domingo, julho 17, 2011

Salomé

O tempo assumia formas estranhas para Salomé. O tempo é essa película de nada que cobre o mundo de forma completa, que os relógios tentam disciplinar, mas que qualquer criança sabe que não tem regulação possível. Que cinco anos são uma vida e cinco anos não são nada, que as férias passam a voar e as sextas feiras nunca mais acabam.

Havia quem lhe dissesse que tinha de ser mais objetiva, esquecendo-se que a imaginação conjunta o mundo.O equador é a linha imaginária que divide o mundo em duas partes; as fronteiras são linhas imaginárias que dividem os territórios em países; em matemática, a unidade imaginária permite aceder aos números complexos; o Pai Natal é uma criatura imaginária que traz presentes às crianças no Natal; o português médio é uma figura imaginária que representa os valores da População Portuguesa, em média... Etc.

E para ela o tempo era especialmente indisciplinado e rebelde. O tempo que parecia demorar-se nas conversas com Rodolfo que lhe coloriam o dia, fugia pelos cantos da sala onde trabalhava, esquecia-se de responder a mensagens de telemóvel, em cinco minutos adiados sucessivamente. O tempo, essa criatura imaginária que tanto a ajudava como gostava de a judiar, arrastando-se e correndo, mas que de vez em quando lhe dava o prazer de uma dança, em que o tempo era o certo e ela perfeitamente coreografada.

Salomé sentia que o tempo, para ela, não passava, porque "passar" indica que o tempo anda a um ritmo mais ou menos controlado, ele anda em linha reta mais ou menos devagar, mais ou menos depressa. E para si o tempo rodopiava, andando para trás e para a frente, para os lados, quando se lembrava de João, das avós, da porta de casa mal fechada, das tartes de morango que se tinham de reservar de sobremesa no sítio do costume, das férias no Algarve este ano, do prazo do trabalho para entregar amanhã.

Porque a vida de Salomé, tal como o seu tempo, não passava. A vida de Salomé era um conjunto imaginário de todas as suas experiências, vividas uma, duas, mil vezes, na primeira pessoa, na segunda pessoa, na sua memória, nas histórias que contava às outras pessoas, nas coisas que lhe contavam, nos livros, nos filmes, nas músicas, no sentido que tentava fazer de tudo, um pouco diferente a cada vez. E, por isso, a vida não passava em linha reta, a vida dançava rodopiando para trás e para a frente em eterna repetição e em constante inovação, com significados novos e coisas inesperadas em cada momento.

Em Salomé um dia podiam ser anos e uma semana passar sem se dar conta. Em Salomé o tempo agia de forma estranha, independentemente das suas tentativas de o disciplinar com horários. Esticava-se e crescia nuns lados, era fugaz noutros. E a sua vida era a real medida do seu tempo, independentemente dos calendários e relógios.

Porque a vida acontece como a vivemos e a contamos, não como de facto se passou.


Palco do Tempo - Noiserv

3 comentários:

rvs disse...

Gostava de aprender a controlar a velocidade do tempo nos momentos em que me apercebo que não há tempo suficiente, porque TUDO é temporário, de uma forma mais ou menos inesperada!

La fille disse...

a minha ausencia de rotinas, rotinas que me asfixiam, fazem com o tempo tenha o caracter imaginario q terá p salomé... os dias tem passado a correr.

Cainha disse...

Gostei muito, a forma como percepcionamos a passagem do tempo e dos ciclos é algo que tb prende a minha atenção e reflexão...
Se ainda não leste,aconselho este livro que é uma autêntica delicia: Os Sonhos de Einstein, de Alan Lightman. Quando leres vais perceber a razão da sugestão ;)
Beijinhos