"-Gabriel, não faças barulho."
Aos 70 anos, o avô Jaime continuava a gostar das suas pequenas transgressões. Nada lhe sabia tão bem como um prazer roubado.
Os netos com quem fumava charros na varanda de casa (erva de cultivo e cuidado próprios e biológicos) conheciam bem demais como lhe apraziam estas pequenas facadas que espetava na educação convencional que Amélia, a nora, tanto se esforçava por dar aos filhos.
Gabriel e Ana Maria andavam ambos num colégio católico, iam à missa todos os Domingos e eram escuteiros.
Ao avô Jaime, um liberal de esquerda aventureiro isto sempre fizera muita confusão, mas não sentia que tinha legitimidade para interferir. mesmo se isso o fazia pensar que não educara o seu filho Vasco, agora um mero pau mandado da mulher, tão bem como havia suposto.
Quando os netos adolescentes o visitavam, a palavra chave era "vamos falar para a varanda" ou "vamos ver as estrelas" ou "vamos ver o mar", e os três percebiam imediatamente que o caminho estava livre para as suas conversas intimistas, explícitas e frequentemente heréticas com o ancião renegado da família.
Mas Jaime não agradava à nora que percebia os filhos diferentes depois das idas ao avô e isso fazia com que estas fossem tanto quanto possível escassas. E como ele ansiava com sofreguidão as visitas da juventude da família.
Preparava-se cedo, contrariando o seu ritmo habitual. Levantava-se da cama e tomava banho. Queria sempre certificar-se que tinha todas as referências musicais que queria partilhar com os netos, todas as fotografias, livros e filmes que lhes queria referenciar. Guardava a erva mais suave, certificando-se que não era especialmente forte para quando estava com eles.
Se pudesse, se lhe dessem por uma vez carta de alforria e a liberdade de um dia só com eles, prepararia algum prato exótico e serviria do vinho especial que tinha guardado para as melhores ocasiões. Amava aqueles dois adolescentes quase adultos muito mais do que a sua própria vida. e queria beber da sua juventude, assegurando-se que percebiam a liberdade ao seu dispor, as suas possibilidades; que a moral e os limites que lhes eram impostos precisavam de ser questionados. Que tinham de viver. E que o deixassem viver um pouco da sua juventude de forma partilhada.
Jaime era viúvo e tinha uma namorada, Margarida, cerca de 30 anos mais nova que ele, com quem não vivia e que evitava trazer para as reuniões familiares para evitar expô-la ao escrutínio mesquinho e precipitado da nora e para evitar dar a Amélia mais uma desculpa para o privar dos netos.
Levava uma vida calma e sossegada junto ao mar.
E um dia, simplesmente, não acordou.
1 comentário:
Loopy, que conto lindo e triste...
Poxa tem gente que não sabe aproveitar o tempo que tem junto das pessoas, a nora do Jaime, certamente há de arrepender-se algum dia, no final das contas, muitas coisas parecidas nos acontecem...
Lindo teu blog, hei de segui-lo...
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