No dia 1 de Novembro, Ana Maria saiu de casa com Rafael, segurando a sua mãozinha pequenina. Tinha um orgulho imenso no seu filho e na forma como, tão pequeno, era já tão atinado e responsável.
Ana Maria foi mãe já tarde na sua vida. Rafael foi um filho muito desejado e muito "batalhado". Ana Maria passou anos na tortura médica das fertilizações, foi a bruxas, perdeu a cabeça com mezinhas e métodos. Mas foi o Bom Jesus de Braga que lhe deu a criança que ela tanto amava e desejava e pela qual tanto sofrera.
Devota fervorosa, todos as noites rezava por um filho. Pedia essa bênção nas missas e rosários. Fez promessas incontáveis e nunca teve uma resposta um sinal de Deus, tendo chegado a considerar-se esquecida pelo Altíssimo.
Um dia, 6 anos depois de ter começado o seu martírio de tratamentos, de contagem de dias, de frustrações de uma ausência total de esperança, Ana Maria foi ao Bom Jesus de Braga sozinha.
Era um dia de semana, de tarde, chovia muito e não estava ninguém na nave central da catedral. Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e disse, entregue, humilde e resignada entre as lágrimas inevitáveis e grossas.
"Seja feita a Tua vontade, Senhor".
Nesse momento, abandonou-se e abandonou toda a esperança de ter um filho. Resignou-se à vontade divina, aceitando-se impotente, insignificante e infértil. E decidiu seguir com a sua vida de outra forma, se era essa a vontade de Deus.
Um mês depois estava grávida.
Rafael de Jesus foi recebido por todos com uma alegria incomensurável. A avó Lucinda desdobrou-se em trabalhos manuais e encomendas para fazer um enxoval minhoto digno do seu neto que mais custara chegar. O avô Luís, ficava com os olhos rasos de água sempre que falava no assunto. Os dois irmãos e a irmã de Ana Maria trataram dela como se fosse uma princesa e o advento de Rafael foi visto por todos como um milagre merecido e desejado que chegava a uma pessoa querida que todos tinham visto sofrer e chorar durante seis longos anos. Teresinha, a prima mais velha de Rafael foi escolhida para madrinha, por ser a mais velha e ajuizada, mas também por ter feito tantas vezes de filha para Ana Maria, quando a percebia mais desanimada e triste.
Depois do nascimento de Rafael, o clã subiu a pé o Bom Jesus em sinal de agradecimento. O bebé foi aí baptizado e todos os anos uma vela com o tamanho da criança era depositada no altar das ofertas do templo.
"Seja feita a Tua vontade" passou a ser uma espécie de lema informal de toda a família, mas especialmente de Ana Maria.
Rafael tinha agora sete anos e era a sua razão de viver. Era uma educadora extremosa, mimando mas impondo disciplina. O amor a Rafael era incondicional, mas o seu comportamento era necessariamente exemplar, porque Ana Maria acreditava que ensinar os valores e "dar educação" era a maior prova de amor que podia dar ao filho. Mesmo que às vezes isso lhe custasse horrores.
E Rafael sabia que entre os "obrigado", "se faz favor", "desculpe" e outras regras básicas, uma das mais importantes era nunca largar a mão da mãe quando fosse na rua.
Na fracção de segundo em que Rafael se soltou da mãe para ser brutalmente atropelado por um carro que não o viu chegar, Ana Maria viu o seu mundo seguir em câmara lenta.
Teve tempo para não compreender porque é que Rafael se soltava da sua mão se ele sabia que essa regra era muito importante, teve tempo para querer agarra-lo e ralhar com ele, teve tempo para ver o carro chegar, para ver o filho seguir em frente incauto e para ver a carinha dele uma última vez antes de acontecer o pior. Sem conseguir mexer um músculo.
Perante os seus olhos aconteceu tudo tão devagar como um aviso. E quando estava consumado, Ana Maria apenas conseguiu dizer no mesmo tom que o fizera 7 anos antes, para espanto e choque dos que o testemunharam,
"Seja feita a Tua vontade, Senhor."
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