quinta-feira, setembro 16, 2010

Célia

Levantou-se da cama devagar, como se ainda estivesse a sonhar e pensou no que tinha para fazer durante o dia. E pensou que gostaria de não existir. Que estava morta por dentro. Podre, aos 26 anos.

Deixou a cama desfeita e passou pela roupa amontoada na cadeira. viu o lixo aglutinado, suplicando que o levasse ao balde e fez de conta que não percebeu.

Entrou na banheira e tomou um banho prolongado, como se lavasse a alma. Saiu do banho e achou-se feia, inamável. E quase que quis chorar por um momento.

Mas não tinha tempo.

Pintou-se e vestiu-se, por esta ordem. preparou-se para sair de casa.

Tirou uma maçã do frigorífico. Pensou que tinha de limpar a casa com urgência.

Não encontrava as chaves para poder sair de casa e ir trabalhar. Encontrou-as no meio da tralha que tinha trazido do supermercado e não tinha arrumado.

Sentia-se mecânica, uma sonâmbula acordada. Anestesiada para a vida. Queria ter mais emoção, fazer mais coisas. Mas já levava aquela vida há tanto tempo que já nem sabia como. como se de estar tanto tempo a olhar para o sol não conseguisse identificar as sombras onde se refugiar.

Por vezes dava-se conta de uma oportunidade de sair da sua rotina, de um amor, ou de simplesmente fazer algo diferente. Nessas situações ou tinha medo e não aproveitava ou então não se dava conta senão depois de ser já tarde demais do que lhe tinha passado ao lado.

Conduzindo sozinha pensava amiúde "e se eu deixasse o carro ir, não fizesse a curva?". Depois pensava nos pais e tinha pena deles. que não mereciam que ela fizesse uma coisa dessas.

Tinha horror àquilo em que achava que se estava a tornar e acreditava que nunca poderia ser feliz. aos 26 anos.


2 comentários:

R. disse...

Aos 26 anos, ou aos 86, é sempre uma boa altura para (re)começar a cultivar o cuidado e amor-próprios, ingredientes fundamentais para conquistar a atenção de terceiros.

La fille disse...

gostei muito do fim deste filme - blindness, é tão poético. qdo todos começam a ver, ela fica cega...