segunda-feira, agosto 20, 2012

Paulo

Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".

Sorria com esta lembrança. Quando a conheceu, ela estava a dizer os significados dos nomes numa roda de curiosos.

-Tiago significa "o maior". Ana? "Agraciada por Deus". César? "Imperador", é daí que deriva a palavra Kaiser e Czar. Vitor? "Vencedor".

- Chamo-me Paulo. O que é que isso significa?

Silêncio.

- És Paulo, quê?
- Só Paulo.

A voz dela diminuiu um pouco e com algum embaraço, respondeu:

- Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".

Ela, a mulher bonita e interessante ficou com ar de pena e sentimento de culpa, perante o "Pequeno", "Pouco" Paulo. E o "Pouco" "Pequeno" Paulo que era um homem relativamente baixo e definitivamente feio aproveitou  a deixa e disse-lhe que a única forma que ela tinha de o compensar daquele embaraço era jantar com ele.

Ana disse que sim no momento, por pura compaixão. Paulo sabia, mas não fazia mal. O pior que poderia acontecer era passar um bom serão com uma mulher bonita; o melhor...

Combinou em casa dele para a sexta seguinte, 20 de Agosto, e foi ele que cozinhou o jantar.

Ana combinou com uma amiga que lhe ligasse para ela ter uma desculpa para se vir embora cedo. Paulo não fazia o género dela e ela não queria ser rude.

Paulo abriu um "Duas Quintas" maduro tinto especial e pô-lo a decantar na cozinha. Tostou pão no forno e escolheu dois ou três queijos. Fez de véspera mousse de chocolate com gengibre, pimenta rosa e menta, uma especialidade sua. O chocolate ficava-lhe sempre com o ar banal de uma mousse de chocolate, de castanho rico e cremoso, mas as especiarias adicionavam-lhe um interesse diferente e faziam com que não ficasse enjoativo. Era uma surpresa que proporcionava aos convidados que olhavam céticos para os grãos de pimenta rosa e folhas de menta com que decorava o prato, encorajando-os a trincar tudo em conjunto.

Quando Ana chegou, pontualmente, ele estava a acabar a comida. Convidou-a a entrar e a fazer-lhe companhia na cozinha enquanto acabava o jantar.

Ana sentou-se numa cadeira na cozinha grande a conversar e a provar o vinho e o queijo, enquanto Paulo acabava o molho de carne picada e couve roxa para a massa que preparava.

A conversa começou distraída e descontraída. Paulo era feio, mas não era burro. Enquanto temperava e dava a provar a comida a Ana, enquanto agitava a massa para ela com as suas mãos experientes e lhe explicava os seus segredos de exímio cozinheiro, foi entrando aos poucos na sua alma, abrindo a porta do seu coração.

Antes de Ana dar por ela, estava completamente sob o feitiço de Paulo por quem não teria dado nada. e que, como frequentemente acontece, por detrás da sua aparência pouco atraente era um homem culto, interessante e charmoso.

A mesa estava posta com elegância e simplicidade. Um aparato despretencioso e intimista, criando um ambiente naquela fronteira difícil de conseguir, entre o interesse declarado e uma dúvida de casualidade simpática. No ponto perfeito entre o charme que é assim naturalmente ou a corte deliberada mas discreta. Um "quero-te, se tu valeres a pena" impossível de resistir.

O vinho era muito bom. Não chegaram à mousse.

Durante os quatro anos que estiveram juntos, jantavam sempre a 20 de Agosto com o mesmo menu. O ritual mudou ligeiramente; Ana passou a estar encarregue de escolher o vinho e os queijos que mudavam de ano para ano; na véspera, Paulo continuava a fazer a mousse, mas Ana lia para ele, enquanto ele derretia o chocolate espesso e lustroso e o perfumava de raspas de gengibre fresco e pimenta rosa moída, enquanto batia os ovos da forma mais silenciosa possível para poder continuar a ouvir narração de "O cemitério de pianos", "Sputnik, meu amor"ou "A cabeça cortada de Damasceno Monteiro" na voz ritmada e quente da sua amada.

No dia do jantar, Ana continuava a sentar-se na mesma cadeira da cozinha de copo na mão, conversando ou lendo para Paulo no ritual intimista de quem partilha ao vivo a emoção de uma história que se desenrola em tempo real e a criação de uma refeição perfeita.

Jantavam, conversavam e dançavam ao som das músicas intimistas de que gostavam.

Sentavam-se sempre nos mesmos sítios como se quisessem preservar aqueles momentos perfeitos em que se tinham apaixonado. Ana continuava a vestir o mesmo vestido desinteressante que tinha levado para não chamar a atenção do homem que achava que não queria cativar. Mudara a lingerie.

E aquele serão, que se repetia geminado de ano para ano, era sempre memorável, com o bom vinho e a leve embriaguez, a massa que ficava sempre perfeita com o seu ar roxo inconvencional e o queijo derretido, a mão de Ana pousada em cima da mesa e a mousse de chocolate depois da dança lenta - e da sobremesa.


domingo, agosto 12, 2012

O que não fazer na hora de perder o avião

Não pôr o despertador para a hora certa.
Não acordar a horas.
Não se certificar que as bagagens estão nos limites de peso.
Não fechar bem a mala.
Não colocar um aloquete.
Não escrever uma etiqueta com a morada de destino na mala, para o caso de se extraviar.
Não apanhar um taxi.
Não organizar os documentos.
Não conferir que os líquidos das bagagens de mão não excedem as quantidades permitidas.
Não ter os bilhetes impressos e à mão.
Não pagar o taxi.
Não sair do taxi.
Não entrar no aeroporto.
Não fazer o check in.

Não largar a mão. não abraçar. não beijar. não despedir. Não afastar. Não virar as costas. Não virar as costas. Não virar costas. Não caminhar para longe. e cada vez mais longe. e com as lágrimas nos olhos. não ir.

Não passar pela segurança do aeroporto.
Não correr. 
Não ultrapassar as pessoas que caminham lentamente e apreciam os produtos no free shop.
Não encontrar a porta de embarque.
Não ir para a fila de embarque.
Não ter o cartão de embarque visível acompanhado do passaporte.
Não entrar no avião.
Não cumprimentar o simpático staff do avião.
Não encontrar o lugar no assento indicado no bilhete.
Não sentar.
Não apertar o cinto de segurança e colocar o assento numa posição vertical.
Não partir.

Não dizer adeus para sempre àquele amor.

quinta-feira, agosto 09, 2012

Cala-te, Márcia #2

(guião)

Joana e Márcia estão na cozinha. A casa é claramente rica e bem situada, um apartamento na Foz. Ouve-se o mar ao fundo. E levemente o ruído de um jogo de futebol noutra divisão.

A cozinha é grande e acolhedora.

Joana e Márcia conversam enquanto tomam um chá e comem biscoitos que talvez tenham sido feitos à mão, talvez tenham sido feitos por uma das duas, talvez tenham sido comprados. Têm bom aspeto: se foram elas que fizeram, fazem muito bem; se compraram, foram caros.

A loiça não é particularmente rococó. É Vista Alegre que se usa no dia a dia ou as chávenas boas que a avó deixou a Márcia.

Usam coisas boas e em pouca quantidade, com displicência natural de quem vive muito bem há muito tempo.

Márcia tem uma nódoa negra no braço que está mais ou menos tapada pela blusa.


Joana: Mas isto já aconteceu antes?

Márcia: Não. Achas? Isto foi uma coisa completamente extemporânea. Ele não sabe a força que tem.

J: Espera. Mas... como é que isso aconteceu?

M: Então, foi para eu não cair. Ele agarrou-me o braço e fez força a mais. Sabes que ele fica tolo quando imagina sequer que algo de mal me pode acontecer.

(pausa. Maria está incrédula, mas não quer confrontar nem intimidar a amiga)

M: Vá. Eu sei o que é que estás a pensar. Mas não é nada disso, não é nada disso mesmo. O Rui gosta mesmo muito de mim, fica completamente perdido quando nos zangamos, não tens noção. E tu sabes que ele teve uma vida lixada antes de me conhecer. Pronto. E quando pensa que me pode perder, fica um bocado descontrolado. Mas está tudo bem. (Márcia sorri, apaziguando a amiga)

(Joana continua sem saber o que dizer)

M: Queres mais chá?

J: Sim, se faz favor. O que é que estás a pôr nisso? Não queres ficar com uma marca aí...

M: Umas pomadas que tinha por aqui. Sabes que eu sou uma desastrada e ando sempre a fazer negras.  Daqui a uns dias isto já está bom, nem se nota nada.

J: eu sei que ele é teu marido, mas estas coisas deixam-me preocupada...

Márcia não gosta da afirmação/insinuação e reage de forma muito levemente agressiva, mas sem cruzar o limite da confrontação aberta

M: Estas coisas? Mas que coisas?

J: Pronto, não te zangues.

M: Eu não estou zangada, Joaninha. Não estou é a perceber o que é que queres dizer com "estas coisas deixam-me preocupada". Até parece que há "coisas" para te preocupares. Não gosto desse tipo de comentários. Eu e o Rui somos um casal super feliz e damo-nos super bem. Temos as nossas coisas como todos os casais, mas ele nunca me faltou ao respeito. E tu sabes que ele faz tudo por mim. Está sempre preocupado se me falta alguma coisa, ajudou-me quando eu estava muito deprimida no trabalho e até foi ele que me disse que eu não precisava de trabalhar. O Rui pode ter muitos defeitos mas ninguém pode dizer que ele não me ama. E isso é o mais importante, ou não?

J: sim, claro... Não te queria ofender, Márcia, de todo. Eu só quero é que tu estejas bem, ok?

Márcia tira um biscoito e sentindo que recuperou o controlo da situação, continua

M: És uma querida. Mas eu estou bem, sim. Tu sabes que eu amo o Rui mais que tudo na vida. E ele faz-me feliz. Tem aquele feitiozinho dele, mas ama-me muito e cuida muito de mim.

J: A verdade é que ele não pode ver outro homem a olhar para ti.

Márcia sorri cumplicemente e diz vitoriosa e inchada de orgulho:

M: Fica louco. Tem logo que vir por o braço à minha volta, marcar território. Ele acha que todos os homens querem ficar comigo. E Deus me livre se me vê a conversar com alguém, acha logo que o fulano vai ficar obcecado, que me vai perseguir. Imagina tu que no último jantar do Lions a que fomos eu tive de mudar de vestido mesmo antes de sair. Fez uma cena porque achou que o vestido era muito decotado, que os outros iam ficar todos a olhar para mim, que - imagina tu - "o que é dele" ("o que é dele", vê lá tu que querido!) "o que é dele não é para os outros verem", que eu sou só dele. E fez finca pé, lá tive de ir trocar de vestido. Aquele homem quando mete uma coisa na cabeça é assim, tem que ser e tem que ser mesmo.

J: de que signo é que ele é?

M: Touro. Não se nota? Teimoso, ciumento e possessivo. parece que lhe vão tirar o chão quando acha que pode ficar sem mim.

J: Mas ele acha mesmo que te pode perder assim?

M: tens de compreender: o Rui vem de uma família em que os pais discutiam muito. Levou muita porrada quando era miúdo, sem razão nenhuma. Não contes a ninguém, mas o pai tinha muitas amantes e discutia muito com a mãe, batia-lhe e coisas afins. E a mãe metia-se nos copos. Ele era o filho mais velho e depois a irmã morreu naquele acidente esquisito. Olha, eu nem sei como é que ele saiu tão bem da situação. Ele subiu a pulso, sabes Joana. conseguiu bolsas de estudo e depois de ter sido retirado à família começou a trabalhar porque o sonho dele era ser médico. Ele não teve uma vida boa como nós. E mesmo assim, conseguiu chegar onde está. É um grande homem.

J: está bem, mas ele também devia saber a mulher que tem. Tu não és propriamente uma Lucrécia Bórgia. Eu já nem me lembro de te ver falar com outro homem.

M: Oh, sabes como é que é. Quando cresces num ambiente assim, tens sempre dúvidas sobre o que é que é e o que é que não é. Duvidas muito mais das coisas que tens e das relações que constróis. Nunca tens a certeza do amor da outra pessoa, tens sempre de estar a validar essa ideia.

J: Olha que mesmo não exercendo, as cadeiras de psicologia não te esqueceram.

M: eu tenho lido muito sobre isto, sabes? O Rui precisa muito de ajuda e eu acho que ele está muito melhor agora. Já não faz as cenas de ciumes que fazia. Isto é quase uma vergonha, mas vou-te contar que houve uma altura em que ele me ia ver  telemóvel e o email. e o facebook. enfim. foi por isso que acabei com o facebook: ele ficava tão inseguro e alterado quando eu  tinha amigos homens - Joana eram só conhecidos, só pessoas dos meus voluntariados e projetos de caridade - que eu decidi acabar com o facebook. Também não preciso daquilo para nada. É só para a cuscuvilhice e eu estou muito bem aqui no meu cantinho.

J: está bem. Mas podias aparecer mais, que nós não te temos visto e temos sentido a tua falta. Já nem vais à quintas-feiras aos chás a Seralves...

M: tenho andado na minha vida, sabes? Tenho andado a fazer as minhas coisas, metida nos meus projetos. O Rui também não achava grande piada quando eu ia aos chás, achava que eu vinha diferente e discutiamos mais vezes. Desde que eu deixei de ir as coisas andam mais calmas. Como uma lua mel. E nós os dois quando estamos só os dois entendemo-nos muito bem.

J: Ele passa muito tempo em casa?

M: Oh nem por isso, sabes que com o trabalho no hospital e na clínica e mais as reuniões do partido ele anda sempre de um lado para o outro. O Rui é uma pessoa muito cheia de vida, com muitos amigos e como trabalha para nós os dois também trabalha a dobrar - não quer que me falte nada... Eu já lhe disse um par de vezes que as coisas me fazem menos falta que ele, mas ele é assim, não consegue imaginar que me possa faltar alguma coisa.

J: Então o que é que tens feito?

M: Vou tratando da casa, vou ao ginásio e faço voluntariado. E leio muito. É isso. Quando o Rui tem um tempinho vamos namorar e fazer o que ele quiser.

J: Márcia, já viste que te tornaste uma dondoca e que o Rui conseguiu eliminar quase tudo o resto da tua vida? Que quase nem sequer tens amigos teus e já não te dás com mais ninguém?

(Márcia exalta-se e levanta a voz)

M: Não te admito isso, Joana. Não te admito mesmo.

(ouve-se a televisão na outra sala, onde está a dar futebol subir de volume também)

M: Não tens o direito de vir a minha casa e dizer essas coisas, insultar-me dessa maneira.

(A exaltação aumenta e também o volume da televisão)

M: Como é que tu te atreves a acusar o meu marido de uma coisa dessas?

Rui, da sala, grita um comando autoritário:

"Cala-te!"

Márcia reage como se lhe tivessem levantado a mão, suspendendo a respiração imediatamente, parecendo assustada.