quarta-feira, novembro 23, 2011

Marília

Marília era uma brisa do fim da primavera. Era a luz da manhã que entrava na janela do quarto preguiçoso e em silêncio.

Marília era o silêncio e a aceitação. Era a paz. Era a Mona Lisa sorridente que nunca faz perguntas.

E as pessoas contavam-lhe segredos, todos os segredos. E no fim sentiam-se leves como ela lhes parecia. Sentiam-se quentes como a luz do verão que entra no quarto num dia preguiçoso e sem correrias.

E Marília guardava-lhes os segredos sem ficar pesada.

Ficava-lhes com as coisas com que elas não conseguiam andar e fazia-as sentirem-se aceites, normais, validadas.

Não eram estes os segredos que lhe pesavam.

Os segredos que pesavam eram apenas aqueles que não eram seus nem tinham sido partilhados consigo. que tinham sido descobertos por vias travessas, ilícitas, e que não podia revelar.

E que portanto pesavam de forma dobrada: porque os conhecia e porque não podia admitir que os conhecia.

E pesavam-lhe toneladas. Como se fosse uma máscara de ferro o sorriso falso e os acenos de cabeça que dava, sem poder admitir que sabia o que sabia, sem poder fazer nada para aliviar a dor das pessoas que amava.

E eram tão feios e pesados.

A mãe tinha um diário de quando era criança e adolescente. Marília descobriu a sua existência por mero acaso e a mãe fê-la prometer, jurar até, que jamais o abriria, que nunca o leria. A mãe admitia que não era capaz de se desfazer desse objeto tão detestado, mas não o queria jamais partilhar com ninguém.

E um dia, a jovem Marília, inocente e curiosa tropeçou nele numas arrumações em casa, escondido atrás da pilha das toalhas de rosto por estrear. Sozinha e com o fruto proibido nas mãos não foi capaz de resistir e quebrou a sua promessa.

E nesse dia descobriu as coisas com que nunca sonhara, as coisas que jamais suspeitara e que explicavam tanta coisa. Soube das violações, do peso da culpa das vítimas na primeira voz, da luta para se reconstruir, da necessidade de disfarçar, da incredulidade dos outros, da convivência forçada com o agressor, do asco dele, do nojo de si mesma e da vergonha. do medo. do medo. do medo do agressor. do medo da reação dos outros. do medo da culpabilização. do medo da discriminação. do medo das consequências todas para si e para os outros. o medo de ter de contar tudo e reviver o pesadelo. e que de si duvidassem depois do esforço e da vulnerabilidade. o medo da pena. da vergonha. Da necessidade de proteger todos do seu horror, de o guardar para si, de não o partilhar para não pesar mais ninguém. de não contaminar mais ninguém com o seu segredo feio, sujo e familiar.

Nesse dia, Marília sentiu só choque e horror, como se tivesse ficado anestesiada de sentir qualquer outra coisa. Foi invadida por estes sentimentos durante dias e teve insónias e pesadelos todas as noites desse mês. Pensou como poderia ajudar a mãe e concluiu que o segredo não era dela, e que ela não tinha o direito de lho pedir. Tentou deixar a porta aberta, dizer coisas sobre temas parecidos em que se colocava do lado da vítima sem reservas. Mas a mãe nunca se descoseu.

Levou anos a ficar em paz com o assunto, mas conhecia a mãe o suficiente para saber que ela só falava do que queria e que a respeitava o bastante para não a contrariar. Especialmente numa ferida que continuava tão aberta como aquela. E sabia que aquela invasão e quebra de confiança seriam uma traição imperdoável aos seus olhos.

E assim, Marília aprendeu que há coisas que não se pedem e muito menos se roubam. Que a curiosidade nem sempre é boa conselheira. E foi esta a epifania dolorosa que lhe trouxe o ar de paz que exalava e a capacidade de não perguntar deixando sempre a porta aberta para aqueles que se quisessem abrir.

Aperfeiçoou continuamente esta arte de silêncio, serenidade e calor o resto da vida, na esperança que um dia os segredos que roubara lhe fossem oferecidos e ela pudesse enfim ser redimida da sua promessa quebrada.

segunda-feira, novembro 14, 2011

5 irmãs

O verbo morrer, em latim, só tem voz passiva.

Talvez os romanos entendessem na sua imensa sabedoria que ninguém diria "morri" sendo esse facto verdade, porque pelo menos até àquela altura não havia histórias de gente que tivesse regressado dos mortos para contar como tinha sido.

Talvez o verbo morrer completo, com voz ativa, como presente na Língua Portuguesa tenha sido fruto da nossa herança Cristã-Católica, para que Cristo ressuscitado pudesse dizer ele mesmo "morri e ressuscitei".

Ou talvez porque, na verdade, a morte - auto-infligida ou não - e sendo uma coisa que nos acontece a nós, é uma coisa que fazemos aos outros. "Morreu-me a minha prima" é uma frase perfeitamente passível de ser dita numa conversa de desabafo entre velhas amigas que se encontram na rua.

Porque a morte de alguém querido é como que o arrancar de um pedaço de nós, um pedaço que não exonerámos, um pedaço que nos foi tirado com maior ou menor violência, estando nós a contar com isso ou não.

Eram 5, as irmãs.

O pai, de nome Orfeu, decidira que os filhos teriam nome por ordem alfabética, coisa a que a mãe inicialmente achara graça.

Só tiveram filhas. Chamaram-lhes Alcina, Expedita, Isabel, Olga e, quando a mãe já desesperava porque o pai queria chamar Umbelina à última, uma velha superstição veio em seu auxílio. Uma que dizia que um casal que tivesse 5 filhas seguidas devia chamar "Eva" à quinta (se tivessem 5 rapazes seguidos, naturalmente, o quinto deveria ser "Adão"). Era uma superstição religiosa e invocando a primor católico e o rigor com que criavam as filhas e viviam a sua vida, Maria do Carmo venceu a disputa.

E assim as irmãs ficaram completas.

Alcina morreu muito nova, ainda não tinha 6 anos.

Eva foi a segunda que perderam, não pela morte, mas pelo Alzheimer. Eva existiria a partir dos 40 e muitos anos apenas por flashes e cliques em que voltava a ser quem era, ou a lembrar-se dos filhos, dos outros e mesmo de si. A doença esquecedora roubaria Eva - curiosamente, a de boa memória. aquela a quem se perguntavam as datas de aniversários. a que era incapaz de esquecer um facto, um bom gesto ou um rancor.

Expedita foi a terceira a partir. Tinha meros 67 anos e morreu de um AVC.

Isabel partiria ano e meio depois de Expedita de uma doença fulminante. Libertou-se da prisão em que se tornara o seu corpo, mas no dia do funeral, o marido, com quem estivera casada quase 50 anos, desolado, perdido, de coração ainda apaixonado partido, suspirava entre as lágrimas "Nunca pensei que ela se me fosse embora tão depressa".

E assim as irmãs deixaram Olga sozinha. Por ordem alfabética, como o pai teria querido, mas sem desrespeitar a ordem cronológica, como teria sido a vontade da mãe.

quarta-feira, novembro 02, 2011

Sr. Zé (2)

A enfermeira bonita de mãos suaves perguntou-lhe se estava bem assim, referindo-se à almofada.

José respondeu prontamente que estava melhor se ela estivesse em cima dele, referindo-se à enfermeira.

Parece que o termo médico para a sua condição era "frontalizado". Mas para José o sabor da palavra era apenas liberdade e intensidade. Como se tivesse voltado a ter 5 anos e pudesse viver cada momento nele mesmo e como se apenas esse mesmo instante e as suas vontades momentâneas contassem.

Queria todas as coisas com intensidade e não as julgava pela pertinência. Queria comer as enfermeiras, pois queria. Queria duas sobremesas. queria. Queria um copo de vinho agora? sim. Queria fazer as necessidades naquele momento. e fazia.

A família, depois de tantos anos a tomar conta dele e dos seus incorrigíveis hábitos de alcoólico deixou de ter capacidade de gerir esta fase da vida de José em que na segunda feira se encontra o avô nu no jardim a cumprimentar os carros e a perguntar se "nunca viram?", na quarta-feira, o cabelo foi cortado à tesourada por si mesmo e na sexta-feira está a chorar baba e ranho porque se lembrou das saudades que tem da falecida.

Não percebia porque é que as pessoas se afastavam dele, porque é que não o podiam deixar fazer tudo o que queria. Não percebia porque é que as coisas não podiam ser como ele queria, ele era mais velho que elas afinal, olha que porra! Ele é que sabia!

E a enfermeira bonita de mãos suaves dizia "Sr. Zé, mais respeitinho, sim?" e conversava pacientemente com ele, e fazia-lhe perguntas sobre a vida dele. E no momento a seguir a enfermeira bonita de mãos suaves já lhe fazia lembrar mais a neta dele. e que saudades que tinha da neta. Quase tantas como da sua Laurinda, aquilo é que era uma mulher, já não se fazem daquelas.

Enfermeira, dá-me um copinho de vinho?
Não Sr. Zé, sabe que aqui no hospital não temos disso.
Ah está bem. E uma bolacha?
Vou ver Sr. Zé.

E vinha triunfante, a enfermeira, com uma bolacha.

"É o nosso segredo, está bem, sr. Zé? Senão daqui a nada tenho toda a gente a pedir-me bolachas, está bem?"

E aquela bolacha sabia-lhe como a melhor coisa do mundo por momentos. Mesmo se a seguir a decidisse atirar para o chão. O momento - cada momento - era dele, como afinal só o pode ser com as crianças e os velhos frontalizados, para quem nada mais tem verdadeiramente importância, nada mais realmente existe.


Oasis - Whatever

D. Elisa

Moveu-se debilmente para o centro do palco e recebeu o aplauso com graciosidade, mesmo sem perceber exactamente porque é que a aplaudiam.

Cada pessoa que por ela passava fazia a mesma pergunta "lembra-se de mim?" e depois tentavam identificar-se de tal forma que ela os reconhecesse. Não reconhecia. A D. Elisa mal se lembrava dos filhos e dos netos, quanto mais das pessoas que um dia povoaram a sua vida e que ela enriquecera de forma inquantificável?

A D. Elisa foi sempre o pilar da família, o motor das vidas de todos que a rodeavam e até aos oitenta e tal anos era ela que fazia os licores para o natal, os almoços de domingo, as limpezas da casa. Dava aulas de música em casa e era incansável. Recitava as lições de teoria musical de cor

"Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Ioannes

é o poema em latim que está na origem dos nomes que damos às notas musicais..."

Dirigia o coro e era ela que comprava os rebuçados de mentol do Lidl, fazendo a longa caminhada de sua casa à zona industrial a pé para que nada faltasse "aos meninos". Cantava, tocava piano, e dava aulas de tudo isso enquanto fazia um pouco de avó para todos com as suas histórias empolgantes de "quando era nova".

E cuidava do marido doente, fazendo crer a todos e até a ele que nada era muito grave, que tudo se passa nesta vida.

Quando o marido morreu, perdeu o norte. Como se tivesse perdido o propósito. Como se ela, o motor, tivesse ficado de repente sem ter para onde ir, em ponto morto e sem gasolina. E ela que havia sido sempre a pessoa de boa memória, aquela a quem se perguntava "quem é fulana" para se ficar a saber não só uma completa biografia como uma breve árvore genealógica e as peripécias mais relevantes da família em geral, começou a apagar a sua vida aos poucos.

Começou com as pessoas que via pouco, passou aos conhecidos da rua, a seguir para os alunos e ex-alunos que conhecera e com os quais convivera durante décadas, depois para os alunos recentes, depois para as pessoas com quem convivia diariamente e por fim para os netos e para os filhos.

Lembrava-se que tinha de ir ao cemitério.

Nunca se lembrara das letras das músicas e começou também a esquecer a música.

Desvaneceu da sua memória a sua maior riqueza: as coisas que construiu, as suas experiências diversificadas, ricas e enriquecedoras. As vidas que tocou.

O dia da homenagem foi confuso para a D. Elisa, que, no entanto, não tinha esquecido como se está num palco e o que isso significa em geral. Que não esquecera que um artista agradece sempre o aplauso com humildade. Que faz sempre uma vénia.

Mas que não conseguia perceber porque a beijavam e abraçavam tantos estranhos, porque é que tanta gente insistia para que se lembrassem dela. Porque é que a sua importância era tão tamanha.

terça-feira, novembro 01, 2011

Romeu e Julieta

Romeu e Julieta eram uma entidade una e indivisível para todos os que os rodeavam. Trabalhavam na mesma empresa, tinham os mesmos interesses, eram similares em quase tudo e completavam-se no restante.

Se no início era fascinante verificar o sincronismo da relação que era toda ela rosas, com o passar do tempo esta caracterísitica tão especial tornou-se em algo banal e apenas mais um fait divers para todos. um dado adquirido.

Romeu e Julieta passavam juntos muitas horas do dia e muitas horas da noite. E a cumplicidade síncrona começou a tornar-se saturação.

Deitados de costas um para o outro, na cama, Romeu questiona Julieta se ela tem de ser tão dura com os miúdos, se a vida tem de ser assim tão dificil. E Julieta responde recriminando que se não for ela a impor disciplina ninguém o faz.

Nesse dia, Julieta virou-se para o filho de ambos e disse: "e bato-te na cara que é para toda a gente saber que o João é um menino mau e que se porta mal, por isso a minha mãe tem de me bater na cara". João contorceu-se entre o querer continuar a desafiá-la como fazem as crianças de 5 anos e a corda sensível em que ela tocou, a sua vaidade.

Romeu interveio dizendo que Julieta não era clara na disciplina que empregava, que escusava de ameaçar o miudo se a seguir o deixava fazer tudo o que ele quisesse. E Julieta num tom calmo de agressividade absurda contestou com "queres falar de disciplina? quem é que faz downloads para o João? hã? e lhe dá videos e depois temos de o por de castigo porque não se pode jogar à semana? hein?"

Deixou Romeu sem resposta, numa situação em tudo similar à de João: querendo continuar a desafiá-la, mas agredido na sua corda sensível. Tal pai, tal filho.

Julieta tinha tanto de meiga como de cobra e Romeu tinha tanto de manso como de escorpião. Iguais os dois, farinha do mesmo saco.

Nos últimos tempos já nem se importavam muito com disfarçar. Quando alguém elogiava Maria a filha de ambos, dizendo que era "tão bonita" e que "saía mesmo à mãe", Romeu respondia com "é sai a ela. mau feitio e tudo. griiiiiiita que se farta, parece uma desalmada."

Na cama, voltada de costas para Romeu, Julieta recrimina o marido de a deixar a braços com todas as decisões importantes, com todas as dificuldades e se escapar para o seu mundo, com os seus amigos e as suas coisas. Que estava farta de remar ela o barco, que já não podia mais de cansaço e saturação.

E ainda não o dizia, mas esta saturação era tanto da vida como dele, que estava já na fase em que até o ar a passar nas narinas cheias de sinusite e os estalinhos que Romeu dava por causa desta condição a enervavam. Que a forma como ele punha a manteiga no pão e depois a faca cheia de migalhas de volta no pacote da manteiga a irritavam além das suas forças. Que o casaco amarfanhado em cima do sofá todos os dias a deixava fora de si. Que o seu cheiro lhe era insuportável. Que a forma de ele a tocar - nas poucas vezes em que o fazia já - a forma de ele a chamar, a forma de ele existir eram demais para si e para o que podia aguentar.

E o seu amor juvenil que se tornara lendário, vencendo tudo e todos desgastou-se como água mole em pedra dura, com o passar dos dias.

Julieta era uma déspota, Romeu era um morcão.

E o seu casamento tinha os dias contados.