segunda-feira, novembro 08, 2010

São

"São.
São!
Ó São, anda cá!"

Fernando Gomes permaneceu sentado no sofá enquanto esperava que a mulher corresse para  a sala onde ele permanecia sentado em frente à televisão.

"Anda cá ber isto, carago!"

Conceição largou a loiça que lavava no rescaldo do almoço e dirigiu-se apressadamente para a sala secando as mãos no avental estampado com galos de Barcelos.

"O que é que foi home?"

"Senta-te aí! Olha!" - respondeu Gomes, apontando com incredulidade e veemência para o LCD.

São olhou para as imagens do notíciário e de repente, os olhos ficaram rasos de água.

Casara com Gomes depois de ter engravidado do filho, Tininho, e já tinha uma barriga bastante proeminente quando entrou de branco na Igreja do Senhor de Matosinhos. A sua vida não era fácil. Quando era mais nova trabalhara na lota como peixeira, mas a descoberta de um sopro no coração dera uma empurrão à opção por que Gomes tanto desejava e São deixou o trabalho para se dedicar à casa e à família.

Contando apenas com o salário de Gomes, a vida não era fácil. Gomes era trabalhador por conta própria, realizando trabalhos de pichelaria aqui e ali. O negócio não corria mal, mas era muito variável e implicava uma grande capacidade de gestão financeira e emocional por parte do marido a quem por vezes ficavam a dever muito dinheiro.

Gomes gostava da ideia de ter São sempre disponível em casa, à moda antiga. Tinha sempre a casa limpinha, as camisas passadas e a segurança de ter uma mulher que dependia dele para tudo e cujo dinheiro era ele que controlava.

Embora São fizesse rissóis para fora e tivesse uma ou duas senhoras a quem passava roupa, o dinheiro que ela fazia era muito pouco e entregava-lho a ele, para que gerisse a soma maior, de modo a irem guardando algum "para caso de necessidade" e para um dia pagarem aquilo que fosse necessário para "ver o nosso Tininho doutor".

A vida que levava era dura, numa constante gestão de trocos, na contagem diária das possibilidades de poupança, na ginástica de fazer render um orçamento muito magro, mas que ela queria que desse para tudo.

São sabia todos os ofícios da perfeita dona de casa, mas muitos deles aprendera depois de casada e com o seu esforço, porque queria poder valer à família, dar-lhes mais do que o dinheiro fazia render. Sabia os ofícios da costura e da cozinha, bordava, fazia arraiolos, arranjos florais, cultivava no pequeno terreno atrás dos anexos em que viviam legumes e outras plantas comestíveis e convencera Gomes a criarem galinhas.

Por Gomes e Tininho daria a sua vida sem pestanejar. Apesar das noites mal dormidas, das discussões, dos sapos que engolia quando apanhava mechas de cabelo de cor loiro-prostituta-barata na roupa de Gomes, dos tabefes ocasionais que levava em dias de maior frustração do marido e das dores de barriga com medo de o orçamento não chegar. Amava ambos os homens da sua vida mais do que conseguia expressar e seria capaz de qualquer coisa por ambos e especialmente por Tininho, de quem esperava o mundo.

E foi por tudo isto que a escolha do seu filho de entre todos os meninos presentes pelo entrevistador da televisão para dizer o que é que achava do início das aulas e da mensagem da ministra da educação, lhe soube como um prémio desejado e inesperado. Como se depois de todos estes anos, Deus lhe estivesse finalmente a piscar o olho e a mostrar que tudo via. E os olhos de Conceição encheram-se de lágrimas de incontida felicidade e orgulho perante o súbito estrelato do filho.

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