O verbo morrer, em latim, só tem voz passiva.
Talvez os romanos entendessem na sua imensa sabedoria que ninguém diria "morri" sendo esse facto verdade, porque pelo menos até àquela altura não havia histórias de gente que tivesse regressado dos mortos para contar como tinha sido.
Talvez o verbo morrer completo, com voz ativa, como presente na Língua Portuguesa tenha sido fruto da nossa herança Cristã-Católica, para que Cristo ressuscitado pudesse dizer ele mesmo "morri e ressuscitei".
Ou talvez porque, na verdade, a morte - auto-infligida ou não - e sendo uma coisa que nos acontece a nós, é uma coisa que fazemos aos outros. "Morreu-me a minha prima" é uma frase perfeitamente passível de ser dita numa conversa de desabafo entre velhas amigas que se encontram na rua.
Porque a morte de alguém querido é como que o arrancar de um pedaço de nós, um pedaço que não exonerámos, um pedaço que nos foi tirado com maior ou menor violência, estando nós a contar com isso ou não.
Eram 5, as irmãs.
O pai, de nome Orfeu, decidira que os filhos teriam nome por ordem alfabética, coisa a que a mãe inicialmente achara graça.
Só tiveram filhas. Chamaram-lhes Alcina, Expedita, Isabel, Olga e, quando a mãe já desesperava porque o pai queria chamar Umbelina à última, uma velha superstição veio em seu auxílio. Uma que dizia que um casal que tivesse 5 filhas seguidas devia chamar "Eva" à quinta (se tivessem 5 rapazes seguidos, naturalmente, o quinto deveria ser "Adão"). Era uma superstição religiosa e invocando a primor católico e o rigor com que criavam as filhas e viviam a sua vida, Maria do Carmo venceu a disputa.
E assim as irmãs ficaram completas.
Alcina morreu muito nova, ainda não tinha 6 anos.
Eva foi a segunda que perderam, não pela morte, mas pelo Alzheimer. Eva existiria a partir dos 40 e muitos anos apenas por flashes e cliques em que voltava a ser quem era, ou a lembrar-se dos filhos, dos outros e mesmo de si. A doença esquecedora roubaria Eva - curiosamente, a de boa memória. aquela a quem se perguntavam as datas de aniversários. a que era incapaz de esquecer um facto, um bom gesto ou um rancor.
Expedita foi a terceira a partir. Tinha meros 67 anos e morreu de um AVC.
Isabel partiria ano e meio depois de Expedita de uma doença fulminante. Libertou-se da prisão em que se tornara o seu corpo, mas no dia do funeral, o marido, com quem estivera casada quase 50 anos, desolado, perdido, de coração ainda apaixonado partido, suspirava entre as lágrimas "Nunca pensei que ela se me fosse embora tão depressa".
E assim as irmãs deixaram Olga sozinha. Por ordem alfabética, como o pai teria querido, mas sem desrespeitar a ordem cronológica, como teria sido a vontade da mãe.
1 comentário:
Gosto bastante, sobretudo como começa e como acaba ; )
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