sexta-feira, dezembro 30, 2011

Flávio

Flávio tinha um problema. Se há pessoas que de nervosas coram, outras que ficam às manchas, outras que suam ou que ficam com as mãos frias... A Flávio o nervosismo dava "a volta à barriga".

Em periodos de grande tensão dava por si a ter de ir muitas vezes e com muita urgência à casa de banho e - quando conseguia controlar o "ir à casa de banho" propriamente dito - o seu organismo vingava-se dele libertando ventosidades tão silenciosas como letais que o pobre Flávio não conseguia controlar.

Lembrava-se de situações em que lhe sucedera algum flato involuntário publicamente e em que outras pessoas comentavam "eh pá, não sei quem largou isto, mas é melhor ir ao médico, que esta pessoa está podre por dentro! Isto só pode ser alguém muito doente. A morrer, mesmo."

Esta sua característica, embora não fosse especialmente usual porque Flávio era uma pessoa calma que vivia uma vida o mais possível pacata, causava-lhe grandes embaraços e vergonhas e fazia com que ele tivesse grandes problemas no plano romântico, já que nada o deixava tão nervoso como estar perto da pessoa amada.

Por esta mesma situação de há uns tempos para cá, os ensaios do coro tinham-se tornado uma verdadeira tortura. Conhecera Marina havia algumas semanas e já estava caidíssimo pela contralto que por sorte ou por azar ficava muitas vezes à sua beira nos ensaios.

Dada a antiguidade da sua condição, Flávio já dispunha de uma série de técnicas para evitar o embaraço de lhe ser apontado o dedo pelo mau cheiro de uma sala inteira cheia de gente. Contraia os glúteos, sustinha a respiração, apertava a barriga, cruzava as pernas, ou concentrava-se numa coisa completamente diferente - como por exemplo a cadela vadia "Pipoca" que a D. Elisa havia acolhido e que assistia a todos os ensaios do coro com grande atenção no canto da sala. Se a situação fosse completamente impossível de controlar, usava o plano B de ir à casa de banho ou à varanda ou ao pátio, ou a qualquer sítio onde não estivesse mais ninguém. Se isto não fosse possível, tinha ainda a opção de circular tanto quanto pudesse e de forma estratégica de modo a que não se percebesse quem estava na origem do intenso mau cheiro.

Lembrava-se entre o ruborescer e o sorrir de malandro da festa de natal da empresa, no ano em que se apaixonara pela secretária da direção. Teve um ataque incontrolável de gases e não podia sair do recinto porque chovia desalmadamente. Nesse dia deambulou pela festa de forma inteligente de modo que se instalou nos presentes a ideia de que o cheiro fétido que se entranhava na sala só podia ser do próprio edifício. E lembrava-se bem da cara do administrador que se virou para o seu chefe e exclamou "ó engenheiro, então o problema da fossa não tinha ficado resolvido na semana passada??"

Mas neste momento a situação era completamente diferente e muito mais dramática. Não havia engenheiro para lhe arcar com as culpas e Marina estava mesmo ao seu lado enquanto cantavam o Haleluia de Haendel. Como esta nunca levava as partituras para os ensaios, estava a ler ora pela partitura de Flávio, ora pela da colega do lado.

Flávio estava literária e literalmente num aperto. O contacto tão próximo com a amada, que lhe roçava displicentemente o braço e lhe sorria com cumplicidade por este condescender na sua distração e a deixar ler pela sua página, acelarava-lhe o coração e demais processos fisiológicos.

Respirava pausadamete tentando controlar-se. Distraía-se olhando para a cadela que era castanha e patusca. E rezava para que o Haleluia acabasse rapidamente para que ele pudesse ir à casa de banho.

Já quase no final da peça, a mestrina virou-se para eles ordenando "Fortissimo!", e a exigência de forçar os músculos da garganta e peito para cantar mais alto, nos derradeiros "Haleluias" tornaram inevitável a catástrofe.

Todo o esforço foi por água abaixo, à medida que o gás que reprimira desde o início do ensaio, fermetando e ganhando uma potencia verdadeira épica se libertava à sua rebelia, em pleno climax do Haleluia.

A música acabou e começaram os risinhos. Os companheiros de coro entreolhavam-se e sorriam, tentando controlar a gargalhada que queria sair. Olhavam para ele e continham o riso.

Até que o cheiro intenso e nauseabundo chegou a D. Elisa, a mestrina opinativa e sem papas na língua que cada vez mais fazia uso do seus estatuto de septuagenária para dizer o que melhor entendesse a quem quer que fosse.

D. Elisa, que sempre fora muito expressiva, contorceu a cara num esgar de nojo e nausea, olhou para todos com ar de reprovação, e depois virando-se para o filho mais velho, apontou para o canto da sala e disse:

"Pipoca! Ai o raça da cadela! A cadela come-me as cascas do queijo e depois é isto. Um cheiro que não se aguenta! Já lá para fora Pipoca. Ai! A culpa é tua, Filipe - apontando para o filho mais velho - dás as cascas do queijo à cadela e depois é isto. Intervalo para toda a gente a ver se isto areja!"

Marina continuava a sorrir trocista e cumplicemente para Flávio, que se percebeu apanhado em flagrante delito. E achou perdida para todo o sempre qualquer esperança de uma relação com a doce Marina.

No meio da sua vergonha e embaraço, Marina puxa-lhe o braço e com o ar mais trocista e malandro do mundo sussurra-lhe ao ouvido:

"É nestas alturas que eu dou graças ao Senhor pela minha sinusite!! Enquanto que vocês estão para aí todos aflitos com o cheiro da Pipoca eu estou aqui na maior!"

Flávio olhou-a, sorriu rendido e aliviado e percebeu que se calhar, se calhar, Marina era mesmo a mulher da sua vida.

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Marco

Achava que era mais feliz quando era criança. Que a vida e mundo em geral eram mais simples.

As regras eram claras, as pessoas eram honestas, não havia crises de valores.

Lembrava-se de lhe ensinarem as regras de boa educação, de lhe darem colo quando as coisas corriam mal mas ele tinha feito o que estava certo.

E agora, adulto, parecia que o mundo se tinha virado do avesso.

A bondade ou maldade dos seus atos eram medidas não pelas intenções - de que se diz estar o inferno cheio - mas pelas consequências dos mesmos.

Que as desculpas não se pedem, evitam-se. Que há coisas que não se desculpam. Ou pelo menos que não se esquecem.

Mas se tanto dessas consequências não eram da sua responsabilidade, não estavam no seu poder, ao seu alcance!

Pensava que às vezes mais valia estar quieto. Não fazer nada. Não dizer nada. Não ser nada. Não existir.

"Oh, I am fortune's fool" dizia citando o Romeu e Julieta de Shakespeare, para engolir a angústia de existir e ser uma folha ao vento.

Marco não conseguia deixar de se sentir sempre culpado e sempre desiludido de as coisas não lhe correrem como ele tinha previsto ou da forma como tinha planeado. De estar aquém das suas próprias expectativas. De olhar para a sua vida e sentir que não tinha feito nada, construído nada até então e angustiava-se com o tempo que lhe restava que a cada dia era mais pequeno. E que de certeza já não ia chegar. E será que ele era capaz de chegar onde queria?

A sua liberdade pesava-lhe como uma grilheta de ferro com bola, pelas oportunidades que lhe oferecia e que ele se sentia obrigado a abarcar. O seu talento e a sua visão arrastavam-o pela depressão como os cavalos de um Ferrari que nem para abastecer quer parar, que só contrariado mede a pressão dos pneus e verifica outros sinais vitais menos importantes que andar, andar, andar até ser mais veloz do que o vento.

A liberdade e as possibilidades que procurou como um afogado procura o ar - sofregamente, às goladas, sem deixar que nada se interpusesse na sua procura - oprimiram-no e não deixavam respirar. Não conseguia enfrentar os dias que antevia sempre como demasiado pesados para o seu eu desgastado de se puxar a cada momento além dos limites.

E tinha medo de morrer, não uma morte física, mas de se perder, perder a sua identidade em busca do seu sonho, perder o seu sonho para preservar a identidade que construiu e as coisas que amava, perder tudo por apostar demasiado alto, não apostar alto o suficiente e conformar-se na banalidade.

E tudo era mais difícil porque independentemente das suas intenções, Marco sabia que no balanço final da sua vida o que contava eram os resultados das mesmas.

E esquecia-se que a vida é a viagem, que a árvore que cai com estrondo mas ninguém ouve não fez barulho e que essencialmente é imensa a nossa pequenez.

E que isso não constitui qualquer problema. Que os maus atos ficam com quem os pratica, independentemente das suas consequências benéficas ou nefastas. E que só se vive realmente quando se amam os pequenos momentos, sem a culpa de não atingir os objetivos máximos e irrealistas a que nos propromos por vezes. Sem a culpa de tirar uma manhã para puxar o lustro ao carro. ou para ir passear a pé. ou para ficar sentado na praia. ou para não se fazer mais nada além de inspirar e expirar numa sequência despida de lógica, expectativas ou avaliações.

domingo, dezembro 11, 2011

Lúcia

Segurando a faca da carne à porta do quarto do filho bebé, como via nos filmes fazer, Lúcia via em flashes o decorrer do serão passado.

Entrar em casa depois da ceia de Natal em casa dos sogros com o bebé ao colo.

Olhar a sala em tons de branco, prata e preto finamente decorada e sentir que a casa inalterada estava diferente.

Afastar essa impressão por achar pateta, reparar que nada estava fora do sítio e sentir-se confortada.

Entrar pelo corredor dos quartos e levar o filho à cama.

Aconchegá-lo e dar-lhe um beijo de boa noite.

Afagar o seu cabelo de arcanjo e dirigir-se ao quarto.

Entrar pela porta do quarto descalçando-se em cima do tapete fofo.

Olhar em frente e ver a cortina desalinhada.

Olhar para a cama e ver o conteúdo de todas as gavetas despejado em cima da colcha de seda. Tudo ao monte, tudo virado do avesso, tudo ao léu.

O que estaria a faltar? Quem faria uma coisa destas na noite de Natal? Será que o seguro cobria os danos?

E estaria ainda alguém em casa?


Sentir o coração bater até quase lhe sair do peito.

Sair do quarto encontrar o marido que fora à cozinha, à porta do corredor, com duas facas grandes.

Perceber por sinais que o marido lhe fazia, que os intrusos poderiam ainda estar em casa.

Correr para a porta do quarto do filho e telefonar à família enquanto o marido percorre a casa.

Não temer nada por si, pensar apenas no filho. Não sentir nenhum medo por si. Sentir-se invulnerável.

Saber que o seu corpo magro tinha 20 metros de altura e a força de um tornado.

Perceber e antecipar que atingirá com a sua fúria invencível e assassina qualquer desconhecido que chegue perto da sua criança.

Compreender que os seus princípios humanistas, de não violência e pacifismo caem abaixo da terra perante uma ameaça ao filho.

À cria.

Sentir o apelo animal que faz desconsiderar qualquer consequência que possa advir para si - agressão, incapacitação, morte, prisão - logo que o seu filho esteja seguro.

E segurar a faca com mais força, na sua atitude de leoa selvagem e protetora.

Os intrusos já não estavam em casa. Fugiram quando ouviram o carro chegar e deixaram o trabalho a meio, embora tivessem levado muita coisa.

Lúcia demorou a largar a faca, como se tivesse medo que a realidade não fosse tão boa como as notícias que acabara de receber. Olhou para o marido, espreitaram o filho e olharam para o quarto revolto.

Choraram muito.

Perceberam logo que os ladrões tinham levado o ouro que Lúcia colecionava havia 35 anos, entre compras, dádivas e heranças. Mas nessa noite, os ladrões roubaram-lhes muito mais do que isso. Roubaram a sensação de segurança e conforto que o seu lar lhes oferecia. Roubaram a sua privacidade. Roubaram o apego à casa que construíram arduamente.

E deram a Lúcia a certeza que o amor que sentia pelo filho era muito maior que a sua vida, era muito mais forte do que qualquer coisa que alguma vez tivesse imaginado e que não se ficava pelo quanto o seu coração batia por ele. Tinha consequências práticas e muito reais.

Lúcia soube de forma muito concreta e mesmo assustadora que pelo filho era capaz de tudo. Até de matar.

Quando a família a quem entretanto tinham telefonado para os acudir e chamar a polícia assomou afogueada, munida das caçadeiras e outras ferramentas capazes de os proteger de um pequeno exército, era já tarde.

segunda-feira, dezembro 05, 2011

Marcelo

Marcelo era loucamente apaixonado pela mulher.

Lavínia tinha sido um amor à primeira vista completamente desmesurado. Marcelo amou-a mal a viu e independentemente da sua falta de reciprocidade.

E como Marcelo era persistente, teimoso, e além de tudo um péssimo perdedor, não descansou enquanto Lavínia não foi sua. Tanto andou, tanto jogou (dentro e fora dos limites do aceitável) que Lavínia acabou por lhe sucumbir de direito, mas nunca de facto.

Lavínia era sua - sua esposa, sem nunca ter sido completamente sua mulher.

A perceção deste facto deixava Marcelo louco, ciumento e possessivo.

Não tolerava que Lavínia fosse simpática com outros homens ou que tivesse amigos do sexo masculino - apesar de ela fazer sempre o que bem entendia - e punia-a com requintes de malvadez subtil quando ela fazia algo que lhe desagradava.

Mas Marcelo não sentia só ciúmes de outros homens, ele sentia muitos ciumes de tudo. Porque lhe parecia que de tudo Lavínia gostava mais do que dele, que encarava tudo na vida com uma força e entusiasmo admiráveis - uma centelha que ele não possuía e que tão melhor era empregue se ela ao menos a direcionasse para ele.

Marcelo queria a todo o custo dominá-la e Lavínia derrotava-o sempre da mesma maneira inelutável: fazendo de conta que se deixava dominar.

Por perceber isto, Marcelo dispendia uma quantidade de tempo e energia sobreumanos à caça de fantasmas, dos homens que não resistiam à sua mulher (que eram todos, claro, na sua visão profundamente apaixonada) e daqueles com quem ela se andasse às suas escondidas. Porque - claro - uma mulher daquelas não era de se contentar com menos do que a plenitude que ele sabia que não lhe dava.

Marcelo colocava a mulher num pedestal inalcançável. Não percebia que Lavínia via a relação como algo em que podia ser diferente, mais tranquila, mostrar a outra face da moeda. e que lhe estava profundamente comprometida. Mas Marcelo tinha a visão turva das cataratas da insegurança. Não percebia que a mulher apesar de ter mais vida, mais ambições e mais sonhos, lhe era dedicada.

E quanto mais inseguro, mais Marcelo era um cão de guarda feroz contra os outros e menos um amante doce e companheiro para a esposa, que por seu turno ficava menos contente o que por seu turno deixava Marcelo mais inseguro. Um ciclo vicioso aparentemente inquebrável.

Lavínia num pedestal, Marcelo inseguro, Marcelo agressivo, Lavínia descontente, e... Marcelo a colocar Lavínia num pedestal ainda mais alto, por perceber o seu descontentamento, a ser inseguro e agressivo, e a deixar Lavínia mais descontente... etc.

Até que um dia, ocorreu a Marcelo uma ideia tão brilhante quanto simples.

Se Lavínia engravidasse, se tivessem filhos, por muito que a "mulher Lavínia" não fosse completamente sua, a "mãe de família Lavínia" nunca deixaria de o ser.

E a partir do momento em que percebeu que se tivessem uma família, Lavínia nunca o deixaria, porque os seus valores a fariam tolerar quase tudo de forma mais ou menos dócil, Marcelo não descansou enquanto não a engravidou.

O plano era simples e foi posto em marcha. A partir do momento em que "estivessem grávidos", Marcelo seria indispensável a Lavínia, seria o seu grande apoio, a pessoa de quem dependeria, o foco da sua vida, ela seria dócil e entregar-se-ia sem reservas, porque tinham um projeto, uma responsabilidade tão grande em conjunto. E não lhe restariam energias para olhar para outros homens ou para muito mais coisas, porque teria mais do que fazer com a nova família que agora começava. Além do que Marcelo ganhava um novo argumento nas discussões.

A Lavínia não passava despercebido este racional, por muito que fizesse de conta que não. Mas ela tinha vontade de ser mãe e tinha-se casado com Marcelo porque via coisas muito boas nele e porque gostava dele; ela não tinha qualquer intenção de o deixar, nem tão pouco olhava para outros homens como o marido tanto dizia, por isso fez como de costume que se deixara levar na cantiga.

Encarou a gravidez com o entusiasmo e a paixão que empregava em todos os seus projetos e ambições. Sabia que isso por norma deixava o marido louco de ciumes, mas esperava desta vez conseguir contagiá-lo da alegria que sentia, já que era uma coisa de ambos e que ambos tinham querido.

A Marcelo surpreenderia o facto de se sentir ciumento da quantidade de energia que Lavínia tinha e era capaz de dar à preparação para a chegada do filho. Desagradaria perceber que a sua importância parecia diminuida perante a gravidez.

Mas o choque que realmente faria o seu mundo ruir, seria ver a mulher olhar para o filho pela primeira vez, completamente entregue, sem reservas nem condições. Seria perceber que Lavínia fora sua, por muito imerecida que tivesse sido essa benção até então. Mas que dali em diante Lavínia seria de outro com quem não podia competir. E perceber que tudo o que tinha temido até então havia sido completamente estúpido, porque o único grande rival de quem ele tinha de facto alguma coisa a temer acabara de nascer.

quarta-feira, novembro 23, 2011

Marília

Marília era uma brisa do fim da primavera. Era a luz da manhã que entrava na janela do quarto preguiçoso e em silêncio.

Marília era o silêncio e a aceitação. Era a paz. Era a Mona Lisa sorridente que nunca faz perguntas.

E as pessoas contavam-lhe segredos, todos os segredos. E no fim sentiam-se leves como ela lhes parecia. Sentiam-se quentes como a luz do verão que entra no quarto num dia preguiçoso e sem correrias.

E Marília guardava-lhes os segredos sem ficar pesada.

Ficava-lhes com as coisas com que elas não conseguiam andar e fazia-as sentirem-se aceites, normais, validadas.

Não eram estes os segredos que lhe pesavam.

Os segredos que pesavam eram apenas aqueles que não eram seus nem tinham sido partilhados consigo. que tinham sido descobertos por vias travessas, ilícitas, e que não podia revelar.

E que portanto pesavam de forma dobrada: porque os conhecia e porque não podia admitir que os conhecia.

E pesavam-lhe toneladas. Como se fosse uma máscara de ferro o sorriso falso e os acenos de cabeça que dava, sem poder admitir que sabia o que sabia, sem poder fazer nada para aliviar a dor das pessoas que amava.

E eram tão feios e pesados.

A mãe tinha um diário de quando era criança e adolescente. Marília descobriu a sua existência por mero acaso e a mãe fê-la prometer, jurar até, que jamais o abriria, que nunca o leria. A mãe admitia que não era capaz de se desfazer desse objeto tão detestado, mas não o queria jamais partilhar com ninguém.

E um dia, a jovem Marília, inocente e curiosa tropeçou nele numas arrumações em casa, escondido atrás da pilha das toalhas de rosto por estrear. Sozinha e com o fruto proibido nas mãos não foi capaz de resistir e quebrou a sua promessa.

E nesse dia descobriu as coisas com que nunca sonhara, as coisas que jamais suspeitara e que explicavam tanta coisa. Soube das violações, do peso da culpa das vítimas na primeira voz, da luta para se reconstruir, da necessidade de disfarçar, da incredulidade dos outros, da convivência forçada com o agressor, do asco dele, do nojo de si mesma e da vergonha. do medo. do medo. do medo do agressor. do medo da reação dos outros. do medo da culpabilização. do medo da discriminação. do medo das consequências todas para si e para os outros. o medo de ter de contar tudo e reviver o pesadelo. e que de si duvidassem depois do esforço e da vulnerabilidade. o medo da pena. da vergonha. Da necessidade de proteger todos do seu horror, de o guardar para si, de não o partilhar para não pesar mais ninguém. de não contaminar mais ninguém com o seu segredo feio, sujo e familiar.

Nesse dia, Marília sentiu só choque e horror, como se tivesse ficado anestesiada de sentir qualquer outra coisa. Foi invadida por estes sentimentos durante dias e teve insónias e pesadelos todas as noites desse mês. Pensou como poderia ajudar a mãe e concluiu que o segredo não era dela, e que ela não tinha o direito de lho pedir. Tentou deixar a porta aberta, dizer coisas sobre temas parecidos em que se colocava do lado da vítima sem reservas. Mas a mãe nunca se descoseu.

Levou anos a ficar em paz com o assunto, mas conhecia a mãe o suficiente para saber que ela só falava do que queria e que a respeitava o bastante para não a contrariar. Especialmente numa ferida que continuava tão aberta como aquela. E sabia que aquela invasão e quebra de confiança seriam uma traição imperdoável aos seus olhos.

E assim, Marília aprendeu que há coisas que não se pedem e muito menos se roubam. Que a curiosidade nem sempre é boa conselheira. E foi esta a epifania dolorosa que lhe trouxe o ar de paz que exalava e a capacidade de não perguntar deixando sempre a porta aberta para aqueles que se quisessem abrir.

Aperfeiçoou continuamente esta arte de silêncio, serenidade e calor o resto da vida, na esperança que um dia os segredos que roubara lhe fossem oferecidos e ela pudesse enfim ser redimida da sua promessa quebrada.

segunda-feira, novembro 14, 2011

5 irmãs

O verbo morrer, em latim, só tem voz passiva.

Talvez os romanos entendessem na sua imensa sabedoria que ninguém diria "morri" sendo esse facto verdade, porque pelo menos até àquela altura não havia histórias de gente que tivesse regressado dos mortos para contar como tinha sido.

Talvez o verbo morrer completo, com voz ativa, como presente na Língua Portuguesa tenha sido fruto da nossa herança Cristã-Católica, para que Cristo ressuscitado pudesse dizer ele mesmo "morri e ressuscitei".

Ou talvez porque, na verdade, a morte - auto-infligida ou não - e sendo uma coisa que nos acontece a nós, é uma coisa que fazemos aos outros. "Morreu-me a minha prima" é uma frase perfeitamente passível de ser dita numa conversa de desabafo entre velhas amigas que se encontram na rua.

Porque a morte de alguém querido é como que o arrancar de um pedaço de nós, um pedaço que não exonerámos, um pedaço que nos foi tirado com maior ou menor violência, estando nós a contar com isso ou não.

Eram 5, as irmãs.

O pai, de nome Orfeu, decidira que os filhos teriam nome por ordem alfabética, coisa a que a mãe inicialmente achara graça.

Só tiveram filhas. Chamaram-lhes Alcina, Expedita, Isabel, Olga e, quando a mãe já desesperava porque o pai queria chamar Umbelina à última, uma velha superstição veio em seu auxílio. Uma que dizia que um casal que tivesse 5 filhas seguidas devia chamar "Eva" à quinta (se tivessem 5 rapazes seguidos, naturalmente, o quinto deveria ser "Adão"). Era uma superstição religiosa e invocando a primor católico e o rigor com que criavam as filhas e viviam a sua vida, Maria do Carmo venceu a disputa.

E assim as irmãs ficaram completas.

Alcina morreu muito nova, ainda não tinha 6 anos.

Eva foi a segunda que perderam, não pela morte, mas pelo Alzheimer. Eva existiria a partir dos 40 e muitos anos apenas por flashes e cliques em que voltava a ser quem era, ou a lembrar-se dos filhos, dos outros e mesmo de si. A doença esquecedora roubaria Eva - curiosamente, a de boa memória. aquela a quem se perguntavam as datas de aniversários. a que era incapaz de esquecer um facto, um bom gesto ou um rancor.

Expedita foi a terceira a partir. Tinha meros 67 anos e morreu de um AVC.

Isabel partiria ano e meio depois de Expedita de uma doença fulminante. Libertou-se da prisão em que se tornara o seu corpo, mas no dia do funeral, o marido, com quem estivera casada quase 50 anos, desolado, perdido, de coração ainda apaixonado partido, suspirava entre as lágrimas "Nunca pensei que ela se me fosse embora tão depressa".

E assim as irmãs deixaram Olga sozinha. Por ordem alfabética, como o pai teria querido, mas sem desrespeitar a ordem cronológica, como teria sido a vontade da mãe.

quarta-feira, novembro 02, 2011

Sr. Zé (2)

A enfermeira bonita de mãos suaves perguntou-lhe se estava bem assim, referindo-se à almofada.

José respondeu prontamente que estava melhor se ela estivesse em cima dele, referindo-se à enfermeira.

Parece que o termo médico para a sua condição era "frontalizado". Mas para José o sabor da palavra era apenas liberdade e intensidade. Como se tivesse voltado a ter 5 anos e pudesse viver cada momento nele mesmo e como se apenas esse mesmo instante e as suas vontades momentâneas contassem.

Queria todas as coisas com intensidade e não as julgava pela pertinência. Queria comer as enfermeiras, pois queria. Queria duas sobremesas. queria. Queria um copo de vinho agora? sim. Queria fazer as necessidades naquele momento. e fazia.

A família, depois de tantos anos a tomar conta dele e dos seus incorrigíveis hábitos de alcoólico deixou de ter capacidade de gerir esta fase da vida de José em que na segunda feira se encontra o avô nu no jardim a cumprimentar os carros e a perguntar se "nunca viram?", na quarta-feira, o cabelo foi cortado à tesourada por si mesmo e na sexta-feira está a chorar baba e ranho porque se lembrou das saudades que tem da falecida.

Não percebia porque é que as pessoas se afastavam dele, porque é que não o podiam deixar fazer tudo o que queria. Não percebia porque é que as coisas não podiam ser como ele queria, ele era mais velho que elas afinal, olha que porra! Ele é que sabia!

E a enfermeira bonita de mãos suaves dizia "Sr. Zé, mais respeitinho, sim?" e conversava pacientemente com ele, e fazia-lhe perguntas sobre a vida dele. E no momento a seguir a enfermeira bonita de mãos suaves já lhe fazia lembrar mais a neta dele. e que saudades que tinha da neta. Quase tantas como da sua Laurinda, aquilo é que era uma mulher, já não se fazem daquelas.

Enfermeira, dá-me um copinho de vinho?
Não Sr. Zé, sabe que aqui no hospital não temos disso.
Ah está bem. E uma bolacha?
Vou ver Sr. Zé.

E vinha triunfante, a enfermeira, com uma bolacha.

"É o nosso segredo, está bem, sr. Zé? Senão daqui a nada tenho toda a gente a pedir-me bolachas, está bem?"

E aquela bolacha sabia-lhe como a melhor coisa do mundo por momentos. Mesmo se a seguir a decidisse atirar para o chão. O momento - cada momento - era dele, como afinal só o pode ser com as crianças e os velhos frontalizados, para quem nada mais tem verdadeiramente importância, nada mais realmente existe.


Oasis - Whatever

D. Elisa

Moveu-se debilmente para o centro do palco e recebeu o aplauso com graciosidade, mesmo sem perceber exactamente porque é que a aplaudiam.

Cada pessoa que por ela passava fazia a mesma pergunta "lembra-se de mim?" e depois tentavam identificar-se de tal forma que ela os reconhecesse. Não reconhecia. A D. Elisa mal se lembrava dos filhos e dos netos, quanto mais das pessoas que um dia povoaram a sua vida e que ela enriquecera de forma inquantificável?

A D. Elisa foi sempre o pilar da família, o motor das vidas de todos que a rodeavam e até aos oitenta e tal anos era ela que fazia os licores para o natal, os almoços de domingo, as limpezas da casa. Dava aulas de música em casa e era incansável. Recitava as lições de teoria musical de cor

"Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Ioannes

é o poema em latim que está na origem dos nomes que damos às notas musicais..."

Dirigia o coro e era ela que comprava os rebuçados de mentol do Lidl, fazendo a longa caminhada de sua casa à zona industrial a pé para que nada faltasse "aos meninos". Cantava, tocava piano, e dava aulas de tudo isso enquanto fazia um pouco de avó para todos com as suas histórias empolgantes de "quando era nova".

E cuidava do marido doente, fazendo crer a todos e até a ele que nada era muito grave, que tudo se passa nesta vida.

Quando o marido morreu, perdeu o norte. Como se tivesse perdido o propósito. Como se ela, o motor, tivesse ficado de repente sem ter para onde ir, em ponto morto e sem gasolina. E ela que havia sido sempre a pessoa de boa memória, aquela a quem se perguntava "quem é fulana" para se ficar a saber não só uma completa biografia como uma breve árvore genealógica e as peripécias mais relevantes da família em geral, começou a apagar a sua vida aos poucos.

Começou com as pessoas que via pouco, passou aos conhecidos da rua, a seguir para os alunos e ex-alunos que conhecera e com os quais convivera durante décadas, depois para os alunos recentes, depois para as pessoas com quem convivia diariamente e por fim para os netos e para os filhos.

Lembrava-se que tinha de ir ao cemitério.

Nunca se lembrara das letras das músicas e começou também a esquecer a música.

Desvaneceu da sua memória a sua maior riqueza: as coisas que construiu, as suas experiências diversificadas, ricas e enriquecedoras. As vidas que tocou.

O dia da homenagem foi confuso para a D. Elisa, que, no entanto, não tinha esquecido como se está num palco e o que isso significa em geral. Que não esquecera que um artista agradece sempre o aplauso com humildade. Que faz sempre uma vénia.

Mas que não conseguia perceber porque a beijavam e abraçavam tantos estranhos, porque é que tanta gente insistia para que se lembrassem dela. Porque é que a sua importância era tão tamanha.

terça-feira, novembro 01, 2011

Romeu e Julieta

Romeu e Julieta eram uma entidade una e indivisível para todos os que os rodeavam. Trabalhavam na mesma empresa, tinham os mesmos interesses, eram similares em quase tudo e completavam-se no restante.

Se no início era fascinante verificar o sincronismo da relação que era toda ela rosas, com o passar do tempo esta caracterísitica tão especial tornou-se em algo banal e apenas mais um fait divers para todos. um dado adquirido.

Romeu e Julieta passavam juntos muitas horas do dia e muitas horas da noite. E a cumplicidade síncrona começou a tornar-se saturação.

Deitados de costas um para o outro, na cama, Romeu questiona Julieta se ela tem de ser tão dura com os miúdos, se a vida tem de ser assim tão dificil. E Julieta responde recriminando que se não for ela a impor disciplina ninguém o faz.

Nesse dia, Julieta virou-se para o filho de ambos e disse: "e bato-te na cara que é para toda a gente saber que o João é um menino mau e que se porta mal, por isso a minha mãe tem de me bater na cara". João contorceu-se entre o querer continuar a desafiá-la como fazem as crianças de 5 anos e a corda sensível em que ela tocou, a sua vaidade.

Romeu interveio dizendo que Julieta não era clara na disciplina que empregava, que escusava de ameaçar o miudo se a seguir o deixava fazer tudo o que ele quisesse. E Julieta num tom calmo de agressividade absurda contestou com "queres falar de disciplina? quem é que faz downloads para o João? hã? e lhe dá videos e depois temos de o por de castigo porque não se pode jogar à semana? hein?"

Deixou Romeu sem resposta, numa situação em tudo similar à de João: querendo continuar a desafiá-la, mas agredido na sua corda sensível. Tal pai, tal filho.

Julieta tinha tanto de meiga como de cobra e Romeu tinha tanto de manso como de escorpião. Iguais os dois, farinha do mesmo saco.

Nos últimos tempos já nem se importavam muito com disfarçar. Quando alguém elogiava Maria a filha de ambos, dizendo que era "tão bonita" e que "saía mesmo à mãe", Romeu respondia com "é sai a ela. mau feitio e tudo. griiiiiiita que se farta, parece uma desalmada."

Na cama, voltada de costas para Romeu, Julieta recrimina o marido de a deixar a braços com todas as decisões importantes, com todas as dificuldades e se escapar para o seu mundo, com os seus amigos e as suas coisas. Que estava farta de remar ela o barco, que já não podia mais de cansaço e saturação.

E ainda não o dizia, mas esta saturação era tanto da vida como dele, que estava já na fase em que até o ar a passar nas narinas cheias de sinusite e os estalinhos que Romeu dava por causa desta condição a enervavam. Que a forma como ele punha a manteiga no pão e depois a faca cheia de migalhas de volta no pacote da manteiga a irritavam além das suas forças. Que o casaco amarfanhado em cima do sofá todos os dias a deixava fora de si. Que o seu cheiro lhe era insuportável. Que a forma de ele a tocar - nas poucas vezes em que o fazia já - a forma de ele a chamar, a forma de ele existir eram demais para si e para o que podia aguentar.

E o seu amor juvenil que se tornara lendário, vencendo tudo e todos desgastou-se como água mole em pedra dura, com o passar dos dias.

Julieta era uma déspota, Romeu era um morcão.

E o seu casamento tinha os dias contados.


sábado, outubro 29, 2011

Firmino e Matilde

Os velhotes caminhavam sempre de mãos dadas.

Ela trazia o carrinho das compras, ele trazia a bengala.

Tinham personalidades extremas - de extremo mau-feitio e de extrema ternura - que não se preocupavam já em amenizar.

E partilhavam tudo.

Matilde limpou sempre o rabo de Firmino quando ele partiu a perna. Não sentiu mais nojo do que se limpasse a sua própria merda.

Firmino cuidou a sutura da mama de Matilde que teve de ser retirada, com o amor e o cuidado de quem trata de uma parte ferida do seu próprio corpo e ajudou-a a sentir-se outra vez bonita e mulher, fazendo-a olhar-se pelos seus olhos.

Matilde cuidava as unhas encravadas de Firmino religiosamente, Firmino tirou os pelos do buço de Matilde e maquilhou-a quando ela esteve internada 2 meses e a vieram visitar os parentes de França - ela queria estar bonita para a família que vinha de longe.

Quando eram jovens, faziam amor todos os dias com a ânsia de quem está incompleto e precisa de se encontrar. Entrelaçavam os dedos e as línguas no ato de se penetrarem e se receberem mutuamente.

E a vida dos dois, a duo e a solo, seguiu com os seus altos e baixos.

Eram iguais e diferentes como os dois hemisférios de um mesmo cérebro, cujas funções e vocações são completamente diferentes mas cujo DNA é partilhado, cujo propósito é o mesmo, cujo corpo é uno. Com formas diferentes de resolver os mesmos problemas, com recursos distintos e, ao mesmo tempo, complementares.

Nas coisas em que Matilde era frágil, Firmino era forte, nas coisas em que Firmino era fraco, Matilde era rocha. E equilibravam os momentos de suspensão e segurança mútuos como quem sobe uma escada de bombeiro, um pé no ar quando o outro está no chão, uma mão na escada, quando a outra alcança o próximo degrau.

E ao longo da vida foram entrelaçando as palavras, os gestos e os sentimentos no ato contínuo de se penetrarem e se receberem mutuamente, estivessem onde (e como) estivessem.

No dia em que o autocarro os atropelou na passadeira perto de casa ao chegar das compras, como estava escrito nas estrelas que o faria, apertaram as mãos com força, mais por medo de se perderem um ao outro do que de perderem a própria vida. e morreram completos, sem a deformidade de lhes ter sido amputado o membro mais querido.

terça-feira, setembro 13, 2011

Francisca

As tardes de Domingo com a família de Francisca eram sempre uma verdadeira tortura.

Cumprindo um ritual semanal, toda a descendência se encontrava na casa da sua avó, a matriarca, que aos 82 anos continuava a fazer o almoço dominical ela mesma.

Francisca era a mais nova das primas e a única que continuava a não levar namorado para os encontros semanais. Depois, foi a única que não ficou noiva, a única que não casou e a única que não engravidou pouco depois do casamento.

À medida que o tempo passava, as atenções da família, em particular das mulheres da velha guarda da família, viravam-se dolorosamente para ela, com os comentários de pena e recriminação:

"Mas quê, filha, não consegues arranjar um namorado, é?"

As explicações culpabilizantes:

"Também, não te arranjas! Sempre com esse cabelo todo despenteado... Podias por uma corzinha na cara, filha... Que assim eles não olham para ti..."

"Se não fosses tão esquisita..."

No princípio, Francisca respondia, dizendo que não lhe dava jeito fazer as coisas que lhe prescreviam. Mas com respostas do tipo:

"Depois admiras-te de ficares muito tempo encostada"

Em breve desistiu. Aguentava em silêncio os comentários e sermões sobre a importância de arranjar "um homem" e os mais diversos procedimentos e técnicas para o fazer. Fazia de conta que não percebia que as primas eram pressionadas para lhe apresentarem os amigos dos maridos.

Acima de tudo, preferia não se chatear e tolerava os almoços de família como quem tolera os caprichos de, não um, mas vários tios idosos que acham que sabem como é que todos os outros devem viver a sua vida; e que não vale a pena nem contrariar nem dar importância.

Mas se no princípio, os comentários eram piedosos e relativamente tímidos, com o passar do tempo foram-se tornando mais descarados e agressivos.

"Filha, já não estás em idade de ser esquisita... Olha que não estás a ficar mais nova..."
"Olha que quem muito escolhe, pouco acerta..."

Até que um dia, depois de nascerem os filhos das primas e de alguém lhe dizer o já tradicional "ficavas tão bem com uma coisa dessas nos braços", uma tia idosa colmata com:

"Olha que uma mulher sem filhos, é como uma árvore sem frutos: não tem valor. Mais vale deitar abaixo e vender pela madeira."

Perante este impropério, desferido com naturalidade e uma noção deslocada de que era algo que ela precisava de ouvir, Francisca levantou-se à mesa do almoço, séria e visivelmente furiosa.

A família ficou em silêncio, incluido os bebés, que por algum instinto animal devem ter pressentido o perigo.

Francisca pediu a atenção de todos e anunciou alto e bom som, sem se alterar demasiado, que a família nada tinha a ver com a vida amorosa dela, mas que já que insistiam tanto em tocar no assunto, tinha o prazer de anunciar a todos que a razão pela qual não levava namorados para os almoços de família nem aconselhava a que dela esperassem rebentos era porque ela era lésbica.
Havia anos que gostava de mulheres e tinha várias namoradas, mas tinha sempre achado que seria demasiado chocante para uma família tão religiosa e tradicional levar tal companhia para os convénios do clã, porque, além de tudo, Francisca tinha uma libido estremamente fogosa e lhe era dificil controlar os seus impulsos e demonstrações públicas de afeto quando estava junto das suas amadas.

Perguntou se toda a gente tinha compreendido ou se ainda havia dúvidas ou alguma coisa que quisessem perguntar.

Não tinham.

Sentou-se de novo à mesa e continuou a comer.

O ambiente de choque demorou um pouco a passar, mas a família católica, apostólica romana era antes de mais nada um clã que não expulsa membros. Nunca mais ninguém voltou a tocar no assunto.

Nem a importuná-la com requisitos de casamentos ou crianças.

E finalmente Francisca pode reaver o gosto de estar com a família e conversar com todos sobre os mais diversos assuntos, exceto o novo tabu que ela própria criou nesse dia.

Mesmo se o tabu era mentira e Francisca na verdade não sentia - como nunca tinha sentido - qualquer tipo de atração pelo sexo feminino.

quarta-feira, agosto 31, 2011

J'aime

Maria e Alexandre conheceram-se na Faculdade e pouco tempo depois de terem começado a namorar estavam a morar juntos, contra todo o bom senso que lhes tinham impingido e nadando no sentido da corrente.

Começaram a viver em função um do outro no dia em que perceberam que não paravam de rir quando estavam juntos e juntos, apesar das suas respeitáveis licenciaturas em curso, aprenderam a cuspir fogo e foram inaugurar o Estádio do Braga no Euro 2004, aprenderam a andar de andas e faziam animação de rua. Trabalhavam juntos nos projetos de Maria, em Comunicação Social, trocando ideias para argumentos de curtas metragens e angariando amigos para as concretizar; trabalhavam juntos nos projetos de Alexandre em Psicologia, com críticas e ideias de melhoria.

Moravam na mesma casa e - mais que isso - viviam juntos.

Mudaram a vida toda um em função do outro sempre que a Vida assim o exigiu e aguentaram todos os bons e maus momentos que lhes surgiram. E nunca perderam de vista que - mais que nada - se amavam como amigos, se queriam como companheiros.

Quando casaram, Alexandre fez um discurso e comoveu todos, lembrando que não há "para sempres" mas que é possível ser finito, que ser finito não é saber o que o destino reserva, é navegar sem horizonte, é agarrar o que nos aparece e tentar tirar disso o melhor.

Continuaram a sua vida modesta de dinheiro e rica de tudo o resto, agarrando o que aparecia e tentando tirar disso o melhor. Nos bons e maus momentos, a vida a dois teve altos e baixos, mas nunca foi aborrecida.

E um dia, quando ainda eram ambos crianças no corpo de gente grande, passaram a ser três, com o nascimento de Jaime.




E o memorável discurso de Alexandre está aqui.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Rodolfo

O coração é esse músculo desobediente a quem não importa o que o lhe mandam fazer, é o rebelde a quem não se pode mandar bater baixinho, estar sossegado. Porque tem a mania que é independente e faz o que quer.

E como não é racional, faz muitas asneiras. e às vezes faz as coisas grandiosas que só os audazes almejam.

Rodolfo chegou sem se anunciar porque vivia como quem sabe que a vida é uma queda livre, mas era capaz de apreciar a liberdade que isso lhe proporcionava, de sentir o vento na cara, apreciar a paisagem e perceber o próprio ritmo do seu coração no processo de ver o chão aproximar-se.

E por isso não tinha vergonha de pensar com o coração e sentir com o cérebro.

Conheceu Salomé muito antes de a amar e amou-a quando já não tinha tempo para o fazer, roubando-o a todos os cantinhos de coisas que podia e não devia.

Porque se o tempo corria em linha reta, rumo ao desconhecido inevitável, Rodolfo optava por viver em contra-relógio, numa entrega total a e em cada momento, bebendo a vida como se fosse um peixe e a respirasse, sofregamente, até a esgotar, na esperança de num último momento descobrir um novo tanque de H2O. de no último momento sentir um arnês segurá-lo, evitando a colisão frontal com o solo. Mesmo se à partida parecia que esta seria a sua última reserva. Mesmo se não se lembrava de estar a fazer bungee jumping em vez de queda livre.

Porque Rodolfo sabia que, independentemente das probabilidades, uma história não acaba até ao seu desfecho e que a Vida dá mais voltas que a Terra.

sábado, julho 30, 2011

Joana

Joana foi o primeiro grande amor da família e a notícia do seu nascimento percorreu o clã como a água que rega uma planta seca: abarcou todo o solo antes de se entranhar.


Foi a primeira e muito aguardada criança da sua geração e toda a família tinha uma paixão assolapada pela menina que era a epítome de tudo o que uma menina representa: era delicada, meiga, doce, engraçada e frágil, embora gostasse de se fazer de aventureira e de dizer que não tinha medo.


Irresistível, portanto.


Corria às voltas no jardim, brincando de guerreira e chorava baixinho, como se estivesse contrariada por o fazer, mas sentida, quando se magoava ou quando os meninos não a deixavam brincar com eles.


No corre-corre dos dias, Joana trazia aos pais uma noção diferente do tempo, porque ter 5 minutos para chegar à escola não é nada quando não se encontra o brinquedo ou se tem os sapatos desapertados.


E os dias corriam devagar no quotidiano e depressa quando percebiam o quanto tinha crescido pelas fotografias ou nas reuniões familiares, quando todos o comentavam.


A criança culminava todos os atributos referidos com uma grande facilidade em fazer sentir aos familiares e amigos o quanto gostava deles e quão feliz estava de os ver e estar com eles. Joana era genuinamente meiga e carinhosa e parecia que correria o mundo para estar com cada pessoa, que por seu turno sentia que correria o mundo por ela.


O sentimento coletivo era, portanto, de um amor incomensurável e proteção, como um abraço que escuda. Todos queriam saber as novidades da escola, as actividades extracurriculares, os namoradinhos, ver os desenhos e pendurá-los na parede, adormecê-la e correr com os seus medos infantis e amorosos. Os momentos pequeninos eram disputados entre todos, por verdadeiros privilégios. A suas estórias e pequenas anedotas partilhadas entre todos da forma babada que fazem tios, primos bastante mais velhos e avós.


Por tudo isto, no funeral da mãe, as lágrimas sentidas e coletivas escorriam confusas, e não sabiam de quem era coração pretendiam lavar, se o seu próprio, se o de Joana, se o do seu pai.


Porque se Joana foi a primeira grande paixão da família, a perceção do seu desamparo súbito bateu em todos como uma onda do mar bravo que se apanha quando se virou as costas ao oceano. E todos perceberam que não importava o tamanho e a força do seu amor pela menina, que Joana teria de nadar sozinha nas águas em que apenas uma mãe chega para amparar na corrente.


A todos os outros apenas a oportunidade de observar e esperar na praia para a acolher nos momentos em que o mar a trouxesse à areia. E como o sentimento coletivo era - como sempre fora - de preservação e proteção, compreender que nada podia ser feito por Joana que a compensasse da perda e dos desafios que a morte da mãe representa, as lágrimas corriam sem saber para onde ir.

sexta-feira, julho 22, 2011

Dália

"Não vou deixar o meu amanhã estragar o meu hoje. Vou lutar. Isto não está acabado."

Dália segurou a mão do marido.

Elias estava em estado de choque. A sua mulher, a mãe dos seus filhos. A sua melhor amiga. A sua companheira. A sua vida. Em inexpugnável fase terminal.

Na cabeça de Dália, uma catadupa de pensamentos em turbilhão. As crianças, o sol, o cinema, a casa, o cheiro da roupa lavada, a viagem sempre adiada a Nova Iorque, o concerto de Tom Waits que nunca foi ver. E o cheiro das crianças, a forma do corpo delas abraçado ao seu. O peito de Elias e a curva do seu braço em que se enrosca a dormir. O cheiro do café matinal durante a semana. Acordar nos Domingos de manhã antes de toda a gente e fazer pequenos almoços especiais. Almoços de família. Gelado de melancia da Neveiros. As tardes na piscina. As festas de aniversário da família com toda a gente. Os abraço dos pais. O cheiro da marmelada a ser feita no outono. Fazer amor com o marido. Dar-lhe a mão no cinema. Andar abraçada com ele na rua. Os desenhos dos filhos no frigorífico. E quem vai cuidar agora dos filhos dela? Quem lhes vai dar conselhos e explicar os factos da vida? Quem lhes vai soprar as feridas e dizer que está tudo bem? Será que se vão lembrar dela quando forem grandes? Será que depois de morrer vai poder olhar por eles como dizem as histórias? Quem vai cuidar das plantas? E da casa? O que é que vai acontecer aos bonsais? Será que Elias vai encontrar outra mulher? E será que ela vai ser boa para as crianças? Quem vai incentivar Pedro a expressar o seu lado artístico? Como é que Mariana se vai aguentar numa casa só de homens? Como é que ela vai partilhar as primeira dúvidas femininas? E os pais? Como se vão aguentar sem a sua única filha? Como é que ela vai dizer à mãe as más notícias? E ao pai? E no fim? Será que vai ter muitas dores? E antes? Será que vai sofrer muito?

Queria chorar muito e berrar alto, queria dizer ao mundo, ao universo, a Deus, se ele existisse, que não era justo e que não podia morrer.

Mas Dália sabia que era o rochedo do marido. Segurou-lhe a mão com força e prometeu que ia lutar até ao fim, sem lhe dizer mais nada dos seus pensamentos e sem conseguir segurar as lágrimas silenciosas e rebeldes.

domingo, julho 17, 2011

Salomé

O tempo assumia formas estranhas para Salomé. O tempo é essa película de nada que cobre o mundo de forma completa, que os relógios tentam disciplinar, mas que qualquer criança sabe que não tem regulação possível. Que cinco anos são uma vida e cinco anos não são nada, que as férias passam a voar e as sextas feiras nunca mais acabam.

Havia quem lhe dissesse que tinha de ser mais objetiva, esquecendo-se que a imaginação conjunta o mundo.O equador é a linha imaginária que divide o mundo em duas partes; as fronteiras são linhas imaginárias que dividem os territórios em países; em matemática, a unidade imaginária permite aceder aos números complexos; o Pai Natal é uma criatura imaginária que traz presentes às crianças no Natal; o português médio é uma figura imaginária que representa os valores da População Portuguesa, em média... Etc.

E para ela o tempo era especialmente indisciplinado e rebelde. O tempo que parecia demorar-se nas conversas com Rodolfo que lhe coloriam o dia, fugia pelos cantos da sala onde trabalhava, esquecia-se de responder a mensagens de telemóvel, em cinco minutos adiados sucessivamente. O tempo, essa criatura imaginária que tanto a ajudava como gostava de a judiar, arrastando-se e correndo, mas que de vez em quando lhe dava o prazer de uma dança, em que o tempo era o certo e ela perfeitamente coreografada.

Salomé sentia que o tempo, para ela, não passava, porque "passar" indica que o tempo anda a um ritmo mais ou menos controlado, ele anda em linha reta mais ou menos devagar, mais ou menos depressa. E para si o tempo rodopiava, andando para trás e para a frente, para os lados, quando se lembrava de João, das avós, da porta de casa mal fechada, das tartes de morango que se tinham de reservar de sobremesa no sítio do costume, das férias no Algarve este ano, do prazo do trabalho para entregar amanhã.

Porque a vida de Salomé, tal como o seu tempo, não passava. A vida de Salomé era um conjunto imaginário de todas as suas experiências, vividas uma, duas, mil vezes, na primeira pessoa, na segunda pessoa, na sua memória, nas histórias que contava às outras pessoas, nas coisas que lhe contavam, nos livros, nos filmes, nas músicas, no sentido que tentava fazer de tudo, um pouco diferente a cada vez. E, por isso, a vida não passava em linha reta, a vida dançava rodopiando para trás e para a frente em eterna repetição e em constante inovação, com significados novos e coisas inesperadas em cada momento.

Em Salomé um dia podiam ser anos e uma semana passar sem se dar conta. Em Salomé o tempo agia de forma estranha, independentemente das suas tentativas de o disciplinar com horários. Esticava-se e crescia nuns lados, era fugaz noutros. E a sua vida era a real medida do seu tempo, independentemente dos calendários e relógios.

Porque a vida acontece como a vivemos e a contamos, não como de facto se passou.


Palco do Tempo - Noiserv

segunda-feira, junho 13, 2011

Camila

Lembrava-se de ser uma noiva feliz, cheia de sonhos e esperanças, apaixonadíssima e feliz, não se pode descrever de outra forma, arrebatada de um sentimento absoluto, inteiro, pleno.
Camila  era o centro da animação, sempre. Quem visse a sua energia inefável, o seu bom humor, a sua capacidade organizativa em prol dos outros, sempre em prol dos outros, não imaginaria quão opostas eram as águas profundas que lhe corriam na alma.
Quando Amália conheceu David, Camila foi conspiradora-mor da sua felicidade, arranjando pretextos perfeitos para Amália sair de casa, servindo de alibi para as suas escapadas com o namorado secreto.
Quando decidiram casar, Camila mostrou mais uma vez o seu valor como amiga. Ajudou na organização sem ser intrometida, mobilizou os amigos de ambos em surpresas infidáveis, animou como sempre um pouco mais a vida de todos.
Mesmo tratando-se de um casamento na igreja do Bonfim, como o seu fora. Mesmo segurando e ajeitando o véu da noiva à entrada da igreja num gesto parecido com o que tinham feito por si.
Mesmo perante um amor tão puro e promissor como o seu havia sido.
Marco e Camila namoraram 10 anos e ele estava já diagnosticado com cancro quando casaram. Camila amava-o e nada seria diferente. O amor tudo conquista e haveria de resgatar também a vida de Marco.
Continuaram a construção da sua casa e começaram os tratamentos, escrupulosamente seguindo todos os tortuosos ditames médicos. Camila deixou o seu emprego, a sua vida e a sua existência para o amparar a ele.
E ele lutou o mais que pode, numa luta perdida à partida. E deixou a Camila um legado bem maior do que a casa que o seguro de vida pagou; deixou-lhe a certeza de que ela fez tudo o que podia, que ele a amava mais que tudo o resto e que ela era mais forte do que supunha.
E que a vida é preciosa e se tem de viver momento a momento.
O vestido que levou para o casamento da sua amiga era preto e elegante. “Com o meu vestido preto, eu nunca me comprometo”, dizia num tom jocoso e coquete, mudando logo de assunto.
Porque se de alguma maneira queria estar de luto pelo seu amor, por tudo o que tivera e perdera, pelos momentos que vivera naquela mesma igreja 3 anos antes, os mesmos olhares, as mesmas sensações, o mesmo nervosismo e a mesma alegria profunda de quem se entrega sem reservas a outro ser humano para o melhor e para o pior, na saúde e na doença, não suportava que sentissem pena dela ou que isso fosse motivo de conversa e jamais roubaria o centro de atenções da sua grande amiga, a noiva feliz.

domingo, junho 05, 2011

Judite

Judite tinha um coração de ouro maciço, inteiro e reluzente.

E como qualquer objecto de metal deste tipo, era também impenetrável.

Tomava as maiores precauções para que não ficasse ferido, não se riscasse, não perdesse o brilho. Guardava-o como se tivesse um cofre, dentro de um forte, no meio de uma ilha.

E o seu coração crescia, em tamanho e peso, cada vez mais.

Até se tornar insustentável carregar com o seu coração grande, bonito, perfeito, doirado, pesado e inútil.

Porque os corações não são meras peças decorativas, são peças utilitárias.

E o coração de Judite quanto mais temia o uso mais se tornava pesado.

Até que um dia, farta de o carregar de um lado para o outro, Judite já só o queria entregar a alguém que a ajudasse com esta carga.

Ernesto tinha ar de quem conseguiria segurar o coração Judite porque era ele próprio grande e forte. Faltava-lhe no entanto a coragem e a sabedoria para compreender o valor do objecto que segurava nas mãos e um dia deixou o coração de Judite caído pelo chão, depois de o riscar, rachando-o a meio na queda.

Desgostosa de ver o seu maior tesouro partido e desprezado, Judite consertou-o na medida do possível e pensou que não o voltava a deixar por mãos alheias.

Mas os corações são um pouco como a loiça boa de jantar. Depois de se partir o primeiro prato, há sempre um pouco menos de cerimónia no uso do serviço. 

E Judite continuou a usar o seu coração que continuou a ser partido, rachado e riscado.

No princípio, parecia mais feio, mas, com o tempo, foi evoluindo; tornou-se filigrana, cota de malha cinzelada, fio de ouro... E com cada uso, o objecto parecia ficar mais leve, flexível, rico e permeável.

E a sua composição foi mudando, desrigidificando. O coração adquiriu o hábito de se mexer e começou a não conseguir passar sem isso, já não sabia estar inerte sem se sentir morto.

Porque o coração de Judite deixou de ser um coração de ouro maciço e passou a ser um coração humano, cheio de sangue mas cheio de vida. Capaz de sentir e de se saber vivo.

Então, Judite deixou de ter medo e começou a viver, agora que tinha um músculo que lhe bombeasse o sangue devidamente pelo corpo todo.

quinta-feira, maio 19, 2011

Teresinha (2)

Teresinha Villaverde fazia ballet na adolescência, como qualquer menina de bem. E se Teresinha era a princesa das meninas de bem, era também dedicadíssima ao seu ballet que praticara durante 12 anos.

Aos 18 anos, com a entrada na Faculdade, houve muito na sua vida que mudou e deixou de fazer sentido. E com isso, também o ballet.

Mas um ano depois, Teresinha sentia-lhe a falta. Não porque gostasse especialmente de se ver de cor-de-rosa literal e figurativamente, mas porque se sentia a perder destreza, agilidade e sobretudo flexibilidade.

Decidida a distanciar-se da imagem convencional e perfeitinha que tinha, agora que estudava Comunicação Social e queria ser "alternativa", foi com algum entusiasmo que se inscreveu nas recém inauguradas aulas de Tai-chi que dava um seu conterrâneo, no centro da Santa Casa da Misericórdia.

O professor de Tai-chi era simultaneamente o professor de Chi-kung e de Kung-fu. Era um homem muito alto e muito magro, de nariz adunco e barbicha, como alguns vilões dos filmes de desenhos animados infantis. Casado com uma senhora de Braga, vivia na capital de distrito e fazia a sua vida entre Braga e o Porto, difundido as 3 artes em que se tornara mestre no Japão.

António era um homem um pouco amargo e zangado com a vida que não dispensava conhecimento algum que não fosse a troco de dinheiro, porque, dizia, também lhe tinha custado muito ir para o Japão e tinha de rentabilizar as coisas que aprendera com sacrifício.

Exercia ainda acumpunctura e shiatsu e andava a tentar implementar aulas de meditação na localidade, mas sem grande sucesso até à data.

António encarnava de alguma forma uma sabedoria e um exotismo que apenas os lugares muito distantes têm e encantava as senhoras de Vila Verde com estes mistérios, angariando várias clientes para as suas aulas.

Quando Teresinha manifestou o seu contentamento com as aulas de Tai-chi que lhe devolviam a mobilidade que sempre tivera e estimulavam a sua flexibilidade de que tanto sentira falta, António sentiu um orgulho muito especial. Teresinha era muito popular e admirada na terra e representava uma excelente publicidade a todos os níveis que estivesse satisfeita com as aulas.

Envaidecido, António propôs ajudar Teresinha, compartilhando algumas técnicas orientais diferentes para ajudá-la a recuperar ainda mais depressa a flexibilidade de uma bailarina clássica.

Combinaram nas instalações da Misericórdia uma hora antes da aula de Tai-chi. A aula não surpreendeu Teresinha que era perita em exercícios de flexibilidade e não trouxe grande novidade às técnicas que já conhecia, à parte incorporar formas diferentes de respirar nos exercícios. Mas a António, a aula trouxe novidades. Gostava de um desafio e não sabia perder. Teresinha Villaverde era dona de uma figura admirável, e tinha um controlo incomum sobre cada músculo do seu corpo de bailarina.

Cinco minutos depois de a aula começar, António teve a clara noção de que a sessão seria uma desilusão para Teresinha que aparentemente já fizera cada um dos exercícios que lhe propunha. Mas António não dava ponto sem nó.

No final da aula, e enquanto falavam de como tinha corrido e das diferenças entre estes exercícios e os do ballet clássico, António revela que ainda tem uma última e derradeira carta na manga.

Técnicas orientais que sabe que não pode partilhar com a maioria das pessoas da terra, gente tacanha, sem grandes horizontes e muito presa a conceitos do passado, mas que sente que pode partilhar com Teresinha que é uma rapariga de mente aberta e com grande flexibilidade física e mental.

E então António propõe a Teresinha, sob o abrigo da partilha de conhecimentos orientais exclusivos, e sem qualquer interesse da sua parte, a prática de posições sexuais milagrosas no ganho da flexibilidade.

Ora bem, Maria Teresa Villaverde era cada vez mais uma jovem alternativa e moderna. Mas Maria Teresa Villaverde era bem neta da sua minhota e matriarcal avó Lucinda, de espinha vertebral direita e valores católicos e cristãos mais profundamente enraizados do que supunha.

Na fracção de segundo que se seguiu à proposta de António, Teresa não ouviu nenhum som, até ouvir o estalo que dava de expressão inalterada na cara de António, directamente na sua face esquerda, com a sua mão de bailarina que redescobria inusitadamente agilidade e força.

O segundo que se seguiu ao estalo foi também silencioso. E quando terminou, Teresinha caiu em si, achou pouco inteligente a sua atitude e chegou a temer pela vida, porque António era um homem quase com o dobro do seu tamanho, o dobro da força e conhecimentos marciais letais.

Mas António permaneceu paralizado nesse instante e Teresinha saiu rapidamente pela porta fora.

O que desconheciam ambos até à data é que um estalo bem dado é uma arma indefensável e universal. E que não há defesa possível de um estalo merecido, depois de se fazer algo que se sabia à partida que não se devia ter feito ou devia ter dito.

Porque um estalo bem dado atinge uma pessoa de forma cirurgica nesse ponto vital e secreto que é o ego. um ponto a que nem os maiores mestres orientais conseguem chegar com facilidade, mas a que as donzelas bonitas, indefesas e voluntariosas têm um acesso privilegiado.


(Teresinha já tinha aparecido em Outubro no Personificcionar e decidiu repetir a visita.)

terça-feira, maio 17, 2011

Martina

Martina aprendeu com a vida que não se deixa fugiu amor nenhum. Aprendeu às suas próprias custas que o amor, quando se nega, tarda em voltar. E às vezes tarda mesmo muito.

E por isso quando Martina conheceu Gilberto atirou-se de cabeça, como vinha aprendendo há vários anos.

Martina aprendera à custa dos seus erros e das suas próprias protecções emocionais que nada há que seja pior que o arrependimento e o vazio depois do que poderia ter feito "se" e apenas "se".

E decidira desde há muito que não voltaria a ser assaltada por esses pensamentos.

E Gilberto cozinhou-a como a uma rã. Foi aquecendo a água da panela enquanto ela estava viva lá dentro, para tornar a sua carne mais tenra quando finalmente a consumisse.

Martina foi mudando, cedendo até já não poder mais. Desta vez aprendeu que afinal não se pode dar desmesuradamente, e que a vida é assim, uma madrasta que passa anos a ensinar uma coisa, apenas para depois ensinar o contrário.

E que Gilberto mentia, enganava e manipulava Martina, sob o manto de uma transparência e uma brutalidade infantil e pura.

E que toda a gente tinha pena dela, da forma como se deixava cozinhar, saindo e entrando a panela que não parava de aquecer, cozendo mais um bocadinho de cada vez.

Só que a mulher-rã é uma espécie em vias de extinção. E Martina, ao invés de ficar mais macia, à medida que a panela aquecia, ficava mais dura, mais amarga, mais imprópria para consumo. Até que, envenenada pela própria água em que a escaldavam, saltou para fora.

E no fim saiu da panela.

escaldada.

segunda-feira, maio 16, 2011

Padre Daniel

O temor era algo que o tomava de assalto e que tentatava incutir nas ovelhas do seu rebanho.

O temor a Deus.
O temor aos Santos.
O temor ao Fogo do Inferno.

O Padre Daniel era um homem consciencioso, rigoroso, meticuloso, estóico, disciplinado.

Na sua infância tinha tido um episódio de que mantinha hoje em dia segredo absoluto, fora possuído e exorcizado. Salvo pela luz da salvação eterna e pela água benta da Santa Madre Igreja. E ainda hoje tomava frequentemente banho com água benta para afastar e dissuadir potenciais demónios que de si se quisessem apoderar.

O Padre Daniel era dedicado e respeitado por toda a comunidade, mas todos sabiam que do padre Daniel não se podia esperar misericórdia.

Um dia ouviu Rufino em confissão, um adolescente com um atraso mental, e incutiu-lhe a importância do temor para não mais pecar, como era aliás sua imagem de marca.

Rufino saiu perturbadissimo da Igreja a murmurar coisas que ninguém compreendia.
Dias depois as pessoas que estavam com ele no centro de dia, preocupadas, chamam o padre, pois acham que Rufino deve estar a começar a entrar em transe.

Rufino repete "morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE" sem parar, dia e noite.

Mas o Padre Daniel não percebe o que é que isso tem a ver com ele. Na confissão repreendeu Rufino pelos seus actos, mas não falou da morte.

Conjectura-se que Rufino possa estar a escalar no caminho para a santidade ou demonização e o sacerdote começa a considerar a necessidade de chamar alguém versado na arte do exorcismo, quando Rufino não consegue parar de se balaçar chamando pela terrível ceifeira, ou anunciando a sua chegada.

Chama-se o médico, o psicólogo, a assistente social, que não lhe conseguem arrancar mais nenhuma palavra.

Rufino está por um fio, entre o internamento, a sedação absoluta e o exorcismo. Nenhum dos processos é agradável.

Na aldeia discute-se que o rapaz deve ser morada aberta, que é caso de arrepiar.

Até que surge, escrito a vermelho na parede da igreja uma aviso com letra de primária que dissuade todos da transcendência do caso e obriga o Padre Daniel a repensar a sua política de ensinar a temer:

"Torem das árvores os galhos.Rotem em torno do temor e a morte estará a um metro. Tremo pelo termo deste caso."

Catarina

Quando era uma principiante na arte do jazz recusaram a sua voz cristalina e surpreendente com base na interpretação. Disseram-lhe com sobranceria que "lhe faltava dor de corno para cantar jazz em condições".

Catarina saiu do clube pior que estragada. No auge dos seus 22 anos era dona de uma técnica vocal perfeita, fruto de anos e anos de estudo, de exercícios incontáveis, de aulas de conservatório, cursos livres dentro e fora do país e sessões de terapia da fala regulares.

Dominava a improvisação e tinha um ouvido fantástico que lhe permitia sempre perceber se e quem estava dentro ou fora de tom. Tinha swing, compreendia o ritmo como se fosse o bater do seu coração que se alterava quando ela outra pessoa dava o tempo. Conhecia os standards quase integralmente.

Tocava piano com mestria e percebia muito de todos os outros instrumentos, porque Catarina praticamente respirava o jazz e assistia a todas as jam sessions, aulas e concertos que podia. A sua própria entoação verbal era sincopada.

E fazia teatro, porque lhe tinham dito que a interpretação era fundamental no jazz.

Cantar no Hot Club era um passo natural nesta evolução fulgurante, digna das maiores honras académicas e prémios musicais.

E por isso, foi com indignação, mais do que com desânimo, que Catarina recebeu do grande especialista do clube a notícia de que o que ela era ainda não chegava para os padrões deles, quando gente "pior que ela" já lá tinha estado.

"Se quisesse ser uma desgraçadinha tinha-me dedicado ao fado", pensava com os seus botões tão zangados como ela.

E voltou à sua vida academicamente perfeita tão frustrada e revoltada com aquela injustiça, a primeira que sentia verdadeiramente queimar-lhe na pele, que começou a tornar-se na interprete e compositora que sempre estivera destinada a ser.

segunda-feira, maio 09, 2011

Elisa

Vai ao ginásio todos os serões. Faz solário. Estica o cabelo preto que pinta de 3 em 3 semanas, religiosamente. A sua roupa é sempre bem escolhida e até as peças com que faz spinning são pensadas cuidadosamente: calções um pouco abaixo do joelho, justos, e top que deixa o ombro à mostra, revelando as alças coloridas do bikini por baixo. E sim, Elisa usa maquilhagem também no ginásio, porque uma pessoa nunca sabe quando é que vai conhecer alguém interessante e mais vale prevenir.

Elisa tem todo o ar de quem está a arrumar as suas coisas calmamente no balneário do ginásio, enquanto faz conversa com todas as mulheres que a rodeiam, comentando a festa do Habana Club para os membros do health club no fim de semana passado. Foi boa, mas o Alfaiate é que é, e não se paga só para entrar, apenas aquilo que se consome. E não se tem filas.

Enquanto comenta as suas opiniões com as colegas que vão dispersando, Elisa verifica as borbulhas, as unhas de gel e o peso na balança disponível. Tenta captar as atenções das pessoas que vai encontrando na sua imagem de verniz, polida ao extremo, mas a cada três frases diz um palavrão e comete outro erro gramatical. E só consegue dizer bem de algo quando é uma rampa de lançamento para criticar qualquer coisa.

Elisa é espampanante, divertida e "um ponto". Aparece em todos os eventos do ginásio e já namorou com alguns dos seus elementos, não porque estivesse especialmente enamorada pelas suas personalidades, mas porque dá muito valor a um corpo bem definido e adora a sensação de entrar num sítio e de ser alvo da inveja de outras mulheres.

Elisa tem um sucesso mediano no seu trabalho, tem 36 anos bem conservados, trabalha com uma disciplina estóica na sua aparência impecável. Sacrifica-se diariamente por um objectivo que não sabe bem o que é, mas que pelo menos vai tacteando. E no entanto, as únicas alturas em que se sente realmente viva e relevante são pouco mais do que estes momentos em que se sente a raínha do ginásio e fala com pessoas que na verdade até nem estão assim tão interessadas naquilo que Elisa tem para dizer.

terça-feira, março 29, 2011

Ernesto

(personagem construída para o Projecto Curta Metragem)

Ernesto chegou a casa mas não estava cansado. Sentou-se à mesa cheia de papéis e livros há uma quantidade de tempo indefinida. Notava-se que tinham sido depositados em cima da mesa em tempos distintos, frutos de ideias geniais repentinas a realizar a breve trecho, com potencialidades explosivas, mas que depois ia deixando no seu mar de "projectos até um dia" poeirentos, ultrapassados e claramente fora de tempo.

A pilha incluía recortes de revistas, livros seus, livros emprestados, livros da biblioteca fora de prazo, cartas pessoais, desenhos, decretos-lei, jornais e mesmo os insuspeitos restos mortais de um pacote de batatas fritas esquecidas no meio da bagunça.

O sofá de Ernesto estava também ele cheio de tralhas que foi acrescentando quando lhe faltou o espaço na mesa ou quando quis libertar a mesma para outros projectos ou mesmo para comer. Por cima de toda a tralha no sofá ficava sempre o casaco de onde por vezes fugiam as chaves que teimavam em se esconder nos labirintos insondáveis da sua tralha depositada no maple.

Sentou-se na cadeira encostada à mesa e serviu-se de um copo de whisky sem gelo e amargou.

Amargou os seus malditos 40 anos, velhos demais para ir para outro sítio, novos demais para se reformarem. o seu sucesso mediocre, alvo da inveja de outros escritores que tiveram de mudar de vida e traidor do potencial extraordinário que identificaram professores e pares toda a vida.

Ernesto trabalhava para a ficção nacional num lugar perfeitamente invejável para a maioria dos escritores e argumentistas portugueses.

Ganhava bem e até tinha contrato.

Arrendava uma casa mais por capricho que por falta de opção.

Tinha namoradas e casos a granel, já que possuía um charme e uma dose de intrepidez e inconsequência que o tornavam irresistível às mulheres.

E no entanto, neste momento da sua vida sentia-se um traidor, um vendido e um falhado, que nunca fez realmente jus ao seu potencial, nunca arriscou. Ernesto nunca iria ganhar um Oscar, um Emmy, um Pullizer ou o Nobel da Literatura, como em tempos sonhara. Nunca chegaria ao topo.

Adiou tanto assentar com alguém que sentia que fazê-lo agora seria quase contariar a sua natureza. Mas amargava nunca se ter entregue a ninguém, nem ter constituído família.

Sabia que não havia nada por que fosse lembrado nas gerações vindouras.

E isto, estes desejos frustrados de plenitude e imortalidade faziam-no amargar nos fins de tarde, agarrado ao seu copo whisky.

segunda-feira, março 14, 2011

Gisela

No princípio, a saudade doia-lhe com uma taquicardia aguda. Uma dor localizada no peito quando lhe faltava ela, quando sentia falta dela nos momentos mais inusitados.

No supermercado quando via uma coisa que lhe costumava comprar, quando lhe falavam de uma saída ou concerto e pensava como ela gostaria de ir, à noite, em casa, quando dormia só, quando conduzia no meio do transito, sem lhe telefonar para matar o tempo com as parvoíces cúmplices que tinham possuído em tempos.

Era como se lhe faltasse uma parte do corpo, por não ter o seu abraço. Deitava-se no sofá e aninhava-se nas costas fofas do móvel como se fora ela, nos piores momentos.

Sentia-se incompleta, amputada numa qualquer parte do corpo onde não era possível criar próteses.

E nenhum dia era pior que o Domingo.

Dava por si a fazer expressões de infelicidade, a sentir nada mais do que tristeza e reparava na delicadeza exacerbada das pessoas que lhe eram queridas que intuíam ou sabiam o que se estava a passar.

No princípio, a sua ausência deixava Gisela de rastos. A saudade fracturava-a de ponta a ponta e deixava-a imóvel, paralizada e cega.

Mas o tempo passou e o comportamento errático de Joana,  ora adesiva ora evasiva, prosseguiu.

Gisela teve momentos de raiva absoluta, mais contra si por permitir que a relação continuasse do que contra Joana que a menosprezava. Sentiu-se pequena, insignificante e perdeu um pouco do respeito que tinha por si mesma.

Zangava-se consigo mesma por sentir a falta dela. Por ceder às suas próprias fraquezas. Por gostar tanto dela que fazia de conta que não via os seus imensos defeitos, o pior dos quais claramente não gostar de Gisela o suficiente, embora a quisesse só para si.

À medida que o tempo foi passando, Gisela começou a interiorizar a dura verdade de que Joana não a amava nem nunca a iria amar, não obstante as suas promessas. Lentamente foi-se afundando nela a certeza de que era essa mesma miragem de amor e tranquilidade, de segurança e conforto, que a fazia ultrapassar os hábitos irritantes de Joana, ignorar as suas manias, o seu egoísmo e a sua arrogância absurdas, própria dos ignorantes a quem a vida ainda não marcou nem ensinou grande coisa.

Perguntava-se quanto tempo levaria a deixá-la definitivamente, já que já tinha terminado a sua relação mais vezes do que conseguia contar. De cada vez que reatavam sentia-se mais longe daquilo queria, menos feliz. Mas não resistia. E percebia que quando finalmente o fizesse teria de evitar Joana a todo o custo, que não podia estar mais com ela, porque Joana não era boa para Gisela e, não obstante, Gisela era absolutamente incapaz de lhe resistir.

quarta-feira, março 02, 2011

A casa

A casa gritava por ela, em cada canto, em cada estante, nos bibelots das mesas, nas fotografias por toda a parte, nos livros abundantes e nas plantas que ela escolhera.

A casa estava em silêncio.

A casa gritava por ela e o grito tinha o som branco do ar condicionado. Omnipresente, intolerável, insuportável.

A casa sentia a falta dela como se fosse órfã. Como se lhe tivessem arrancado um membro. Como se tivesse perdido o sentido.

A casa parecia catatónica.

E a casa chorava - ostensivamente, nada menos.

Eles tentaram fazer com que a casa sossegasse; mudaram as divisões dela, transformaram os espaços que eram só dela, eliminaram as coisas que apenas ela usava e que a faziam mover, os projectos dela. O escritório, a cama, o canto das especiarias na cozinha.

Mas a casa não se deixava enganar.

E chamava por ela continuamente, como a cria abandonada de um animal selvagem.

Quase – quase – que era possível sentir o cheiro dela, ouvir o tilintar dos brincos dela, sentir o toque mão dela a ajeitar uma almofada, porque a casa lutava com todas as suas forças para que a presença dela não fosse apagada.

Porque ela estava no DNA da casa, indelével, intrínseca, sanguínea.

As paredes da casa eram dela, os quadros nas paredes transpareciam a essência dela, a disposição dos móveis fora estudada por ela e escolhida até à perfeição, os tapetes comprados por ela e o candeeiro da sala a ela oferecido.

A casa era deles e era dela. Era muito dela.

E eles tinham de viver na casa, os dois, sem que esta lhes desse um momento de sossego na lembrança de que ela existira, de que ela era ela, insubstituível, e que ela já não vivia entre eles, que ela tinha morrido.

E que nunca mais voltaria à casa.

sábado, fevereiro 19, 2011

Susana

(personagem construída para o Projecto Curta Metragem)

Susana limpava o estúdio sem grande brio, mas com um rigor mecânico. Tinha 19 anos e trabalhava nas limpezas havia 5. Nunca fora boa aluna, mas a mãe só a tirou da Escola porque certo dia lhe ligaram para o trabalho por um engano ou uma partida maldosa, dizendo que Susana tinha dado entrada no Hospital.

Alzira deixou tudo e foi a correr ter com a filha, que não estava no Hospital. Ainda muito preocupada decidiu ir à Escola confirmar com os seus próprios olhos que Susana estava bem. Mas Susana, apesar de ter a mochila na estante da escola secundária, não estava na edifício e tinha faltado às aulas toda a manhã.

Alzira tinha problemas de coração. E sentiu a taquicardia doer-lhe no peito quando percebeu que Susana podia de facto estar em apuros.

Na altura não havia telemóveis e Alzira ficou sem saber o que fazer, desesperada. Uma auxiliar deu-lhe um chá e a Presidente do Conselho Diretivo sugeriu que fosse para casa e tentasse ligar às amigas da filha.

No dia seguinte soube-se que Susana e outras duas amigas tinham passado o dia em casa de uma delas, a embebedarem-se, e os colegas nunca mais a veriam.

Susana tinha sido levada para casa pelo pai da amiga em cuja casa estavam, bebeda até à inconsciência. A mãe sovou-a na mesma, até se sentir ressarcida do mal que tinha passado nesse dia. e tirou-a da escola, já que ela de qualquer forma não estava a aproveitar o esforço que a mãe, viúva e sem grandes possibilidades, estava a fazer por ela.

A partir de então começou a trabalhar como ajudante num cabeleireiro e a ajudar a mãe nas limpezas que fazia aos dias.

Rigidamente controlada por Alzira (que decidira que não podia confiar na filha) durante a maior parte da adolescência, Susana ambicionava mais que tudo fazer 18 anos. Aos 16 começou a trabalhar para uma senhora que gostava muito dela e lhe arranjou uma cunha para ir para a empresa onde estava agora, em que, apesar de ganhar menos do que faria independentemente, sempre tinha um contrato e direitos.

O sonho dos 18 anos era a liberdade. Era o ser "maior de idade", poder fazer o que lhe apetecesse. 

E Susana cumpriu o seu preceito.

Quando fez 18 anos e se tornou coincidentemente o principal ganha-pão da casa porque a mãe teve de pedir uma pensão de invalidez dada a sua condição de cardíaca que se agravava, informou que a partir daí era dona do seu próprio nariz e que a mãe não mais a iria controlar. Que pretendia sair e divertir-se muito e que a mãe não tinha nada, mesmo nada a ver com isso.

E Alzira não teve outro remédio senão conformar-se. Valeriam a Susana os anos de inflexível disciplina e intransigência da mãe o resto da vida, onde acima de tudo se obrigava a cumprir as suas tarefas, independentemente do quão bebeda tivesse chegado na noite anterior a casa ou das horas da madrugada a que chegasse. 

Mas a amargura de sentir o futuro roubado e o rancor pela ausência de compaixão perante uma estupidez da adolescência por parte da mãe nunca mais a abandonariam também.

sábado, janeiro 29, 2011

Amélia

No dia em que o avô Jaime morreu, Amélia teve um  sentimento ambíguo, que não era de todo diferente de tudo o que sempre sentira em relação ao velho.

Nunca se haviam entendido plenamente. Jaime nunca percebera nem valorizara os esforços de Amélia por dar aos netos uma educação de valores sólidos e tradicionais e por construir com Vasco uma família exemplar e honesta. Amélia nunca percebera nem valorizara os esforços de Jaime por fazer dos netos seres pensantes e tolerantes e por querer que o filho lutasse pelos seus sonhos e afirmasse as suas opiniões.

Tinham um perante o outro sentimentos ambíguos de carinho pela forma como sentiam que ambos amavam e cuidavam das pessoas que lhes era mais queridas, e de aversão pela completa oposição dos seus valores e prioridades.

Queriam ambos a mesma coisa: ver Vasco e "as crianças" bem e felizes, mas queriam tornar isto possível de formas antagónicas e incompatíveis, o que resultava frequentemente num "choque de titãs", em que Amélia queria afastar os filhos da influência nefasta e ideias retorcidas de Jaime e Jaime queria afastar o netos dos espartilhos mentais a que Amélia chamava "valores tradicionais".

Acrescendo a tudo isto, Amélia achava a relação de Jaime com Margarida uma aberração da natureza. Claramente, a escritora 30 anos mais nova que o seu sogro não andava com ele pelo dinheiro, porque ele não tinha "onde cair morto", o que a fazia pensar que aquilo devia ser falta de atenção paterna ou carências infantis. Sentia um asco quase espasmódico quando pensava naquele casal e nunca fizera questão de o esconder. Nojo.

Mas apesar de tudo, Amélia era uma mulher de princípios e que fazia questão de exemplar e estoicamente exercer os valores que tanto tentava incutir aos filhos. E achou que quem ama se deve poder despedir.

Amélia achava justo e fez tudo para que Margarida fizesse parte desta última fase da existência física de Jaime. Conversou com o marido que havia decidido excluí-la sem mais satisfações e fez todos os possíveis por forçar Vasco.

Mas, ao contrário do que toda a agente pensava, Vasco não era nem nunca fora um pau mandado.

Era um rochedo que se pode até pisar, mas que nunca se derruba.

E assim, Margarida foi deixada de parte das cerimónias fúnebres de Jaime e impedida de se despedir condignamente do namorado.

(Jaime e Margarida são outras duas personagens. Uma das "crianças", Carminho, também)

Elvira

Tinha muito mau feitio, Elvira. Sempre tivera.

Enquanto o marido fora vivo, tentara manter a vontade de mandar e a impaciência contidas, mas depois da sua morte, revelara-se a tirana que sempre fora em todo o seu esplendor.

Na sua casa era dona e senhora, imperatriz. e nada que não fosse na medida, forma e momento que ela determinava podiam acontecer.

Elvira sentia especial prazer no exercício do poder, embora não a procurassem para conselhos tanto quanto ela achava que lhe era devido. Então, tratava de dar a sua opinião acerca de tudo o que via, ouvia e presenciava, fosse ou não chamada para o assunto.

À medida que os filhos cresciam e saiam do seu domínio de força, começavam a decidir por eles, a pensar pela sua cabeça, crescia neles a saudade do pai a quem toda a autoridade e sabedoria eram reconhecidas e a aversão pelas opiniões rápidas e rombas da mãe que não reflectia sobre nenhum assunto muito  demoradamente, mas que era inevariavelmente contundente na forma de emitir juizos de valor.

Frequentemente faltava-lhe uma parte fulcral da história e acabava por ser injusta. Mas não saia jamais do seu pedestal nem da sua opinão pré-formada. Mesmo depois de conhecer a história restante.

Os filhos recordariam com mágoa, tareias imerecidas, castigos injustos, invasões de privacidade e espaço despropositadas. E todas estas situações Elvira consideraria normais.

Quando envelheceu foi ficando cada vez mais sozinha, pois insistia em não abandonar o seu orgulho e a sua teimosia, que foram quem mais companhia lhe fez nos últimos anos da sua vida, enquanto tinha conversas baixinho constantemente com o seu marido falecido, a quem fazia queixas de todas as situações que a incomodavam e sobretudo das pessoas que lhe eram mais próximas e que ainda a visitavam.

Dos outros ia perdendo memória.

Convenceu-se que a queriam roubar, que se queriam aproveitar dela. mesmo se eram os outros que lhe traziam alimentos, roupa e outros bens. E começou a desconfiar de todos. Azedou mais do que a solidão por si só tinha conseguido fazer.

Recusava ir para casa de quem quer que fosse pela desconfiança inusitada. Que a queriam envenenar também.

E os outros não tiveram força ou vontade de a contrariar.

Morreu enquanto dormia e a sua casa e todos os seus bens que guardava religiosamente ardiam, num incêndio provocado por uma vela descuidada.


segunda-feira, janeiro 17, 2011

Margarida

Subiu as escadas até ao primeiro andar da casa de Jaime com o jornal do dia e o pão fresco e tocou levemente à campaínha antes de abrir a porta com as suas próprias chaves. 

Entrou directamente para a cozinha e pôs café a fazer, no mimo habitual que concedia a Jaime.

Chamou por ele e, como de costume, não obteve resposta. Jaime dormia pesadamente apenas de manhã, mas não fora habituado a dormir até ao meio dia e considerava uma falta de amor à vida desperdiçar assim os dias, pelo que fazia questão de contrariar sempre o seu ritmo circadiano com a ajuda da namorada.

Margarida, de 35 anos era uma mulher bonita e interessante, escritora de profissão. Escrevia crónicas para revistas e livros, e, apesar de não ter no horizonte ganhar o prémio Nobel, não se saia nada mal na sua profissão.

Gostava de trabalhar perto de Jaime, o amor inesperado e inexplicável que a assolara repentinamente. Conheceram-se na biblioteca, onde o ancião ia buscar livros e ler jornais e revistas e onde Margarida fazia as pesquisas para mais um livro. Conversa puxa conversa e antes que pudesse dar por isso, Margarida estava a jantar com Jaime na sua casa à beira-mar, fascinada pelas suas histórias e tonta do vinho que bebiam, dos charros que fumavam e da companhia que se tornava cada vez mais importante para si.

Da primeira vez que aconteceu fazerem amor, Margarida achou que era uma vez sem exemplo e ficou confusa durante muito tempo. Combateu o que sentia por não achar natural estar apaixonada por um homem com o dobro da sua idade.

Com o passar do tempo optou por colocar o seu bem-estar acima daquilo que os outros poderiam pensar.

Margarida e Jaime eram criaturas de hábitos e circunstâncias muito compatíveis, mas que prezavam muito o seu próprio espaço, ao mesmo tempo.

Apesar de estarem juntos havia já dois anos e dormirem juntos amiúde, mantinham as suas casas e vidas separadas.

Jaime tinha uma vida familiar complicada e Margarida sentia sempre uma grande necessidade de proteger a sua vida dos media que ela mesma utilizava para obter visibilidade para os seus livros.

Uma das coisas que davam especial gozo a Margarida eram os pequenos-almoços com Jaime, em que este, sem as habituais capacidades para a contrariar e contradizer, porque nunca acordava totalmente até umas duas horas depois de ter abertos os olhos do sono, era mais doce e terno. Era nestas alturas em que ele dizia de forma mais desabrida as coisas que a faziam acreditar na relação deles - efémera certamente, mas intensa à sua maneira. Jaime nunca dizia coisas boas "gratuitamente", mas se estivesse ensonado era frequente sair-lhe um "adoro-te" ou um "gosto muito de ti", tão impensado e espontâneo que só podia ser profundamente verdade.

Margarida aprendera a viver com estas pequenas coisas e a adaptar-se de modo a consegui-las ao máximo.

Hoje esmerara-se especialmente. Trazia pão e croissants frescos. Fazia café e aquecia o leite enquanto punha a mesa e o jornal. Como Jaime demorava em se levantar, Margarida fizera ainda sumo de laranja natural e compusera a mesa primorosamente.

Resignada com a ausência de iniciativa de Jaime em sair da cama, Margarida decidiu ir chamá-lo pelo seu pé. Deu-lhe um beijo na nuca, no sítio que ele gostava mais e enfiou-se na cama abraçando-o por trás, com um sorriso traquina de quem sabe que está a fazer uma maldade disfarçada.

Mas Jaime não reagiu.

O horror que Margarida sentiu no momento em que percebeu que o namorado jazia morto na sua cama só se equiparou em magnitude à incapacidade de agir que se lhe seguiu e ao sentimento de insignificância que lhe foi devotado pela restante família de Jaime, o avô Jaime: o filho, nora e netos que sem qualquer respeito  ou consideração pela sua dor e pela sua existência a despiram daquela relação, mantendo-a à parte e na ignorância de todos os preceitos e cerimónias fúnebres do homem que amara intensamente nos últimos dois anos.