quarta-feira, novembro 02, 2011

Sr. Zé (2)

A enfermeira bonita de mãos suaves perguntou-lhe se estava bem assim, referindo-se à almofada.

José respondeu prontamente que estava melhor se ela estivesse em cima dele, referindo-se à enfermeira.

Parece que o termo médico para a sua condição era "frontalizado". Mas para José o sabor da palavra era apenas liberdade e intensidade. Como se tivesse voltado a ter 5 anos e pudesse viver cada momento nele mesmo e como se apenas esse mesmo instante e as suas vontades momentâneas contassem.

Queria todas as coisas com intensidade e não as julgava pela pertinência. Queria comer as enfermeiras, pois queria. Queria duas sobremesas. queria. Queria um copo de vinho agora? sim. Queria fazer as necessidades naquele momento. e fazia.

A família, depois de tantos anos a tomar conta dele e dos seus incorrigíveis hábitos de alcoólico deixou de ter capacidade de gerir esta fase da vida de José em que na segunda feira se encontra o avô nu no jardim a cumprimentar os carros e a perguntar se "nunca viram?", na quarta-feira, o cabelo foi cortado à tesourada por si mesmo e na sexta-feira está a chorar baba e ranho porque se lembrou das saudades que tem da falecida.

Não percebia porque é que as pessoas se afastavam dele, porque é que não o podiam deixar fazer tudo o que queria. Não percebia porque é que as coisas não podiam ser como ele queria, ele era mais velho que elas afinal, olha que porra! Ele é que sabia!

E a enfermeira bonita de mãos suaves dizia "Sr. Zé, mais respeitinho, sim?" e conversava pacientemente com ele, e fazia-lhe perguntas sobre a vida dele. E no momento a seguir a enfermeira bonita de mãos suaves já lhe fazia lembrar mais a neta dele. e que saudades que tinha da neta. Quase tantas como da sua Laurinda, aquilo é que era uma mulher, já não se fazem daquelas.

Enfermeira, dá-me um copinho de vinho?
Não Sr. Zé, sabe que aqui no hospital não temos disso.
Ah está bem. E uma bolacha?
Vou ver Sr. Zé.

E vinha triunfante, a enfermeira, com uma bolacha.

"É o nosso segredo, está bem, sr. Zé? Senão daqui a nada tenho toda a gente a pedir-me bolachas, está bem?"

E aquela bolacha sabia-lhe como a melhor coisa do mundo por momentos. Mesmo se a seguir a decidisse atirar para o chão. O momento - cada momento - era dele, como afinal só o pode ser com as crianças e os velhos frontalizados, para quem nada mais tem verdadeiramente importância, nada mais realmente existe.


Oasis - Whatever

3 comentários:

Anónimo disse...

Que delícia! És tão sensível ao ponto de transmitires exatamente o que sinto na minha profissão. Por isto e por muito mais, adoro-te muito.
Beijão da tua Docas.

Helena Martins disse...

Amor, agora que já se sabe que a enfermeira bonita de mãos suaves és tu... não sei como é que vai ser :)) *******

Dri disse...

Gostei muito deste! Delicioso, mesmo : )