segunda-feira, janeiro 17, 2011

Margarida

Subiu as escadas até ao primeiro andar da casa de Jaime com o jornal do dia e o pão fresco e tocou levemente à campaínha antes de abrir a porta com as suas próprias chaves. 

Entrou directamente para a cozinha e pôs café a fazer, no mimo habitual que concedia a Jaime.

Chamou por ele e, como de costume, não obteve resposta. Jaime dormia pesadamente apenas de manhã, mas não fora habituado a dormir até ao meio dia e considerava uma falta de amor à vida desperdiçar assim os dias, pelo que fazia questão de contrariar sempre o seu ritmo circadiano com a ajuda da namorada.

Margarida, de 35 anos era uma mulher bonita e interessante, escritora de profissão. Escrevia crónicas para revistas e livros, e, apesar de não ter no horizonte ganhar o prémio Nobel, não se saia nada mal na sua profissão.

Gostava de trabalhar perto de Jaime, o amor inesperado e inexplicável que a assolara repentinamente. Conheceram-se na biblioteca, onde o ancião ia buscar livros e ler jornais e revistas e onde Margarida fazia as pesquisas para mais um livro. Conversa puxa conversa e antes que pudesse dar por isso, Margarida estava a jantar com Jaime na sua casa à beira-mar, fascinada pelas suas histórias e tonta do vinho que bebiam, dos charros que fumavam e da companhia que se tornava cada vez mais importante para si.

Da primeira vez que aconteceu fazerem amor, Margarida achou que era uma vez sem exemplo e ficou confusa durante muito tempo. Combateu o que sentia por não achar natural estar apaixonada por um homem com o dobro da sua idade.

Com o passar do tempo optou por colocar o seu bem-estar acima daquilo que os outros poderiam pensar.

Margarida e Jaime eram criaturas de hábitos e circunstâncias muito compatíveis, mas que prezavam muito o seu próprio espaço, ao mesmo tempo.

Apesar de estarem juntos havia já dois anos e dormirem juntos amiúde, mantinham as suas casas e vidas separadas.

Jaime tinha uma vida familiar complicada e Margarida sentia sempre uma grande necessidade de proteger a sua vida dos media que ela mesma utilizava para obter visibilidade para os seus livros.

Uma das coisas que davam especial gozo a Margarida eram os pequenos-almoços com Jaime, em que este, sem as habituais capacidades para a contrariar e contradizer, porque nunca acordava totalmente até umas duas horas depois de ter abertos os olhos do sono, era mais doce e terno. Era nestas alturas em que ele dizia de forma mais desabrida as coisas que a faziam acreditar na relação deles - efémera certamente, mas intensa à sua maneira. Jaime nunca dizia coisas boas "gratuitamente", mas se estivesse ensonado era frequente sair-lhe um "adoro-te" ou um "gosto muito de ti", tão impensado e espontâneo que só podia ser profundamente verdade.

Margarida aprendera a viver com estas pequenas coisas e a adaptar-se de modo a consegui-las ao máximo.

Hoje esmerara-se especialmente. Trazia pão e croissants frescos. Fazia café e aquecia o leite enquanto punha a mesa e o jornal. Como Jaime demorava em se levantar, Margarida fizera ainda sumo de laranja natural e compusera a mesa primorosamente.

Resignada com a ausência de iniciativa de Jaime em sair da cama, Margarida decidiu ir chamá-lo pelo seu pé. Deu-lhe um beijo na nuca, no sítio que ele gostava mais e enfiou-se na cama abraçando-o por trás, com um sorriso traquina de quem sabe que está a fazer uma maldade disfarçada.

Mas Jaime não reagiu.

O horror que Margarida sentiu no momento em que percebeu que o namorado jazia morto na sua cama só se equiparou em magnitude à incapacidade de agir que se lhe seguiu e ao sentimento de insignificância que lhe foi devotado pela restante família de Jaime, o avô Jaime: o filho, nora e netos que sem qualquer respeito  ou consideração pela sua dor e pela sua existência a despiram daquela relação, mantendo-a à parte e na ignorância de todos os preceitos e cerimónias fúnebres do homem que amara intensamente nos últimos dois anos. 

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