

Os segredos de cozinha da avó, acabaria por descobrir aí. Bem como, aos poucos, mais uma série de segredos de família. e eventualmente, por entre um caderno de recortes, até uma coleção muito antiga e valiosa de selos que o tio Arnaldo, um famosíssimo colecionador, já senil deve ter confundido e tirou do sítio onde guardava essas preciosidades.

E que, depois de muito se debater, concluiu que era sua, sem qualquer dúvida, estava no lote de coisas que os filhos do tio Arnaldo teriam deitado ao lixo não fosse ela estar ali para lhes poupar até mesmo essa viagem. E seriam esses selos que lhe haviam de valer o suficiente para se livrar dos monos e da casa com humidade, para se mudar para um sítio com sol e viver a vida que teriam querido os pais e os tios, longe da família que a usava e cuidando finalmente de si, numa casa junto ao mar, com uma estante grande de livros velhos e estragados, onde revisitava os "seus velhinhos".


domingo, novembro 03, 2013

César e o Sr. Sá

Ela falou dele e tratou-o pelo segundo nome.

O mundo de César parou nesse momento.

Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.

Ela tratou-o pelo segundo nome com a naturalidade de quem o faz com frequência; disse Filipe em vez de Herculano e continuou a falar normalmente, sem interromper a linha de raciocínio.

E César, que se preparava para entrar no carro ficou parado no seu incêndio mental, na inflexão momentânea que estas coisas demoram aos olhos dos outros.

César sempre fora um homem de detalhes. Acreditava piamente no credo que diz que Deus (ou o Diabo!) está nos detalhes e era meticuloso no que fazia. Aliás gabava-se de preferir ter pouco e fazer pouco e fazê-lo bem, do que o contrário.

Não gostava de tralha.

Fazia-o não porque fosse uma pessoa vazia, mas porque pelo contrário, tinha tantas ideias, tanto que passava na sua cabeça, que este minimalismo o ajudava a lidar com a muita informação que ia armazenando – nem sempre por vontade sua.

César era uma daquelas pessoas que vive no momento e é incapaz de esquecer uma conversa, uma história, um detalhe. Não era uma habilidade treinada, era algo que lhe acontecia naturalmente.

Não era raro surpreender as pessoas que encontrava na rua, a meio da conversa de circunstância perguntando como estava a mãe, que tinha sido “operada, não era? Como correu? Ela sempre se deu lá com o médico?”. As pessoas, que estão pouco habituadas a ser lembradas nos pequenos detalhes – que no fundo revelam as grandes coisas - por quem não lhes é íntimo, desenvolviam por ele um carinho fácil e a crença de que era “muito inteligente”.

O que se passava na sua cabeça não tinha grande mistério. Estava a pensar noutra coisa e depois aparecia a Tânia. A cabeça dele fazia: – “Eu conheço esta pessoa… Quem é esta pessoa? ah! Lembro-me dela, conheci-a na rua Miguel Bombarda, ela estava com o Herculano e estivemos um pedaço a falar de operações porque a mãe dela ia ser operada e estava com medo porque não gostava do cirurgião. Não me lembro do nome dela.”

O passo seguinte, naturalmente, era perguntar pela mãe da rapariga a meio da conversa. A rapariga que vinha distraída pela rua provavelmente estava nesse momento a olhar para ele e fazer um enorme esforço para tentar lembrar-se do nome dele. Era o tipo que conhecera quando estava com o Filipe e estiveram montes de tempo à conversa, “como é que era o nome dele, como é que era? Ai.. não me lembro!... Não me lembro… Não me lembro…”

Conclusão, Tânia ficava com a sensação de que realmente não tinha sido muito fixe, como é que podia não se lembrar de nada daquele moço tão simpático, que ainda por cima lhe perguntava pela mãe – como é que ele se lembrava daquela conversa? Que coisa incrível!" – e o facto de ele ter pedido desculpa que não se lembrava do nome dela, passava completamente ao lado.

Um processo simples. E que ia ainda mais construindo a “biblioteca de factos do quotidiano das pessoas à minha volta, próximas ou não”, bem como “a pilha de conhecimento dos factos mais inúteis do mundo” (que era como César chamava carinhosamente aos infofacts que lá ia coleccionando da mesma forma) e que lhe rendiam a tal fama de inteligente. 

“Acho uma estupidez os meses não serem só o número, nunca me lembro do número que corresponde a cada mês, pá. E que lógica tem chamares a um mês setembro, se depois lhe dás um número que não é o sete?” queixou-se ela, certa vez. César respondia distraído a estas coisas, sem parar de lavar a loiça “originalmente o ano tinha dez meses, mas depois Júlio César quis ter o seu próprio mês e criou Julio - julho, o imperador Augusto que se seguiu quis fazer o mesmo e criou agosto, e é por isso que setembro não é o mês sete, mas nove, outubro não é oito, novembro não é nove… e dezembro não é dez.”

Ou seja, no fundo, César sabia que não era tão inteligente ou atencioso como os outros pensavam, tinha era a sua mente era habitada por um bibliotecário particularmente meticuloso, a que ele se referia carinhosamente por Sr. Sá (por ser a primeira parte da palavra Sábio, a quem faltava a segunda, “bio”, a vida, porque a ninguém adianta ter um "Sr. Sá" se não viver verdadeiramente… Permanece tudo como facto, conhecimento nunca passa a sabedoria!).

No momento em que Joana Amélia tratou o amigo comum por Filipe e não por Herculano, o Sr. Sá puxou o arquivo e mostrou-lhe o dia de aniversário e a conversa que tinham tido no carro sobre a forma como Joana tinha ficado a falar com Herculano. Lembrou-lhe que ele não estava inquisitivo nem ciumento e ela reagiu de forma intempestiva e defensiva, que disse a palavra (sublinhada pelo Sr. Sá) Herculano de uma forma muito pronunciada, ainda a mastigar cada sílaba, como se estivesse a adaptar o aparelho fonador a uma palavra estrangeira. Lembrou-se na altura de pensar que o facto de ela estar um pouco bêbada se calhar também não a ajudava.

Depois, o Sr. Sá, pegou noutro arquivo que tinha já em cima da mesa, como se já o tivesse tentado mostrar várias vezes, da conversa do dia em que César conhecera Tânia e como tinham brincado com o facto de ela tratar Herculano por Filipe – na altura ele tinha feito uma piada com qualquer coisa do género “rápido, disfarça, pode ser que ele não repare que te enganaste no nome”. E de como tinha ficado subentendido que esse tratamento derivava de uma intimidade de cama.

O Sr. Sá depois continuou com os ficheiros que já estavam abertos em cima da mesa grande em mogno e mostrou-lhe a conversa que Joana Amélia tinha puxado cerca de um mês antes da noite de aniversário, sobre um amigo que contara que não-sei-quem do seu passado (os nomes sempre ilegíveis na letra do Sr. Sá) andava a espalhar rumores sobre ela e que ela só queria esclarecer tudo e preparar César se "coisas absurdas sobre a sua pessoa chegassem aos seus ouvidos" ou se alguém fosse falar com ele, porque havia uma história qualquer com um ex esquisita. César não tinha ligado muito à conversa, porque percebera que Joana estava a preocupar-se demasiado com a influencia que outras pessoas poderiam ter sobre a opinião dele e ele era uma pessoa leal, isso não lhe interessava nada. Mas esta incapacidade, este handicap, esta deficiência enfurecedora de não conseguir esquecer detalhes, reavivava-lhe todos pormenores que tornavam cada vez mais implausível que Joana não se estivesse a referir a Herculano naquele rosário desfiado - e que talvez ela não fosse assim tão inocente e aquela fosse apenas uma manobra.

E esta era sempre a parte de juntar as peças de um puzzle de factos do Sr. Sá em que César dizia a si mesmo que, realmente, lá muito esperto não era, porque aquela realidade incontornável e óbvia tinha demorado meses a fazer faísca.

E o Sr. Sá, a verdade é que realmente fazia jus ao seu nome, dava-lhe os factos, mas nunca lhe dizia o que fazer depois. 

César parou-se antes de entrar para o carro. Ainda com os ficheiros do Sr. Sá abertos e sem conseguir acreditar no que o puzzle parecia querer dizer. Como de costume pensou “Se calhar, estou a ver mal. Isto não pode estar certo.”

Arranjou uma desculpa para não ir com ela no carro, que a ele lhe pareceu plausível e despediu-se como de costume. Pôs o corpo em piloto automático: “para casa a pé”, enquanto se sentava à mesa calmamente com o Sr. Sá a ir buscar-lhe todos os ficheiros que ele pedia e mais alguns que ele já tinha de reserva para aquela situação.

Chegou a casa e foi consultar o Sr. Sá da internet: o Facebook. Joana Amélia era amiga de Herculano Filipe – tudo certo, eles conheciam-se de vista havia imenso tempo e tinham-se tornado amigos no seu aniversário. O Sr. Sá pigarreou. César foi ver a semana da conversa manhosa. Um discreto comentário jocoso de Herculano numa fotografia dela, mencionando um vinho - “Papa-figos” - pelo qual Joana andara obcecada naquela altura e que depois lhe passou.

O Sr. Sá olhou por cima dos óculos para César, como quem pergunta se já pode arrumar a meia biblioteca que este lhe desarrumou à procura da prova de inocência de Joana, encontrando a cada passo mais uma prova da implausibilidade da mesma.

Com os olhos molhados, cabisbaixo, César acedeu, agradecendo o trabalho e paciência do funcionário.

E sentou-se na soleira da porta de casa sem saber bem o que fazer nessa situação, em que não tinha encontrado Joana em flagrante e não tinha nada em concreto para sustentar o que sabia, tantos meses depois.

E o entanto, o que sabia era completamente incontornável: Joana mentia e o Sr. Sá iria sempre apanhá-la, mas nunca "com a boca na botija".

E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).

E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.