domingo, novembro 03, 2013

César e o Sr. Sá

Ela falou dele e tratou-o pelo segundo nome.

O mundo de César parou nesse momento.

Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.

Ela tratou-o pelo segundo nome com a naturalidade de quem o faz com frequência; disse Filipe em vez de Herculano e continuou a falar normalmente, sem interromper a linha de raciocínio.

E César, que se preparava para entrar no carro ficou parado no seu incêndio mental, na inflexão momentânea que estas coisas demoram aos olhos dos outros.

César sempre fora um homem de detalhes. Acreditava piamente no credo que diz que Deus (ou o Diabo!) está nos detalhes e era meticuloso no que fazia. Aliás gabava-se de preferir ter pouco e fazer pouco e fazê-lo bem, do que o contrário.

Não gostava de tralha.

Fazia-o não porque fosse uma pessoa vazia, mas porque pelo contrário, tinha tantas ideias, tanto que passava na sua cabeça, que este minimalismo o ajudava a lidar com a muita informação que ia armazenando – nem sempre por vontade sua.

César era uma daquelas pessoas que vive no momento e é incapaz de esquecer uma conversa, uma história, um detalhe. Não era uma habilidade treinada, era algo que lhe acontecia naturalmente.

Não era raro surpreender as pessoas que encontrava na rua, a meio da conversa de circunstância perguntando como estava a mãe, que tinha sido “operada, não era? Como correu? Ela sempre se deu lá com o médico?”. As pessoas, que estão pouco habituadas a ser lembradas nos pequenos detalhes – que no fundo revelam as grandes coisas - por quem não lhes é íntimo, desenvolviam por ele um carinho fácil e a crença de que era “muito inteligente”.

O que se passava na sua cabeça não tinha grande mistério. Estava a pensar noutra coisa e depois aparecia a Tânia. A cabeça dele fazia: – “Eu conheço esta pessoa… Quem é esta pessoa? ah! Lembro-me dela, conheci-a na rua Miguel Bombarda, ela estava com o Herculano e estivemos um pedaço a falar de operações porque a mãe dela ia ser operada e estava com medo porque não gostava do cirurgião. Não me lembro do nome dela.”

O passo seguinte, naturalmente, era perguntar pela mãe da rapariga a meio da conversa. A rapariga que vinha distraída pela rua provavelmente estava nesse momento a olhar para ele e fazer um enorme esforço para tentar lembrar-se do nome dele. Era o tipo que conhecera quando estava com o Filipe e estiveram montes de tempo à conversa, “como é que era o nome dele, como é que era? Ai.. não me lembro!... Não me lembro… Não me lembro…”

Conclusão, Tânia ficava com a sensação de que realmente não tinha sido muito fixe, como é que podia não se lembrar de nada daquele moço tão simpático, que ainda por cima lhe perguntava pela mãe – como é que ele se lembrava daquela conversa? Que coisa incrível!" – e o facto de ele ter pedido desculpa que não se lembrava do nome dela, passava completamente ao lado.

Um processo simples. E que ia ainda mais construindo a “biblioteca de factos do quotidiano das pessoas à minha volta, próximas ou não”, bem como “a pilha de conhecimento dos factos mais inúteis do mundo” (que era como César chamava carinhosamente aos infofacts que lá ia coleccionando da mesma forma) e que lhe rendiam a tal fama de inteligente. 

“Acho uma estupidez os meses não serem só o número, nunca me lembro do número que corresponde a cada mês, pá. E que lógica tem chamares a um mês setembro, se depois lhe dás um número que não é o sete?” queixou-se ela, certa vez. César respondia distraído a estas coisas, sem parar de lavar a loiça “originalmente o ano tinha dez meses, mas depois Júlio César quis ter o seu próprio mês e criou Julio - julho, o imperador Augusto que se seguiu quis fazer o mesmo e criou agosto, e é por isso que setembro não é o mês sete, mas nove, outubro não é oito, novembro não é nove… e dezembro não é dez.”

Ou seja, no fundo, César sabia que não era tão inteligente ou atencioso como os outros pensavam, tinha era a sua mente era habitada por um bibliotecário particularmente meticuloso, a que ele se referia carinhosamente por Sr. Sá (por ser a primeira parte da palavra Sábio, a quem faltava a segunda, “bio”, a vida, porque a ninguém adianta ter um "Sr. Sá" se não viver verdadeiramente… Permanece tudo como facto, conhecimento nunca passa a sabedoria!).

No momento em que Joana Amélia tratou o amigo comum por Filipe e não por Herculano, o Sr. Sá puxou o arquivo e mostrou-lhe o dia de aniversário e a conversa que tinham tido no carro sobre a forma como Joana tinha ficado a falar com Herculano. Lembrou-lhe que ele não estava inquisitivo nem ciumento e ela reagiu de forma intempestiva e defensiva, que disse a palavra (sublinhada pelo Sr. Sá) Herculano de uma forma muito pronunciada, ainda a mastigar cada sílaba, como se estivesse a adaptar o aparelho fonador a uma palavra estrangeira. Lembrou-se na altura de pensar que o facto de ela estar um pouco bêbada se calhar também não a ajudava.

Depois, o Sr. Sá, pegou noutro arquivo que tinha já em cima da mesa, como se já o tivesse tentado mostrar várias vezes, da conversa do dia em que César conhecera Tânia e como tinham brincado com o facto de ela tratar Herculano por Filipe – na altura ele tinha feito uma piada com qualquer coisa do género “rápido, disfarça, pode ser que ele não repare que te enganaste no nome”. E de como tinha ficado subentendido que esse tratamento derivava de uma intimidade de cama.

O Sr. Sá depois continuou com os ficheiros que já estavam abertos em cima da mesa grande em mogno e mostrou-lhe a conversa que Joana Amélia tinha puxado cerca de um mês antes da noite de aniversário, sobre um amigo que contara que não-sei-quem do seu passado (os nomes sempre ilegíveis na letra do Sr. Sá) andava a espalhar rumores sobre ela e que ela só queria esclarecer tudo e preparar César se "coisas absurdas sobre a sua pessoa chegassem aos seus ouvidos" ou se alguém fosse falar com ele, porque havia uma história qualquer com um ex esquisita. César não tinha ligado muito à conversa, porque percebera que Joana estava a preocupar-se demasiado com a influencia que outras pessoas poderiam ter sobre a opinião dele e ele era uma pessoa leal, isso não lhe interessava nada. Mas esta incapacidade, este handicap, esta deficiência enfurecedora de não conseguir esquecer detalhes, reavivava-lhe todos pormenores que tornavam cada vez mais implausível que Joana não se estivesse a referir a Herculano naquele rosário desfiado - e que talvez ela não fosse assim tão inocente e aquela fosse apenas uma manobra.

E esta era sempre a parte de juntar as peças de um puzzle de factos do Sr. Sá em que César dizia a si mesmo que, realmente, lá muito esperto não era, porque aquela realidade incontornável e óbvia tinha demorado meses a fazer faísca.

E o Sr. Sá, a verdade é que realmente fazia jus ao seu nome, dava-lhe os factos, mas nunca lhe dizia o que fazer depois. 

César parou-se antes de entrar para o carro. Ainda com os ficheiros do Sr. Sá abertos e sem conseguir acreditar no que o puzzle parecia querer dizer. Como de costume pensou “Se calhar, estou a ver mal. Isto não pode estar certo.”

Arranjou uma desculpa para não ir com ela no carro, que a ele lhe pareceu plausível e despediu-se como de costume. Pôs o corpo em piloto automático: “para casa a pé”, enquanto se sentava à mesa calmamente com o Sr. Sá a ir buscar-lhe todos os ficheiros que ele pedia e mais alguns que ele já tinha de reserva para aquela situação.

Chegou a casa e foi consultar o Sr. Sá da internet: o Facebook. Joana Amélia era amiga de Herculano Filipe – tudo certo, eles conheciam-se de vista havia imenso tempo e tinham-se tornado amigos no seu aniversário. O Sr. Sá pigarreou. César foi ver a semana da conversa manhosa. Um discreto comentário jocoso de Herculano numa fotografia dela, mencionando um vinho - “Papa-figos” - pelo qual Joana andara obcecada naquela altura e que depois lhe passou.

O Sr. Sá olhou por cima dos óculos para César, como quem pergunta se já pode arrumar a meia biblioteca que este lhe desarrumou à procura da prova de inocência de Joana, encontrando a cada passo mais uma prova da implausibilidade da mesma.

Com os olhos molhados, cabisbaixo, César acedeu, agradecendo o trabalho e paciência do funcionário.

E sentou-se na soleira da porta de casa sem saber bem o que fazer nessa situação, em que não tinha encontrado Joana em flagrante e não tinha nada em concreto para sustentar o que sabia, tantos meses depois.

E o entanto, o que sabia era completamente incontornável: Joana mentia e o Sr. Sá iria sempre apanhá-la, mas nunca "com a boca na botija".

E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).

E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.

Sem comentários: