domingo, dezembro 11, 2011

Lúcia

Segurando a faca da carne à porta do quarto do filho bebé, como via nos filmes fazer, Lúcia via em flashes o decorrer do serão passado.

Entrar em casa depois da ceia de Natal em casa dos sogros com o bebé ao colo.

Olhar a sala em tons de branco, prata e preto finamente decorada e sentir que a casa inalterada estava diferente.

Afastar essa impressão por achar pateta, reparar que nada estava fora do sítio e sentir-se confortada.

Entrar pelo corredor dos quartos e levar o filho à cama.

Aconchegá-lo e dar-lhe um beijo de boa noite.

Afagar o seu cabelo de arcanjo e dirigir-se ao quarto.

Entrar pela porta do quarto descalçando-se em cima do tapete fofo.

Olhar em frente e ver a cortina desalinhada.

Olhar para a cama e ver o conteúdo de todas as gavetas despejado em cima da colcha de seda. Tudo ao monte, tudo virado do avesso, tudo ao léu.

O que estaria a faltar? Quem faria uma coisa destas na noite de Natal? Será que o seguro cobria os danos?

E estaria ainda alguém em casa?


Sentir o coração bater até quase lhe sair do peito.

Sair do quarto encontrar o marido que fora à cozinha, à porta do corredor, com duas facas grandes.

Perceber por sinais que o marido lhe fazia, que os intrusos poderiam ainda estar em casa.

Correr para a porta do quarto do filho e telefonar à família enquanto o marido percorre a casa.

Não temer nada por si, pensar apenas no filho. Não sentir nenhum medo por si. Sentir-se invulnerável.

Saber que o seu corpo magro tinha 20 metros de altura e a força de um tornado.

Perceber e antecipar que atingirá com a sua fúria invencível e assassina qualquer desconhecido que chegue perto da sua criança.

Compreender que os seus princípios humanistas, de não violência e pacifismo caem abaixo da terra perante uma ameaça ao filho.

À cria.

Sentir o apelo animal que faz desconsiderar qualquer consequência que possa advir para si - agressão, incapacitação, morte, prisão - logo que o seu filho esteja seguro.

E segurar a faca com mais força, na sua atitude de leoa selvagem e protetora.

Os intrusos já não estavam em casa. Fugiram quando ouviram o carro chegar e deixaram o trabalho a meio, embora tivessem levado muita coisa.

Lúcia demorou a largar a faca, como se tivesse medo que a realidade não fosse tão boa como as notícias que acabara de receber. Olhou para o marido, espreitaram o filho e olharam para o quarto revolto.

Choraram muito.

Perceberam logo que os ladrões tinham levado o ouro que Lúcia colecionava havia 35 anos, entre compras, dádivas e heranças. Mas nessa noite, os ladrões roubaram-lhes muito mais do que isso. Roubaram a sensação de segurança e conforto que o seu lar lhes oferecia. Roubaram a sua privacidade. Roubaram o apego à casa que construíram arduamente.

E deram a Lúcia a certeza que o amor que sentia pelo filho era muito maior que a sua vida, era muito mais forte do que qualquer coisa que alguma vez tivesse imaginado e que não se ficava pelo quanto o seu coração batia por ele. Tinha consequências práticas e muito reais.

Lúcia soube de forma muito concreta e mesmo assustadora que pelo filho era capaz de tudo. Até de matar.

Quando a família a quem entretanto tinham telefonado para os acudir e chamar a polícia assomou afogueada, munida das caçadeiras e outras ferramentas capazes de os proteger de um pequeno exército, era já tarde.

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