Moveu-se debilmente para o centro do palco e recebeu o aplauso com graciosidade, mesmo sem perceber exactamente porque é que a aplaudiam.
Cada pessoa que por ela passava fazia a mesma pergunta "lembra-se de mim?" e depois tentavam identificar-se de tal forma que ela os reconhecesse. Não reconhecia. A D. Elisa mal se lembrava dos filhos e dos netos, quanto mais das pessoas que um dia povoaram a sua vida e que ela enriquecera de forma inquantificável?
A D. Elisa foi sempre o pilar da família, o motor das vidas de todos que a rodeavam e até aos oitenta e tal anos era ela que fazia os licores para o natal, os almoços de domingo, as limpezas da casa. Dava aulas de música em casa e era incansável. Recitava as lições de teoria musical de cor
"Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Ioannes
é o poema em latim que está na origem dos nomes que damos às notas musicais..."
Dirigia o coro e era ela que comprava os rebuçados de mentol do Lidl, fazendo a longa caminhada de sua casa à zona industrial a pé para que nada faltasse "aos meninos". Cantava, tocava piano, e dava aulas de tudo isso enquanto fazia um pouco de avó para todos com as suas histórias empolgantes de "quando era nova".
E cuidava do marido doente, fazendo crer a todos e até a ele que nada era muito grave, que tudo se passa nesta vida.
Quando o marido morreu, perdeu o norte. Como se tivesse perdido o propósito. Como se ela, o motor, tivesse ficado de repente sem ter para onde ir, em ponto morto e sem gasolina. E ela que havia sido sempre a pessoa de boa memória, aquela a quem se perguntava "quem é fulana" para se ficar a saber não só uma completa biografia como uma breve árvore genealógica e as peripécias mais relevantes da família em geral, começou a apagar a sua vida aos poucos.
Começou com as pessoas que via pouco, passou aos conhecidos da rua, a seguir para os alunos e ex-alunos que conhecera e com os quais convivera durante décadas, depois para os alunos recentes, depois para as pessoas com quem convivia diariamente e por fim para os netos e para os filhos.
Lembrava-se que tinha de ir ao cemitério.
Nunca se lembrara das letras das músicas e começou também a esquecer a música.
Desvaneceu da sua memória a sua maior riqueza: as coisas que construiu, as suas experiências diversificadas, ricas e enriquecedoras. As vidas que tocou.
O dia da homenagem foi confuso para a D. Elisa, que, no entanto, não tinha esquecido como se está num palco e o que isso significa em geral. Que não esquecera que um artista agradece sempre o aplauso com humildade. Que faz sempre uma vénia.
Mas que não conseguia perceber porque a beijavam e abraçavam tantos estranhos, porque é que tanta gente insistia para que se lembrassem dela. Porque é que a sua importância era tão tamanha.
1 comentário:
Esta personagem irá ficar sempre na nossa memória.E eu irei ficar -lhe sempre grata por tudo de bom que transmitiu e soube dar principalmente as palavras de incentivo.
Gostei muito do que li. És uma optima contadora de histórias, continuo a ser tua fã.
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