Lembrava-se de uma terra na Polónia que não tinha placas nem sinalizações quase nenhumas, de tão perdido que se sentia.
Os habitantes daquela zona tinham eliminado todas as sinalizações para que os estrangeiros nazis não encontrassem as coisas com facilidade e assim vissem um pouco mais dificultada a sua missão de invadir.
Os estrangeiros ainda hoje, mesmo com GPS, chegavam àquela zona do interior do país e sentiam-se desorientados sem uma confirmação in loco de que aquela era mesmo a rua que procuravam, a casa que queriam encontrar.
Naquela altura uniram-se para eliminar tudo: nomes de povoações, setas indicativas, números de portas, nomes de estabelecimentos, etc. Quem era dali sabia onde ficava tudo ou podia perguntar; quem não era, também não interessava que soubesse.
Depois da invasão - que aconteceu na mesma - e da evasão de tanta gente, os que permaneceram ficaram com tantas outras coisas a braços que apenas pontualmente se lembaravam de repor as sinalizações.
E aquela zona da Polónia parecia uma espécie de nenhures, um local suspenso no tempo e sem localização certa onde as pessoas de fora se sentiam permanentemente perdidas.
E João Paulo sentia-se assim.
Toda a vida se identificara como "o irmão da Teresinha". Teresinha, a irmã mais velha, era a menina bonita e inteligente que toda a gente conhecia e admirava.
João Paulo não tinha outra hipótese senão ser "o irmão da Teresinha". Às vezes nem tinha nome, as pessoas referiam-se a ele direta e indiretamente como "o irmão da Teresinha". E ele passou toda a vida a afirmar a sua identidade, a pedir à irmã para parar de o apresentar como "o meu irmão", para o apresentar pelo seu nome, que era um individuo com valor próprio e identidade, não era um apêndice da Teresinha.
A sombra da excecionalidade de Teresinha era tão grande que João Paulo acabou por pedir para ir para outra escola, noutra terra e fez questão de não ir sequer para a mesma Universidade, num acesso adolescente de ciúme incontido.
Com o passar do tempo, deixou de se zangar e começou a achar uma certa graça, como tantos anos depois de nem ele nem Teresinha viverem em Vila Verde, as pessoas continuavam a referir-se a ele - que na cidade em que vivia era uma personalidade importante, sempre tratado com tanta reverência - como "o irmão da Teresinha".
E sorria quando ouvia na mercearia perto de casa dos pais a D. Alda dizer para a filha para trazer a encomenda de pão, que estava lá "o irmão da Teresinha". Mas fazia questão de corrigir a senhora, reprimindo levemente: "sou o João Paulo, D. Alda".
Quando tinha pouco mais de 40 anos, Teresinha morreu.
A dor absurda agarrava o peito de João Paulo como se fosse uma hera galopante, dilacerando-o e dificultando a sua respiração, atraindo insetos, morcegos e fantasmas que queriam assombrar-lhe a alma. João Paulo passeava por Vila Verde à espera da hora do funeral e de repente a sua cidade natal parecia-lhe a cidade polaca onde havia estado havia quase vinte anos.
Sentia-se perdido, como se estivesse suspenso no tempo e no espaço. Fizesse o que fizesse, João Paulo continuava a ser "o irmão
da Teresinha" e esta marca que o irritara tão profundamente, passou com
os anos a fazer parte da sua identidade de forma tão implicita como o
faria anos mais tarde ser referido como o "pai da Beatriz".
E agora, se Teresinha deixara de existir, ele era quem?
Durante o penoso velório, João Paulo, sentado no banco da frente da igreja com a restante família como manda a tradição, não conseguia abandonar este pensamento. Ouvia murmúrios das muitas pessoas que os vinham cumprimentar e aguardar pelo momento do cortejo fúnebre "Carolina, como é que se chama o irmão da Teresinha?" "Acho que é João. Ou Jorge? Olha, sei que começa com J. Ou seria José? Ó Firmino, como é que se chama o irmão da Teresinha?"
E nesse momento, percebeu o que toda a vida lhe tinha escapado.
Ele não era uma pessoa qualquer. Ele não era um habitante da sombra, uma personagem secundária. A sombra de Teresinha nunca havia sido o lugar escuro que ele projetava que fosse, era um lugar quente e cheio de luz, porque as pessoas gostavam imediatamente dele quando sabiam que ele era "o irmão da Teresinha" e invariavelmente esta associação favorecia-o. Mesmo se não o conhecessem, e mesmo se primeiro não tivessem ido com a cara dele, ser "o irmão da Teresinha" toda a vida tinha sido um passaporte maravilhoso que lhe dava acesso à boa vontade e até ao empenho de todos os que tinham essa referência.
Ele era um privilegiado, porque ele não era um qualquer; e todas as outras pessoas poderiam ser muito amigas da irmã e gostar muito dela, ter passado muito tempo com ela.
Mas ele é que era "o irmão da Teresinha".
E nunca mais fez questão que o tratassem pelo nome na terra, incitando as pessoas que se acanhavam de mencionar a falecida, que o chamassem como sempre haviam feito: "o irmão da Teresinha".
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
sábado, dezembro 15, 2012
sexta-feira, dezembro 14, 2012
Nunca = Para sempre - 1
Rui acabou com Maria de uma forma que não se faz e partiu o seu coração em mais bocados do que átomos.
No princípio, as saudades assaltavam-na a toda a hora, em cada sístole cardíaca. Desregulavam o bater do seu coração partido, que insistia em doer, apesar dos argumentos lógicos e muito acertados que o seu cérebro lhe dava para não ter pena: ele não a merecia, não a tratava como devia, era um irresponsável, deitava-a a baixo, fazia sentir-se uma insignificante, não a elogiava, dizia que ela cantava mal e atirava-se a outras mulheres à sua frente.
Todas as razões e mais algumas para agradecer aos céus a benção de a relação não ter durado muito e ter definitivamente acabado. e no entanto as saudades colavam-se à sua pele, a meio do trânsito, do chuveiro, do sono, dos sonhos. do trabalho. dos almoços de família. dos fins de tarde. dos princípios de madrugada sem dormir.
Com o passar do tempo, aos poucos, as saudades foram desistindo de Maria, tornando a sua respiração mais fácil. Foram-na deixando nas horas todas, acordada e a dormir. Foram-se esquecendo de a lembrar dos pequenos gestos de Rui que ela tanto gostava, da maneira como ele procurava os seus pés durante a noite, como a abraçava, da maneira como lhe dava a mão, como conversavam cumplicemente até de manhã, sem verem as horas passar, da forma como eram iguais nos detalhes mais insignificantes e na sua estranha forma de funcionar. como se complementavam e se melhoravam mutuamente.
Depois, as saudades começaram a dar-lhe umas folgas mais regulares, provavelmente por terem também elas outros compromissos, que entretanto assumiam. Ela foi reconstruindo os pedaços do seu coração e começando também a ver como era um falso dourado o das recordações, e com o quebrar do feitiço da paixão, começou a ver os podres da relação e as diferentes nuances da forma pouco digna como ele a tratara.
Desapaixonou-se por completo passado uns meses, mas nunca o esqueceu, porque há coisas boas e más de que é importante lembrarmo-nos.
E se Maria não guardou rancor a Rui, optou por não fazer também tábua rasa de tudo o que tinha acontecido entre ambos.
Um dia, reencontraram-se. Rui, que havia decidido sozinho e de forma bastante cobarde que a relação devia terminar, disse-lhe senhor de si e plenamente convencido de que lhe estava a dar uma boa notícia, que um dia, se a vida mudasse e se voltasse a proporcionar, as portas estavam abertas para reatar a relação com ela. Que a relação tinha sido excelente, que não tinha nada a apontar.
Maria olhou-o nos olhos e pôde dizer com honesta sinceridade que isso nunca iria acontecer.
quinta-feira, novembro 22, 2012
Lia
Madeira.
O guia disse "Madeira" e esbugalhou os olhos em pânico.
O tempo primeiro parou e depois abrandou.
Estavam sentados no alpendre a almoçar, uma refeição deliciosa, a ver os alimentos que lhes pareciam estranhos que eram dali e outros que sendo os mesmos que havia em Portugal, tinham um aspecto diferente.
O homem do casal que estava com eles, tinha pedido coentros e estavam a admirar como a folha do coentro é tão maior em S. Tomé. e a rir e a comer e a beber.
Estavam ali, naquele momento bom e banal, quando de repente ouviram um barulho estranho. Primeiro um estrondo e depois, como se fosse um trovão lento, ouviram qualquer som a rasgar o céu.
Lia perguntou ao guia que empalidecera com o primeiro estrondo "o que é isto?"
O guia disse "Madeira" e desatou a correr do sítio onde estavam.
Primeiro o tempo parou nos olhos do guia a esbugalharem com o primeiro estrondo. Depois abrandou muito.
Como se a medida do tempo fosse o bater do seu coração. e muitas batidas equivalessem a muito tempo, porque o cérebro nem sempre acompanha o resto e permanece no tempo mais devagar, embora o resto do corpo se mexa depressa.
Lia viu o guia falar e fugir e pensou: se ele está a fugir e ele é o guia, ele deve saber o que está a fazer.
Naquela fração de segundo, Lia não percebeu se gritou, se falou, se se magoou a sair da cadeira; o pensamento de Lia estava concentrado no momento e no guia e na incompreensão do que estava a acontecer, mas de certeza que era grave para a pessoa que era de lá reagir daquela maneira.
Sem perceber qual era e de onde vinha o perigo, mas ao ver que, tal como o guia, todas as outras pessoas corriam sem saberem muito bem para onde e se abrigavam, Lia percebeu que a sua vida estava em perigo.
E teve muito, muito medo. Pensou que era o fim. Pensou em tudo o que estava a deixar para trás. pensou que estava sozinha naquele seu derradeiro momento, numa terra desconhecida. Pensou nas coisas que amava, na sua casa, nos seus pais, na vida que levava e que agora percebia como era frágil. Tão, tão frágil.
Como era ténue a linha entre a vida e a morte.
Perguntou-se que raio de ideia fora aquela de ir viajar fora da época de férias, que mania de escolher países terceiro-mundistas, porquê, mas porque é que ela se tinha metido naquilo. e agora ia morrer. fim.
Olhou para cima e viu o ramo gigante de uma árvore que apodrecera a cair em câmara lenta em cima do alpendre onde estavam. A árvore devia estar a cair muito depressa, mas Lia ainda teve tempo de olhar à volta e pensar que não tinha como sair dali, que tinha sido um mau sítio para onde se socorrer porque não havia nenhuma porta. Conseguiu espreitar pela janela e medir a distância para o chão, para o caso de ter de saltar. A queda ia ser grande.
Olhou à volta e viu o casal que estava com eles a fugir - muito acertadamente - em direção à porta e desejou ter tido ela também aquela ideia, mas o seu instinto de sobrevivência não lhe permitiu esperar para ver de onde vinha e qual era o perigo.
Cobriu a cabeça e contraiu-se toda à medida que se preparava para o impacto da árvore que atingia o sítio onde estavam. Tinha os olhos fechados, mas sentiu tudo quanto estava à sua volta movimentar-se e sair do sítio. panelas e tachos e pratos e talheres e coisas que não percebia o que era a estremecerem e a voarem e a mudarem de sítio com força.
O estrondo da queda e o ruído dos ramos e das coisas.
E depois um momento único de silêncio absoluto.
Abriu os olhos e tirou as mãos da cabeça e o tempo voltou ao seu ritmo normal.
e o barulho retornou, pessoas a confirmarem se estava tudo bem com elas e com os seus entes queridos. Ela estava bem. Olhou em frente e viu o homem que estava com eles debaixo da árvore. Quase ao mesmo tempo, um grito da mulher a dizer "é o meu marido, é o meu marido", num grito primal de dor, apelando não aos indivíduos mas à espécie humana que ali se encontrava. Uma dor que os unia, porque poderiam ter sido todos e qualquer um deles debaixo daquela árvore. Porque era um deles que estava ali, talvez vivo, talvez morto. Parte deles.
Correram em seu auxílio e de repente, o tempo acelerou muito. e tudo o que se passou a seguir, passou muito depressa. centro de saúde, hospital, dor, embaixada, transladação. dor. raiva. negação. incredulidade. luto. dor. perda.
Como se os três dias que se seguiram pudessem ser mais pequenos que os poucos segundos em que a árvore caiu, ameaçou a sua vida e depois a mudou para todo o sempre.
O guia disse "Madeira" e esbugalhou os olhos em pânico.
O tempo primeiro parou e depois abrandou.
Estavam sentados no alpendre a almoçar, uma refeição deliciosa, a ver os alimentos que lhes pareciam estranhos que eram dali e outros que sendo os mesmos que havia em Portugal, tinham um aspecto diferente.
O homem do casal que estava com eles, tinha pedido coentros e estavam a admirar como a folha do coentro é tão maior em S. Tomé. e a rir e a comer e a beber.
Estavam ali, naquele momento bom e banal, quando de repente ouviram um barulho estranho. Primeiro um estrondo e depois, como se fosse um trovão lento, ouviram qualquer som a rasgar o céu.
Lia perguntou ao guia que empalidecera com o primeiro estrondo "o que é isto?"
O guia disse "Madeira" e desatou a correr do sítio onde estavam.
Primeiro o tempo parou nos olhos do guia a esbugalharem com o primeiro estrondo. Depois abrandou muito.
Como se a medida do tempo fosse o bater do seu coração. e muitas batidas equivalessem a muito tempo, porque o cérebro nem sempre acompanha o resto e permanece no tempo mais devagar, embora o resto do corpo se mexa depressa.
Lia viu o guia falar e fugir e pensou: se ele está a fugir e ele é o guia, ele deve saber o que está a fazer.
Naquela fração de segundo, Lia não percebeu se gritou, se falou, se se magoou a sair da cadeira; o pensamento de Lia estava concentrado no momento e no guia e na incompreensão do que estava a acontecer, mas de certeza que era grave para a pessoa que era de lá reagir daquela maneira.
Sem perceber qual era e de onde vinha o perigo, mas ao ver que, tal como o guia, todas as outras pessoas corriam sem saberem muito bem para onde e se abrigavam, Lia percebeu que a sua vida estava em perigo.
E teve muito, muito medo. Pensou que era o fim. Pensou em tudo o que estava a deixar para trás. pensou que estava sozinha naquele seu derradeiro momento, numa terra desconhecida. Pensou nas coisas que amava, na sua casa, nos seus pais, na vida que levava e que agora percebia como era frágil. Tão, tão frágil.
Como era ténue a linha entre a vida e a morte.
Perguntou-se que raio de ideia fora aquela de ir viajar fora da época de férias, que mania de escolher países terceiro-mundistas, porquê, mas porque é que ela se tinha metido naquilo. e agora ia morrer. fim.
Olhou para cima e viu o ramo gigante de uma árvore que apodrecera a cair em câmara lenta em cima do alpendre onde estavam. A árvore devia estar a cair muito depressa, mas Lia ainda teve tempo de olhar à volta e pensar que não tinha como sair dali, que tinha sido um mau sítio para onde se socorrer porque não havia nenhuma porta. Conseguiu espreitar pela janela e medir a distância para o chão, para o caso de ter de saltar. A queda ia ser grande.
Olhou à volta e viu o casal que estava com eles a fugir - muito acertadamente - em direção à porta e desejou ter tido ela também aquela ideia, mas o seu instinto de sobrevivência não lhe permitiu esperar para ver de onde vinha e qual era o perigo.
Cobriu a cabeça e contraiu-se toda à medida que se preparava para o impacto da árvore que atingia o sítio onde estavam. Tinha os olhos fechados, mas sentiu tudo quanto estava à sua volta movimentar-se e sair do sítio. panelas e tachos e pratos e talheres e coisas que não percebia o que era a estremecerem e a voarem e a mudarem de sítio com força.
O estrondo da queda e o ruído dos ramos e das coisas.
E depois um momento único de silêncio absoluto.
Abriu os olhos e tirou as mãos da cabeça e o tempo voltou ao seu ritmo normal.
e o barulho retornou, pessoas a confirmarem se estava tudo bem com elas e com os seus entes queridos. Ela estava bem. Olhou em frente e viu o homem que estava com eles debaixo da árvore. Quase ao mesmo tempo, um grito da mulher a dizer "é o meu marido, é o meu marido", num grito primal de dor, apelando não aos indivíduos mas à espécie humana que ali se encontrava. Uma dor que os unia, porque poderiam ter sido todos e qualquer um deles debaixo daquela árvore. Porque era um deles que estava ali, talvez vivo, talvez morto. Parte deles.
Correram em seu auxílio e de repente, o tempo acelerou muito. e tudo o que se passou a seguir, passou muito depressa. centro de saúde, hospital, dor, embaixada, transladação. dor. raiva. negação. incredulidade. luto. dor. perda.
Como se os três dias que se seguiram pudessem ser mais pequenos que os poucos segundos em que a árvore caiu, ameaçou a sua vida e depois a mudou para todo o sempre.
quarta-feira, novembro 07, 2012
84 milhões de estrelas
A noite estava escura e riscavam os céus várias estrelas cadentes que choviam alegremente. Valentim gostava de ver as chuvas de estrelas sentado no alpendre de casa da avó, na aldeia onde acabava a estrada.
Olhava para as estrelas sem apontar para elas, porque não queria que lhe nascessem cravos nas mãos e os antigos diziam que os cravos nasciam nas mãos a quem apontava para as estrelas.
Gostava de imaginar o que estaria a acontecer àquelas estrelas que choviam. Estariam a viajar? Como se fossem bandos de aves, será que também havia estrelas migratórias? Na escola, Valentim tinha ouvido dizer que no hemisfério sul da terra se vêem constelações diferentes. Será que era porque as estrelas gostavam de trocar de lugar e também elas de viajar para sítios diferentes?
Será que as estrelas também gostavam de ver o mundo de diferentes ângulos? Passar uns tempos a ver a grande muralha da China e observar as vidas das pessoas que habitavam e passavam por aquelas paragens e depois mudar de perspetiva e observar a África subsariana?
Como será que as estrelas concediam desejos às pessoas e porque é que as pessoas pedinchavam sobretudo às estrelas cadentes, era uma coisa que fazia alguma confusão a Valentim.
Sentava-se no alpendre naquelas noites de verão, num banco largo de madeira que tirava da cozinha e depois encostava à parede para se poder encostar enquanto chupava o caule de uma flor amarela de um dos muitos vasos que a avó não tinha paciência para limpar de ervas daninhas.
Valentim era um rapaz algo solitário e de imaginação notoriamente ativa. Gostava mais que nada das estrelas e pedia sempre livros de astronomia e coisas relacionadas com o tema, nas festividades. Estrelas fosforescentes para o teto do quarto, um modelo do sistema solar que estava em destaque na sua secretária, um pequeno telescópio.
Os pais haviam-lhe prometido que se ele se portasse bem e tirasse boas notas o levavam ao planetário do Porto, a ver as estrelas explicadas.
Mas para Valentim, os mistérios das estrelas não se cingiam à sua localização. Porque Valentim, pequeno como era, sabia que ninguém consegue ao certo saber do paradeiro de todas as oitenta e quatro milhões de estrelas que já se conhecem e que constituem menos de 1% de todas as estrelas da nossa galáxia. E menos ainda dos outros 99% de estrelas.
As estrelas são tantas e tão grandes que ninguém, nem a pessoa ais inteligente do mundo, conseguem imaginar quantas são. E muito menos o que é que andam por aí a fazer.
Valentim deixava-se estar no alpendre, a sentir a brisa quente, a sentir o cheiro da terra seca e sedenta, no meio do canto dos grilos que cantavam em coro para as estrelas que dançavam ao som dessa música para todos.
E imaginava sempre destinos diferentes para as estrelas que amava. Imaginava que viajavam, que dançavam, que fugiam de algum demónio, que se tinham portado mal, que se desiquilibravam e caíam, que se atiravam para um lago invisível, que brincavam às escondidas e às caçadinhas.
As estrelas sempre lhe haviam parecido tudo menos aleatórias nos seus desígnios. E ia imaginando todos os motivos para os seus movimentos, criando explicações que divertiam e fascinavam os adultos com a sua originalidade e inocência.
Olhava para as estrelas sem apontar para elas, porque não queria que lhe nascessem cravos nas mãos e os antigos diziam que os cravos nasciam nas mãos a quem apontava para as estrelas.
Gostava de imaginar o que estaria a acontecer àquelas estrelas que choviam. Estariam a viajar? Como se fossem bandos de aves, será que também havia estrelas migratórias? Na escola, Valentim tinha ouvido dizer que no hemisfério sul da terra se vêem constelações diferentes. Será que era porque as estrelas gostavam de trocar de lugar e também elas de viajar para sítios diferentes?
Será que as estrelas também gostavam de ver o mundo de diferentes ângulos? Passar uns tempos a ver a grande muralha da China e observar as vidas das pessoas que habitavam e passavam por aquelas paragens e depois mudar de perspetiva e observar a África subsariana?
Como será que as estrelas concediam desejos às pessoas e porque é que as pessoas pedinchavam sobretudo às estrelas cadentes, era uma coisa que fazia alguma confusão a Valentim.
Sentava-se no alpendre naquelas noites de verão, num banco largo de madeira que tirava da cozinha e depois encostava à parede para se poder encostar enquanto chupava o caule de uma flor amarela de um dos muitos vasos que a avó não tinha paciência para limpar de ervas daninhas.
Valentim era um rapaz algo solitário e de imaginação notoriamente ativa. Gostava mais que nada das estrelas e pedia sempre livros de astronomia e coisas relacionadas com o tema, nas festividades. Estrelas fosforescentes para o teto do quarto, um modelo do sistema solar que estava em destaque na sua secretária, um pequeno telescópio.
Os pais haviam-lhe prometido que se ele se portasse bem e tirasse boas notas o levavam ao planetário do Porto, a ver as estrelas explicadas.
Mas para Valentim, os mistérios das estrelas não se cingiam à sua localização. Porque Valentim, pequeno como era, sabia que ninguém consegue ao certo saber do paradeiro de todas as oitenta e quatro milhões de estrelas que já se conhecem e que constituem menos de 1% de todas as estrelas da nossa galáxia. E menos ainda dos outros 99% de estrelas.
As estrelas são tantas e tão grandes que ninguém, nem a pessoa ais inteligente do mundo, conseguem imaginar quantas são. E muito menos o que é que andam por aí a fazer.
Valentim deixava-se estar no alpendre, a sentir a brisa quente, a sentir o cheiro da terra seca e sedenta, no meio do canto dos grilos que cantavam em coro para as estrelas que dançavam ao som dessa música para todos.
E imaginava sempre destinos diferentes para as estrelas que amava. Imaginava que viajavam, que dançavam, que fugiam de algum demónio, que se tinham portado mal, que se desiquilibravam e caíam, que se atiravam para um lago invisível, que brincavam às escondidas e às caçadinhas.
As estrelas sempre lhe haviam parecido tudo menos aleatórias nos seus desígnios. E ia imaginando todos os motivos para os seus movimentos, criando explicações que divertiam e fascinavam os adultos com a sua originalidade e inocência.
quinta-feira, novembro 01, 2012
Patrícia
Patrícia ficou um ano à espera para entrar em Medicina.
Toda a vida tinha sido a melhor aluna da turma e sempre lhe disseram que com tão boas notas, bem que podia ser médica.
E a ideia foi ganhando asas com a possibilidade cada vez maior, quanto maiores eram as notas que tirava nas disciplinas do secundário. Vinte valores, vinte valores, dezanove valores, vinte valores, vinte valores, dezanove valores, dezoito valores ("esta vou ter de a subir!"), vinte valores.
No ano em que concluiu o secundário, todos os olhos estavam postos em Patrícia, a aluna perfeita. de certeza que ia entrar em Medicina, com aquelas notas. ui. de certeza.
Mas a pressão de todos os anos dedicados a um objectivo que se concentravam num só momento no tempo e no espaço, num par de exames miseráveis que seriam sempre incapazes de medir o quanto ela sabia, o quanto havia estudado, o quanto queria ser médica, o quanto era importante tudo aquilo para ela, mais as expectativas da família, dos pais, do namorado, dos amigos, dos professores, dos colegas, dos vizinhos, do mundo inteiro, bloquearam-na.
Não foi capaz. De repente, no exame nacional de Biologia, não sabia nada. Olhava para a página e não era capaz de escolher nenhuma opção, de dizer nada sobre as coisas que tinha explicado aos colegas que escreviam de forma afincada, desalmada, nas folhas de papel ao seu lado direito, ao seu lado esquerdo, à sua frente, atrás de si, na sala ao lado, na sala do outro lado, noutras escolas, no país inteiro. Aos milhares. E ela ali parada, com o tempo a contar sem parar, cada segundo que passava a ser menos um ponto na probabilidade de se sair bem, cada vez com menos hipóteses de entrar.
Querer desistir e não poder, que vergonha, como vai ser a vida se chumbar? "Não posso chumbar, não posso perder tudo."
Escrever atabalhoadamente coisas que tem quase a certeza que não estão certas, olhar para as perguntas sem perceber nada e escrever à mesma, porque pode surgir um milagre. Lembrar-se que é ateia. Deus não existe e os milagres também não. Mas se calhar ela pode estar errada relativamente a Deus como está quase certa que a opção que está a tomar no exame está errada. Continuar. acabar o tempo. Não concluir a prova.
O coração a bater muito, arrancarem-lhe praticamente a prova das mãos.
Sair da sala a chorar e chorar muito. Muito. Muito. Por todos os anos de dedicação em que não fez o que lhe apetecia, por todas as noitadas com amigos que perdeu, pelas horas de sono que não dormiu, pelas séries na TV que não viu, pelos momentos em que não esteve lá para os amigos, pelas festas de família a que não foi, pela música que não seguiu, pelas férias que não fez.
Para chegar ao momento mais crucial da sua vida e falhar redondamente, para não cumprir o seu destino, ficar à porta e não entrar.
Teve má nota, um mero 12 valores nesse exame. Não entrou em Medicina.
Esse verão foi terrível. Chorou todos os dias. Os pais, desesperados, mas sem meios para a pôr a estudar noutro país pediam-lhe que não chorasse, que a amavam muito, que ela era uma menina muito inteligente, que podia fazer outras coisas na vida.
Patrícia demorou 3 meses a recuperar. Mas quando o fez disse que não ia gastar o dinheiro dos pais em propinas de um curso que não queria.
E passou o ano em casa a estudar para entrar no curso em valia a pena investir a sua vida.
Entrou no ano seguinte, para gáudio geral.
E foi muito boa aluna todo o curso.
E acabou o curso com muito boa média e uma inclinação para a cirurgia geral.
E quando acabou o seu curso, percebeu que teria de enfrentar novamente o seu monstro. Mais uma vez, a vida a punha à prova com um exame, um momento confinado no espaço e no tempo em que toda a sua dedicação era mensurada de forma injusta.
O exame de acesso à especialidade parecia um reviver exato do pesadelo porque passara no secundário. Todos os olhos postos nela. Toda a gente a torcer por ela e a esperar boas notas. O seu sacrifício pessoal a pesar nada na balança do "senhor Harrison" - o nome que em geral os estudantes dão à Biblia gigante de conhecimentos que têm de devorar e decorar tanto quanto possível para acederem às especialidades na área da Medicina em Portugal.
A não valer nada o seu talento individual para a cirurgia, a sua tenacidade, a sua capacidade de estabelecer relações terapeuticas excelentes com os pacientes, de trabalhar em equipa. Tudo concentrado no que sabia de um livro gigante.
A preparação para o exame tinha tanto de exigente cognitivamente, como emocionalmente. Chorou muitas vezes nos ombros de outros que como ela choravam porque tinham enfrentado o mesmo pesadelo e sobrevivido, apenas para o enfrentar de novo.
Desta vez tinha companheiros de luta, amigos que como ela iam para a biblioteca estudar todo o dia para combater este demónio pessoal de arriscar tudo e não chegar, de apostar a vida toda e não conseguir. De sentir de repente que tinham perdido tudo, que se tinham lançado de um avião plenamente equipados e o paraquedas não tinha aberto.
Mas juntos sabiam que haviam de vencer o monstro. Haviam de conseguir romper aquele karma.
E seria a meras 3 semanas da data do exame final, que Patrícia daria aos colegas a lição das suas vidas.
A meio de uma vulgaríssima sessão de estudo, em plena biblioteca, rodeada dos companheiros e amigos com que passava os dias à volta do Harrison, romperia um aneurisma no cérebro de Patrícia. E a estudante ficaria hospitalizada, em risco de vida, num coma induzido e rodeada de todos que a amavam e os que lutavam diariamente com ela contra o que achavam que era o bicho papão das suas vidas. e que agora temiam pela vida dela contra um bicho papão diferente.
Toda a vida tinha sido a melhor aluna da turma e sempre lhe disseram que com tão boas notas, bem que podia ser médica.
E a ideia foi ganhando asas com a possibilidade cada vez maior, quanto maiores eram as notas que tirava nas disciplinas do secundário. Vinte valores, vinte valores, dezanove valores, vinte valores, vinte valores, dezanove valores, dezoito valores ("esta vou ter de a subir!"), vinte valores.
No ano em que concluiu o secundário, todos os olhos estavam postos em Patrícia, a aluna perfeita. de certeza que ia entrar em Medicina, com aquelas notas. ui. de certeza.
Mas a pressão de todos os anos dedicados a um objectivo que se concentravam num só momento no tempo e no espaço, num par de exames miseráveis que seriam sempre incapazes de medir o quanto ela sabia, o quanto havia estudado, o quanto queria ser médica, o quanto era importante tudo aquilo para ela, mais as expectativas da família, dos pais, do namorado, dos amigos, dos professores, dos colegas, dos vizinhos, do mundo inteiro, bloquearam-na.
Não foi capaz. De repente, no exame nacional de Biologia, não sabia nada. Olhava para a página e não era capaz de escolher nenhuma opção, de dizer nada sobre as coisas que tinha explicado aos colegas que escreviam de forma afincada, desalmada, nas folhas de papel ao seu lado direito, ao seu lado esquerdo, à sua frente, atrás de si, na sala ao lado, na sala do outro lado, noutras escolas, no país inteiro. Aos milhares. E ela ali parada, com o tempo a contar sem parar, cada segundo que passava a ser menos um ponto na probabilidade de se sair bem, cada vez com menos hipóteses de entrar.
Querer desistir e não poder, que vergonha, como vai ser a vida se chumbar? "Não posso chumbar, não posso perder tudo."
Escrever atabalhoadamente coisas que tem quase a certeza que não estão certas, olhar para as perguntas sem perceber nada e escrever à mesma, porque pode surgir um milagre. Lembrar-se que é ateia. Deus não existe e os milagres também não. Mas se calhar ela pode estar errada relativamente a Deus como está quase certa que a opção que está a tomar no exame está errada. Continuar. acabar o tempo. Não concluir a prova.
O coração a bater muito, arrancarem-lhe praticamente a prova das mãos.
Sair da sala a chorar e chorar muito. Muito. Muito. Por todos os anos de dedicação em que não fez o que lhe apetecia, por todas as noitadas com amigos que perdeu, pelas horas de sono que não dormiu, pelas séries na TV que não viu, pelos momentos em que não esteve lá para os amigos, pelas festas de família a que não foi, pela música que não seguiu, pelas férias que não fez.
Para chegar ao momento mais crucial da sua vida e falhar redondamente, para não cumprir o seu destino, ficar à porta e não entrar.
Teve má nota, um mero 12 valores nesse exame. Não entrou em Medicina.
Esse verão foi terrível. Chorou todos os dias. Os pais, desesperados, mas sem meios para a pôr a estudar noutro país pediam-lhe que não chorasse, que a amavam muito, que ela era uma menina muito inteligente, que podia fazer outras coisas na vida.
Patrícia demorou 3 meses a recuperar. Mas quando o fez disse que não ia gastar o dinheiro dos pais em propinas de um curso que não queria.
E passou o ano em casa a estudar para entrar no curso em valia a pena investir a sua vida.
Entrou no ano seguinte, para gáudio geral.
E foi muito boa aluna todo o curso.
E acabou o curso com muito boa média e uma inclinação para a cirurgia geral.
E quando acabou o seu curso, percebeu que teria de enfrentar novamente o seu monstro. Mais uma vez, a vida a punha à prova com um exame, um momento confinado no espaço e no tempo em que toda a sua dedicação era mensurada de forma injusta.
O exame de acesso à especialidade parecia um reviver exato do pesadelo porque passara no secundário. Todos os olhos postos nela. Toda a gente a torcer por ela e a esperar boas notas. O seu sacrifício pessoal a pesar nada na balança do "senhor Harrison" - o nome que em geral os estudantes dão à Biblia gigante de conhecimentos que têm de devorar e decorar tanto quanto possível para acederem às especialidades na área da Medicina em Portugal.
A não valer nada o seu talento individual para a cirurgia, a sua tenacidade, a sua capacidade de estabelecer relações terapeuticas excelentes com os pacientes, de trabalhar em equipa. Tudo concentrado no que sabia de um livro gigante.
A preparação para o exame tinha tanto de exigente cognitivamente, como emocionalmente. Chorou muitas vezes nos ombros de outros que como ela choravam porque tinham enfrentado o mesmo pesadelo e sobrevivido, apenas para o enfrentar de novo.
Desta vez tinha companheiros de luta, amigos que como ela iam para a biblioteca estudar todo o dia para combater este demónio pessoal de arriscar tudo e não chegar, de apostar a vida toda e não conseguir. De sentir de repente que tinham perdido tudo, que se tinham lançado de um avião plenamente equipados e o paraquedas não tinha aberto.
Mas juntos sabiam que haviam de vencer o monstro. Haviam de conseguir romper aquele karma.
E seria a meras 3 semanas da data do exame final, que Patrícia daria aos colegas a lição das suas vidas.
A meio de uma vulgaríssima sessão de estudo, em plena biblioteca, rodeada dos companheiros e amigos com que passava os dias à volta do Harrison, romperia um aneurisma no cérebro de Patrícia. E a estudante ficaria hospitalizada, em risco de vida, num coma induzido e rodeada de todos que a amavam e os que lutavam diariamente com ela contra o que achavam que era o bicho papão das suas vidas. e que agora temiam pela vida dela contra um bicho papão diferente.
sábado, outubro 20, 2012
Alexandra
Tem esperança e não apenas entusiasmo, Alexandra.
Lembra-te que te queremos bem.
Lembra-te sempre de quem és.
Lembra-e que nunca estarás sozinha, que - mesmo com um oceano no meio - estaremos sempre aqui para ti.
Lembra-te de deixar as expectativas em casa, guardadas num armário qualquer; e fecha-as à chave, porque elas são como as formigas - esgueiram-se por qualquer frincha; como os cães: cheiram-te à distância e vão a correr ter contigo; e como os elefantes: fazem tudo o resto parecer pequeno, insignificante e insuficiente.
Lembra-te de telefonares todos os dias aos teus pais, que sabes como eles são saudosos. Ou não ligues mas manda um email. e não te esqueças de os mimares sempre.
Lembra-te do agasalho. Que dizem que lá é quente, mas à noite arrefece e um casaquinho não te pesa.
Lembra-te de comeres bem. Cuida de ti. As vitaminas são importantes e sabes bem que lá os hospitais não são como cá.
Lembra-te que podes sempre voltar, sempre que queiras.
O teu futuro é lá, mas o teu presente será sempre aqui, porque te havemos sempre de querer dar tudo o que pudermos, o que tivermos.
Lembra-te de nós e nunca te esqueças como gostamos de ti.
Sempre soubemos que ias partir, mas nunca quisemos acreditar. Sabiamos que toda a gente tem o seu caminho, mas não queriamos que o teu fosse longe daqui.
Sempre quisemos acreditar que o sonho de um Brasil fosse um idílio de férias e nunca pensamos que o nosso país te empurraria para lá.
Vamos ter saudades e preferiamos que não fosses. mas parece que é esse o teu destino. Melhor ainda, sabes?, penso para mim que temos todos um caminho a percorrer, um destino que temos que cumprir.
E se há quem tenha um destino, parece que depois há quem vá mais longe e tenha uma predesti-Nação.
Lembra-te que te queremos bem.
Lembra-te sempre de quem és.
Lembra-e que nunca estarás sozinha, que - mesmo com um oceano no meio - estaremos sempre aqui para ti.
Lembra-te de deixar as expectativas em casa, guardadas num armário qualquer; e fecha-as à chave, porque elas são como as formigas - esgueiram-se por qualquer frincha; como os cães: cheiram-te à distância e vão a correr ter contigo; e como os elefantes: fazem tudo o resto parecer pequeno, insignificante e insuficiente.
Lembra-te de telefonares todos os dias aos teus pais, que sabes como eles são saudosos. Ou não ligues mas manda um email. e não te esqueças de os mimares sempre.
Lembra-te do agasalho. Que dizem que lá é quente, mas à noite arrefece e um casaquinho não te pesa.
Lembra-te de comeres bem. Cuida de ti. As vitaminas são importantes e sabes bem que lá os hospitais não são como cá.
Lembra-te que podes sempre voltar, sempre que queiras.
O teu futuro é lá, mas o teu presente será sempre aqui, porque te havemos sempre de querer dar tudo o que pudermos, o que tivermos.
Lembra-te de nós e nunca te esqueças como gostamos de ti.
Sempre soubemos que ias partir, mas nunca quisemos acreditar. Sabiamos que toda a gente tem o seu caminho, mas não queriamos que o teu fosse longe daqui.
Sempre quisemos acreditar que o sonho de um Brasil fosse um idílio de férias e nunca pensamos que o nosso país te empurraria para lá.
Vamos ter saudades e preferiamos que não fosses. mas parece que é esse o teu destino. Melhor ainda, sabes?, penso para mim que temos todos um caminho a percorrer, um destino que temos que cumprir.
E se há quem tenha um destino, parece que depois há quem vá mais longe e tenha uma predesti-Nação.
sexta-feira, outubro 12, 2012
Isabel
Isabel era um outlier.
Isabel tinha uma cara redonda e cabelo loiro cortado curto de forma assimétrica. Vestia roupas confortáveis e originais, de cores fora do vulgar e acessórios de design.
Os sapatos eram rasos, a voz era quente e as palavras eram informais. Na Universidade, gostava de se sentar em cima das mesas quando dava aulas. E não o fazia de forma expectável.
De inteligência aguçada e espírito crítico bem desperto, tinha um gosto especial pelo inconvencional, pelo desafiar de regras, pelo diferente.
Sentava-se na mesa e punha uma perna atrás da cabeça enquanto explicava conceitos fundamentais e com algum nível de complexidade, como se fossem simples. Depois cruzava as pernas (sempre em cima da mesa) e dava exemplos sobre a possível relação dos alunos com os namorados, de quando saem à noite para beber uns copos, de quando correm e ficam muito cansados.
Os grandes teoremas aplicados a coisas simples, os corolários exemplificados.
E dizia: "experimentem".
E mandava experimentar logo ali, na hora. e depois fazia relatar o que tinham feito, comentar e pensar em alternativas e nos porquês das suas opções.
Tinha um ar de miúda e os alunos viam-na com frequência à noite, nas mesmas noitadas que eles, de copo na mão e cigarro de enrolar.
E ela não fazia de conta que não os via. Cumprimentava-os à distância, dizia-lhes adeus. E depois comentava nas aulas que os tinha visto se se lembrasse disso para exemplificar alguma coisa ou só para se meter com eles.
Os alunos ficavam perplexos a princípio. A senhora professora que não tinha ar de quem se ia aposentar em breve que dava exemplos tão pouco formais.
Depois acostumavam-se e recordavam com carinho os dias em que estavam poucos alunos e bom tempo e a aula era no jardim.
Isabel divertia-se com as aulas. Mas não deixava de ser um outlier. e à medida que ganhava confiança a sua não conformidade acentuava-se. E à medida que a não conformidade se acentuava, transformava-se em desobediência.
E um dia ela disse que estava farta. Que não queria mais. Que gostava demasiado de ser feliz para vender o seu tempo encaixotado nas regras que lhe mandavam, que um professor a sério não se senta em cima das mesas, não fala de substâncias psicotrópicas, não tem nada que perguntar aos alunos exemplos das suas vidas pessoais, que as aulas são para se dar na sala.
Então saiu da Universidade e foi ser feliz a dar consultas de Psicologia. No seu lugar colocaram outra professora nova e loira. Mas esta nunca se sentava em cima da mesa, nunca saia da sala e nunca dava exemplos da vida normal. Fazia testes em que os alunos tinham de dizer o que estava no manual, aparecia às reuniões todas, não dizia o que pensava e tratava os alunos como subordinados.
E ainda hoje lá está.
Isabel era claramente um outlier, um elemento da amálgama populacional que não reage como a maioria dos sujeitos. Diferente, fora dos parâmetros habituais. E na vida, como no tratamento de dados, os outliers só interessam quando a metodologia é qualitativa; na metodologia quantitativa, eliminam-se que é para depois não haver surpresas nos resultados.
Isabel tinha uma cara redonda e cabelo loiro cortado curto de forma assimétrica. Vestia roupas confortáveis e originais, de cores fora do vulgar e acessórios de design.
Os sapatos eram rasos, a voz era quente e as palavras eram informais. Na Universidade, gostava de se sentar em cima das mesas quando dava aulas. E não o fazia de forma expectável.
De inteligência aguçada e espírito crítico bem desperto, tinha um gosto especial pelo inconvencional, pelo desafiar de regras, pelo diferente.
Sentava-se na mesa e punha uma perna atrás da cabeça enquanto explicava conceitos fundamentais e com algum nível de complexidade, como se fossem simples. Depois cruzava as pernas (sempre em cima da mesa) e dava exemplos sobre a possível relação dos alunos com os namorados, de quando saem à noite para beber uns copos, de quando correm e ficam muito cansados.
Os grandes teoremas aplicados a coisas simples, os corolários exemplificados.
E dizia: "experimentem".
E mandava experimentar logo ali, na hora. e depois fazia relatar o que tinham feito, comentar e pensar em alternativas e nos porquês das suas opções.
Tinha um ar de miúda e os alunos viam-na com frequência à noite, nas mesmas noitadas que eles, de copo na mão e cigarro de enrolar.
E ela não fazia de conta que não os via. Cumprimentava-os à distância, dizia-lhes adeus. E depois comentava nas aulas que os tinha visto se se lembrasse disso para exemplificar alguma coisa ou só para se meter com eles.
Os alunos ficavam perplexos a princípio. A senhora professora que não tinha ar de quem se ia aposentar em breve que dava exemplos tão pouco formais.
Depois acostumavam-se e recordavam com carinho os dias em que estavam poucos alunos e bom tempo e a aula era no jardim.
Isabel divertia-se com as aulas. Mas não deixava de ser um outlier. e à medida que ganhava confiança a sua não conformidade acentuava-se. E à medida que a não conformidade se acentuava, transformava-se em desobediência.
E um dia ela disse que estava farta. Que não queria mais. Que gostava demasiado de ser feliz para vender o seu tempo encaixotado nas regras que lhe mandavam, que um professor a sério não se senta em cima das mesas, não fala de substâncias psicotrópicas, não tem nada que perguntar aos alunos exemplos das suas vidas pessoais, que as aulas são para se dar na sala.
Então saiu da Universidade e foi ser feliz a dar consultas de Psicologia. No seu lugar colocaram outra professora nova e loira. Mas esta nunca se sentava em cima da mesa, nunca saia da sala e nunca dava exemplos da vida normal. Fazia testes em que os alunos tinham de dizer o que estava no manual, aparecia às reuniões todas, não dizia o que pensava e tratava os alunos como subordinados.
E ainda hoje lá está.
Isabel era claramente um outlier, um elemento da amálgama populacional que não reage como a maioria dos sujeitos. Diferente, fora dos parâmetros habituais. E na vida, como no tratamento de dados, os outliers só interessam quando a metodologia é qualitativa; na metodologia quantitativa, eliminam-se que é para depois não haver surpresas nos resultados.
sexta-feira, setembro 28, 2012
Larissa
Tinha apenas 5 anos quando aprendi uma verdade incontornável.
Nós éramos pobres e eu gostava muito de brinquedos. A minha mãe saía do trabalho e vinha-me buscar ao infantário. Levava-me depois pela mão pelas ruas do Porto, onde ia fazer alguns recados antes de ir para casa: pagar contas, ir ao correio, compras de última hora para o jantar...
Naquela altura, o Porto tinha muitas lojas de rua e muitas lojas tinham brinquedos nas montras. Eu obrigava a minha mãe a parar em cada montra ficando a observar os brinquedos coloridos de olhos grandes. Inevitavelmente, acabava sempre por pedinchar todos os brinquedos, um a um.
"Mãe, dás-me aquele brinquedo?"
"Não, filha" - respondia com alguma consternação
"Porquê?"
"É muito caro, a mãe não tem dinheiro"
"Porquê?"
"Porque o brinquedo é caro."
"Há algum brinquedo barato?"
"Não."
E eu seguia-a triste, de olhos rasos de água porque eu queria tanto um brinquedo. Na montra seguinte, alguns metros à frente, eu repetia o ritual: estancava, obrigando-a a parar, para contemplar em adoração todos os brinquedos. e pedia "Mãe, dás-me aquele brinquedo?"...
A minha mãe tinha muita pena de não me poder dar nenhum brinquedo, mas não me queria fazer chorar, por isso todos os dias suportava o ritual em que eu adorava as vitrines fazendo-a demorar-se. E deixava-me contemplar as coisas que eu não podia ter porque, já que não me podia dar o objeto, não queria privar-me de sonhar um pouco com ele - mesmo que depois eu tivesse de encarar a realidade de que não ia poder obter o que desejava.
Mas de cada vez que me dizia "não", ela sentia o coração apertar.
Um dia de outono, a minha mãe foi-me buscar ao infantário. Era daqueles dias em que o tempo estava esquisito e ela não trouxe guarda-chuva. Começou a chover muito.
E nós tivemos de entrar numa loja para nos abrigarmos.
Era uma loja de brinquedos.
A minha mãe ensinou-me que não se mexe em nada nas lojas. E ensinou-me que não se interrompem os adultos. por isso eu estive um bom bocado até ao aguaceiro passar a ver os brinquedos todos e a morder a língua para não pedinchar todos como de costume.
Ela percebeu. Quando se baixou para me vestir o casaco novamente e sairmos para a rua eu disse-lhe ao ouvido, baixinho: "Mãe, dás-me um brinquedo pequenino?"
Era um pedido doce, sussurrado e muito razoável para uma menina de 5 anos. Se ela pudesse, dar-me-ia o mundo, mesmo sem eu pedir. Mas não podia.
Abotoando o meu casaco, ela estava ao meu nível. Olhou-me diretamente nos olhos e disse com a seriedade de quem faz uma promessa solene:
"Não te posso dar nada agora, filha; mas se me sair a lotaria, dou-te todos os brinquedos que tu quiseres."
Os meus olhos brilharam incrédulos.
"Todos, mãe?" - perguntei testando a realidade.
"Todos." - respondeu com honesta seriedade - "Mas temos de passar no quiosque antes que ele feche para comprarmos um bilhete."
Segurei-lhe a mão e arrastei-a eu para fora da loja, deixando-a seguir com os seus recados porque eu não sabia o que era um quiosque ou um bilhete.
A partir daí, as saídas do infantário que eram uma série de desilusões seguidas, passaram a ser os sonhos todos que eu quisesse.
"Mãe, se te sair a lotaria, dás-me aquele brinquedo?"
"Sim, filha" - e eu ficava feliz.
"E aquele?"
"Sim." - dizia sorrindo
E de cada vez que me dizia "sim", ficávamos as duas muito felizes. E eu deixei de perguntar a medo, porque já sabia a resposta, e comecei a perguntar feliz, porque já sabia a resposta.
E quando já estávamos a ficar com pouco tempo, ela dizia: "anda, que temos de chegar antes de fechar o quiosque."
Tinha apenas 5 anos quando aprendi uma verdade incontornável; bom, na realidade, duas verdades incontornáveis:
(1) a felicidade é muito mais uma questão de perspetiva do que de facto (porque imaginar, sonhar, projetar é muitas vezes melhor que possuir de imediato) e (2) a minha mãe será sempre mais esperta que eu.
Nós éramos pobres e eu gostava muito de brinquedos. A minha mãe saía do trabalho e vinha-me buscar ao infantário. Levava-me depois pela mão pelas ruas do Porto, onde ia fazer alguns recados antes de ir para casa: pagar contas, ir ao correio, compras de última hora para o jantar...
Naquela altura, o Porto tinha muitas lojas de rua e muitas lojas tinham brinquedos nas montras. Eu obrigava a minha mãe a parar em cada montra ficando a observar os brinquedos coloridos de olhos grandes. Inevitavelmente, acabava sempre por pedinchar todos os brinquedos, um a um.
"Mãe, dás-me aquele brinquedo?"
"Não, filha" - respondia com alguma consternação
"Porquê?"
"É muito caro, a mãe não tem dinheiro"
"Porquê?"
"Porque o brinquedo é caro."
"Há algum brinquedo barato?"
"Não."
E eu seguia-a triste, de olhos rasos de água porque eu queria tanto um brinquedo. Na montra seguinte, alguns metros à frente, eu repetia o ritual: estancava, obrigando-a a parar, para contemplar em adoração todos os brinquedos. e pedia "Mãe, dás-me aquele brinquedo?"...
A minha mãe tinha muita pena de não me poder dar nenhum brinquedo, mas não me queria fazer chorar, por isso todos os dias suportava o ritual em que eu adorava as vitrines fazendo-a demorar-se. E deixava-me contemplar as coisas que eu não podia ter porque, já que não me podia dar o objeto, não queria privar-me de sonhar um pouco com ele - mesmo que depois eu tivesse de encarar a realidade de que não ia poder obter o que desejava.
Mas de cada vez que me dizia "não", ela sentia o coração apertar.
Um dia de outono, a minha mãe foi-me buscar ao infantário. Era daqueles dias em que o tempo estava esquisito e ela não trouxe guarda-chuva. Começou a chover muito.
E nós tivemos de entrar numa loja para nos abrigarmos.
Era uma loja de brinquedos.
A minha mãe ensinou-me que não se mexe em nada nas lojas. E ensinou-me que não se interrompem os adultos. por isso eu estive um bom bocado até ao aguaceiro passar a ver os brinquedos todos e a morder a língua para não pedinchar todos como de costume.
Ela percebeu. Quando se baixou para me vestir o casaco novamente e sairmos para a rua eu disse-lhe ao ouvido, baixinho: "Mãe, dás-me um brinquedo pequenino?"
Era um pedido doce, sussurrado e muito razoável para uma menina de 5 anos. Se ela pudesse, dar-me-ia o mundo, mesmo sem eu pedir. Mas não podia.
Abotoando o meu casaco, ela estava ao meu nível. Olhou-me diretamente nos olhos e disse com a seriedade de quem faz uma promessa solene:
"Não te posso dar nada agora, filha; mas se me sair a lotaria, dou-te todos os brinquedos que tu quiseres."
Os meus olhos brilharam incrédulos.
"Todos, mãe?" - perguntei testando a realidade.
"Todos." - respondeu com honesta seriedade - "Mas temos de passar no quiosque antes que ele feche para comprarmos um bilhete."
Segurei-lhe a mão e arrastei-a eu para fora da loja, deixando-a seguir com os seus recados porque eu não sabia o que era um quiosque ou um bilhete.
A partir daí, as saídas do infantário que eram uma série de desilusões seguidas, passaram a ser os sonhos todos que eu quisesse.
"Mãe, se te sair a lotaria, dás-me aquele brinquedo?"
"Sim, filha" - e eu ficava feliz.
"E aquele?"
"Sim." - dizia sorrindo
E de cada vez que me dizia "sim", ficávamos as duas muito felizes. E eu deixei de perguntar a medo, porque já sabia a resposta, e comecei a perguntar feliz, porque já sabia a resposta.
E quando já estávamos a ficar com pouco tempo, ela dizia: "anda, que temos de chegar antes de fechar o quiosque."
Tinha apenas 5 anos quando aprendi uma verdade incontornável; bom, na realidade, duas verdades incontornáveis:
(1) a felicidade é muito mais uma questão de perspetiva do que de facto (porque imaginar, sonhar, projetar é muitas vezes melhor que possuir de imediato) e (2) a minha mãe será sempre mais esperta que eu.
sábado, setembro 15, 2012
Isabel
Isabel é perfeita. Talvez não seja perfeita. Mas é perfeita.
Isabel estica o cabelo todas as manhãs depois de um bom banho com esfoliante de algas e de pôr creme reafirmante em todo o corpo. Quando está em frente ao espelho a esticar o cabelo, Isabel já pôs creme na cara e pintou as unhas dos pés.
O cabelo de Isabel é longo e lustroso e dança-lhe nos ombros solidamente esculpidos em 2 horas de ginásio que faz todos os dias úteis da semana.
Isabel veste-se impecavelmente e pinta-se na medida certa. tem um aspeto cuidado sem ser postiço.
Quem olha para Isabel acha que ela é o máximo. Bonita e exótica, com o contraste do seu cabelo preto-carvão e os seus olhos cinzentos claros, a sua figura perfeita e escultural.
Isabel acumula ainda o facto de ser muito bem sucedida, de ter um trabalho prestigiante e bem pago que lhe permite fazer muitos spas e boas férias. Frequenta um healthclub muito caro, para onde vai impecavelmente vestida e arranjada.
Mas Isabel não é feliz.
Isabel tem tudo, menos um namorado. Na verdade, Isabel, aos 28 anos, nunca teve um namorado e nunca foi para a cama com ninguém.
O facto parece obtuso às pessoas que o conhecem, porque lhes parece absurdo que isso possa ser sequer possível.
Porque, para quem vê de fora, Isabel é perfeita.
Para Isabel a situação é desesperante. As pessoas falam com ela e perguntam-lhe amiudadas vezes pela sua vida amorosa, mas ela não tem uma resposta para dar. Sente-se pressionada por uma sociedade que vê aos pares e acha que se passa alguma coisa consigo, que deve ter algum problema.
Isabel sai muitas vezes à noite. Vai a discotecas bem frequentadas, vai a bares in e a locais cool. Vai ao ginásio, pergunta aos amigos se conhecem alguém solteiro e bem apanhado.
Às vezes questiona-se se o problema será do facto de ser virgem. Se levasse um gajo qualquer para a cama, só para se livrar da sua inexperiência, se isso lhe resolveria o problema.
Naturalmente, com alguma regularidade surgem homens interessados em Isabel, mas raramente esta lhes presta alguma atenção. Assim que um qualquer homem se aproxima dela, Isabel passa a ver-lhe apenas os defeitos e sente uma certa repulsa; adquiriu o hábito de apenas se interessar por homens-impossíveis, que não estão interessados ou que então são canalhas.
Mas como nunca deixa ninguém realmente aproximar-se, acaba por estar sempre sozinha.
E apesar de tudo, Isabel duvida muito de si mesma. Se será bonita, apesar das suas feições impossíveis. Se será atraente, apesar de tudo o que trabalha no ginásio. Se será interessante, não obstante tudo o que faz, tudo o que sabe, tudo o que gosta.
Questiona-se se está amaldiçoada, condenada a viver sozinha para todo o sempre.
Não percebe que o amor não se idealiza, aproveita-se. Não percebe que o amor não é lógico.
E em todo este tempo em que esteve à espera, a idealizar o homem perfeito e todas as coisas incríveis que ele fará por ela (dedicar-lhe músicas na rádio, enviar-lhe flores, oferecer-lhe jóias...) esteve também a construir um muro entre si e os homens reais que surgem na sua vida, porque nenhum pode competir com esta imagem e muito rapidamente Isabel percebe isso mesmo em todos eles.
Nenhum é "the one", logo à partida.
Mas o que não é óbvio e que talvez o que Isabel não perceba é que nenhum homem poderá entrar na sua vida, porque ela já está apaixonada pela imagem de perfeição que construiu. Ela no fundo tem namorado.
E enquanto não romper com ele, nunca terá espaço na sua vida para mais ninguém.
Isabel estica o cabelo todas as manhãs depois de um bom banho com esfoliante de algas e de pôr creme reafirmante em todo o corpo. Quando está em frente ao espelho a esticar o cabelo, Isabel já pôs creme na cara e pintou as unhas dos pés.
O cabelo de Isabel é longo e lustroso e dança-lhe nos ombros solidamente esculpidos em 2 horas de ginásio que faz todos os dias úteis da semana.
Isabel veste-se impecavelmente e pinta-se na medida certa. tem um aspeto cuidado sem ser postiço.
Quem olha para Isabel acha que ela é o máximo. Bonita e exótica, com o contraste do seu cabelo preto-carvão e os seus olhos cinzentos claros, a sua figura perfeita e escultural.
Isabel acumula ainda o facto de ser muito bem sucedida, de ter um trabalho prestigiante e bem pago que lhe permite fazer muitos spas e boas férias. Frequenta um healthclub muito caro, para onde vai impecavelmente vestida e arranjada.
Mas Isabel não é feliz.
Isabel tem tudo, menos um namorado. Na verdade, Isabel, aos 28 anos, nunca teve um namorado e nunca foi para a cama com ninguém.
O facto parece obtuso às pessoas que o conhecem, porque lhes parece absurdo que isso possa ser sequer possível.
Porque, para quem vê de fora, Isabel é perfeita.
Para Isabel a situação é desesperante. As pessoas falam com ela e perguntam-lhe amiudadas vezes pela sua vida amorosa, mas ela não tem uma resposta para dar. Sente-se pressionada por uma sociedade que vê aos pares e acha que se passa alguma coisa consigo, que deve ter algum problema.
Isabel sai muitas vezes à noite. Vai a discotecas bem frequentadas, vai a bares in e a locais cool. Vai ao ginásio, pergunta aos amigos se conhecem alguém solteiro e bem apanhado.
Às vezes questiona-se se o problema será do facto de ser virgem. Se levasse um gajo qualquer para a cama, só para se livrar da sua inexperiência, se isso lhe resolveria o problema.
Naturalmente, com alguma regularidade surgem homens interessados em Isabel, mas raramente esta lhes presta alguma atenção. Assim que um qualquer homem se aproxima dela, Isabel passa a ver-lhe apenas os defeitos e sente uma certa repulsa; adquiriu o hábito de apenas se interessar por homens-impossíveis, que não estão interessados ou que então são canalhas.
Mas como nunca deixa ninguém realmente aproximar-se, acaba por estar sempre sozinha.
E apesar de tudo, Isabel duvida muito de si mesma. Se será bonita, apesar das suas feições impossíveis. Se será atraente, apesar de tudo o que trabalha no ginásio. Se será interessante, não obstante tudo o que faz, tudo o que sabe, tudo o que gosta.
Questiona-se se está amaldiçoada, condenada a viver sozinha para todo o sempre.
Não percebe que o amor não se idealiza, aproveita-se. Não percebe que o amor não é lógico.
E em todo este tempo em que esteve à espera, a idealizar o homem perfeito e todas as coisas incríveis que ele fará por ela (dedicar-lhe músicas na rádio, enviar-lhe flores, oferecer-lhe jóias...) esteve também a construir um muro entre si e os homens reais que surgem na sua vida, porque nenhum pode competir com esta imagem e muito rapidamente Isabel percebe isso mesmo em todos eles.
Nenhum é "the one", logo à partida.
Mas o que não é óbvio e que talvez o que Isabel não perceba é que nenhum homem poderá entrar na sua vida, porque ela já está apaixonada pela imagem de perfeição que construiu. Ela no fundo tem namorado.
E enquanto não romper com ele, nunca terá espaço na sua vida para mais ninguém.
domingo, setembro 09, 2012
Clara
Clara era uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
Gostava de estar no meio da multidão, onde somos todos ninguém e somos todos iguais.
A multidão é uma massa de gente anónima, cada uma protagonista do seu próprio enredo, que se junta num determinado momento do tempo e do espaço e se torna numa só.
A comunhão que se vive numa multidão é uma experiência de que nem sempre nos apercebemos. A multidão tem correntes e força e ânimo. Não há nada mais perigoso que uma multidão em pânico e nada mais inconsciente que uma multidão absorta.
Cada pessoa na multidão pode estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo. Apesar de nos sabermos rodeados de pessoas, no meio de uma multidão podemos ter a sensação - que pode ser enganadora - de que temos privacidade. Uma pessoa provavelmente não contará os segredos da sua vida íntima a outra num elevador onde mais duas pessoas estão presentes, mas facilmente revela detalhes embaraçosos no caminho para algum sítio no meio da rua. As mesmas duas pessoas que estavam no elevador podem estar a ouvir. Mas a multidão torna-as invisíveis e torna-as anónimas.
E por isso nos sentimos tão surpreendidos quando estamos no meio de uma multidão e encontramos alguém conhecido. Como se fosse improvável, perguntamos: "olha, tu aqui! que andas por aqui a fazer?". Como se fosse inverosímil encontrar alguém que conheçamos no meio de muita gente.
Clara tinha decidido que queria ser feliz, só não sabia como. Era uma mulher bonita, inteligente, sonhadora e invulgar. Um pássaro. Indisponível para sacrificar as suas asas por qualquer convenção social ou desejabilidade familiar. De olhos abertos. Com vontade de viver. Por vezes perdida. Por vezes partida. Por vezes com força. sempre capaz de se refazer. sempre capaz de voar. mesmo que baixinho.
E gostava da multidão. De estar no meio da mole humana. De ver as pessoas que caminham depressa para os empregos, para os encontros, para o autocarro. As pessoas que caminham devagar de câmara fotográfica em punho, numa conversa gostosa, de mão dada, de olhos no chão.
Gostava de se lembrar que era pequena perante a multidão. Que na vida da senhora que ralhava ao filho por não lhe dar a mão ao atravessar a rua, Clara era uma figurante. Na vida da senhora da sua padaria diária, uma atriz muito secundária. Fazia-lhe bem lembrar-se que era pequena para se lembrar que os seus problemas eram também pequenos.
Na vida de Clara, a multidão não era um mero cenário, era uma atriz secundária importante.
E a multidão, sempre boa conselheira, permitia-a ver o miolo da vida dos outros. lembrava-a que, no fundo, somos todos iguais, temos todos problemas, inseguranças, dores, aspirações, sonhos, vontades. Que até podem ter configurações diferentes mas que no fim redundam na mesma essência.
Que não é apenas como mero conceito abstrato. ou só por pertencermos à mesma espécie animal. Fazemos mesmo, de forma quase palpável, parte da mesma vida, da mesma humanidade. somos únicos mas nunca estamos sós.
Compreender a multidão, escutar a sua respiração, abraçar a batida do seu coração, sentir-lhe o pulso, ajudava-a manter-se fiel a sim mesma, a não comprometer os seus princípios, a encontrar o norte da sua vida.
A multidão, sempre diferente e sempre igual, lembrava-a que na sua condição humana não devia nada a ninguém, a não ser uma predisposição de boa-vontade e compaixão. Que não era obrigada a tomar decisões que iam contra si mesma. Porque tudo passa e a multidão que é sempre a mesma, é sempre diferente. e quando uma pessoa sai, entra outra. ou outras. ou não entra ninguém. e não faz mal.
Que o que faz mal é a infelicidade que nos infligimos quando vamos contra nós mesmos porque nos esquecemos que estamos todos no meio da mesma massa e que o nosso impacto no mundo é limitado. que a nossa vida, mais que nada é nossa. independentemente de tudo o que nos queiram impingir. Que as nossas escolhas não servem para ir ao encontro das vontades dos outros, expressas por eles ou imaginadas por nós, mas para ir ao encontro daquilo que nos dá sentido. daquilo que nós somos. Porque somos nós e não os outros que vivemos com elas todos os dias.
A multidão lembrava-a que ela podia ser quem queria, porque nunca ia ficar sozinha. A multidão ia sempre continuar ali. E o mundo continuaria a girar, sempre com coisas para serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas. para onde quer que ela olhasse. Talvez melhores, talvez piores. Mas sempre dignas de serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas.
E por isso, independentemente da forma como ela sentisse a realidade, que por vezes era dura, por vezes a fazia sofrer e nem sempre fazia justiça aos desejos de felicidade constante que lhe direcionavam algumas pessoas, a multidão lembrava a Clara que ela era quem era. E que era imune ao medo da solidão: a multidão nunca ia deixar de existir, e de a incluir sempre que ela desejasse.
E isso fazia em grande parte com que Clara fosse uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
Gostava de estar no meio da multidão, onde somos todos ninguém e somos todos iguais.
A multidão é uma massa de gente anónima, cada uma protagonista do seu próprio enredo, que se junta num determinado momento do tempo e do espaço e se torna numa só.
A comunhão que se vive numa multidão é uma experiência de que nem sempre nos apercebemos. A multidão tem correntes e força e ânimo. Não há nada mais perigoso que uma multidão em pânico e nada mais inconsciente que uma multidão absorta.
Cada pessoa na multidão pode estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo. Apesar de nos sabermos rodeados de pessoas, no meio de uma multidão podemos ter a sensação - que pode ser enganadora - de que temos privacidade. Uma pessoa provavelmente não contará os segredos da sua vida íntima a outra num elevador onde mais duas pessoas estão presentes, mas facilmente revela detalhes embaraçosos no caminho para algum sítio no meio da rua. As mesmas duas pessoas que estavam no elevador podem estar a ouvir. Mas a multidão torna-as invisíveis e torna-as anónimas.
E por isso nos sentimos tão surpreendidos quando estamos no meio de uma multidão e encontramos alguém conhecido. Como se fosse improvável, perguntamos: "olha, tu aqui! que andas por aqui a fazer?". Como se fosse inverosímil encontrar alguém que conheçamos no meio de muita gente.
Clara tinha decidido que queria ser feliz, só não sabia como. Era uma mulher bonita, inteligente, sonhadora e invulgar. Um pássaro. Indisponível para sacrificar as suas asas por qualquer convenção social ou desejabilidade familiar. De olhos abertos. Com vontade de viver. Por vezes perdida. Por vezes partida. Por vezes com força. sempre capaz de se refazer. sempre capaz de voar. mesmo que baixinho.
E gostava da multidão. De estar no meio da mole humana. De ver as pessoas que caminham depressa para os empregos, para os encontros, para o autocarro. As pessoas que caminham devagar de câmara fotográfica em punho, numa conversa gostosa, de mão dada, de olhos no chão.
Gostava de se lembrar que era pequena perante a multidão. Que na vida da senhora que ralhava ao filho por não lhe dar a mão ao atravessar a rua, Clara era uma figurante. Na vida da senhora da sua padaria diária, uma atriz muito secundária. Fazia-lhe bem lembrar-se que era pequena para se lembrar que os seus problemas eram também pequenos.
Na vida de Clara, a multidão não era um mero cenário, era uma atriz secundária importante.
E a multidão, sempre boa conselheira, permitia-a ver o miolo da vida dos outros. lembrava-a que, no fundo, somos todos iguais, temos todos problemas, inseguranças, dores, aspirações, sonhos, vontades. Que até podem ter configurações diferentes mas que no fim redundam na mesma essência.
Que não é apenas como mero conceito abstrato. ou só por pertencermos à mesma espécie animal. Fazemos mesmo, de forma quase palpável, parte da mesma vida, da mesma humanidade. somos únicos mas nunca estamos sós.
Compreender a multidão, escutar a sua respiração, abraçar a batida do seu coração, sentir-lhe o pulso, ajudava-a manter-se fiel a sim mesma, a não comprometer os seus princípios, a encontrar o norte da sua vida.
A multidão, sempre diferente e sempre igual, lembrava-a que na sua condição humana não devia nada a ninguém, a não ser uma predisposição de boa-vontade e compaixão. Que não era obrigada a tomar decisões que iam contra si mesma. Porque tudo passa e a multidão que é sempre a mesma, é sempre diferente. e quando uma pessoa sai, entra outra. ou outras. ou não entra ninguém. e não faz mal.
Que o que faz mal é a infelicidade que nos infligimos quando vamos contra nós mesmos porque nos esquecemos que estamos todos no meio da mesma massa e que o nosso impacto no mundo é limitado. que a nossa vida, mais que nada é nossa. independentemente de tudo o que nos queiram impingir. Que as nossas escolhas não servem para ir ao encontro das vontades dos outros, expressas por eles ou imaginadas por nós, mas para ir ao encontro daquilo que nos dá sentido. daquilo que nós somos. Porque somos nós e não os outros que vivemos com elas todos os dias.
A multidão lembrava-a que ela podia ser quem queria, porque nunca ia ficar sozinha. A multidão ia sempre continuar ali. E o mundo continuaria a girar, sempre com coisas para serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas. para onde quer que ela olhasse. Talvez melhores, talvez piores. Mas sempre dignas de serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas.
E por isso, independentemente da forma como ela sentisse a realidade, que por vezes era dura, por vezes a fazia sofrer e nem sempre fazia justiça aos desejos de felicidade constante que lhe direcionavam algumas pessoas, a multidão lembrava a Clara que ela era quem era. E que era imune ao medo da solidão: a multidão nunca ia deixar de existir, e de a incluir sempre que ela desejasse.
E isso fazia em grande parte com que Clara fosse uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
segunda-feira, setembro 03, 2012
Cá te espero
Para a Cá, a Larita, e o Paulinho. E as suas famílias.
A luz de Cá brilhava de forma quase palpável.
Os miúdos no Instituto Português de Oncologia têm frequentemente este tipo de brilho, uma luz que é deles por serem quem são, crianças, e uma luz que é deles porque a conquistaram, porque com frequência já olharam nos olhos a dor, o horror, o medo - deles e dos pais - e até a morte, e, apesar de tudo, não perderam a sua condição e inocência de crianças, e a sua capacidade de se maravilharem com o mundo todo.
Aos adultos, por vezes, o enfrentar a dor, o medo, a morte, marca de tal forma que se tornam incapazes de seguir vivendo, como se tivessem comido um prato muito condimentado e tivessem ficado sem sensibilidade nas papilas gustativas para mais nada. As crianças, com frequência, depois de encararem esses fantasmas, estão prontas para ir brincar com os legos, as bonecas, o puzzles, os desenhos.
Porque na sua infinita sabedoria, sabem que o mundo é muito grande, muito maior que elas, e que há muito para viver. Então, que sentido faz sofrer continuamente, depois de a dor ter passado? Depois de se ter olhado para o medo? De se ter tocado a morte e fugido, como se se tratasse de uma campaínha?
E a luz de Cá, a menina frágil e aventureira, capaz de sorrir nas condições mais adversas, brilhava de uma forma quase palpável.
Tinha cabelos compridos e sorria muito, quando começou os tratamentos no IPO. Era uma menina esperta e doce, com uma alegria genuína que contagiava as pessoas com quem lidava. Muito bonita.
Os tratamentos eram agrestes, mas Cá nunca perdeu o ânimo e nunca perdeu a doçura ou a luz com que brilhava de direito próprio. Pelo contrário, à medida que as suas pessoas (porque há pessoas que são nossas, como os pais, ou os irmãos, ou os amigos muito amigos) esmoreciam, Cá brilhava para lhes lembrar que valia a pena continuar, acreditar, viver, ter esperança.
E nunca deixou de brilhar.
Nem quando a doença ou os tratamentos lhe incharam a cara, lhe deram febre, a fizeram ficar mal-disposta, com dores em todo o lado, como que de castigo em isolamento, longe de casa, longe dos amigos, sem forças.
É difícil descrever a Cá-criança sem descrever a Cá-lutadora, guerreira. Porque todos os meninos do IPO são pequenos heróis. E às vezes a doença-guerra leva-os para longe, para um sítio de onde não regressam fisicamente.
E depois fica o vazio, um buraco impossível de preencher.
Mas isso não significa que a doença tenha vencido.
Porque há um segredo mágico que apenas os que lidam estas crianças sabem.
É que elas continuam vivas na luz com que nos impregnaram na sua passagem. E o sofrimento da perda é no fundo um preço pequeno a pagar, quando comparado com o privilégio imenso de se ter sido tocado por elas.
segunda-feira, agosto 20, 2012
Paulo
Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".
Sorria com esta lembrança. Quando a conheceu, ela estava a dizer os significados dos nomes numa roda de curiosos.
-Tiago significa "o maior". Ana? "Agraciada por Deus". César? "Imperador", é daí que deriva a palavra Kaiser e Czar. Vitor? "Vencedor".
- Chamo-me Paulo. O que é que isso significa?
Silêncio.
- És Paulo, quê?
- Só Paulo.
A voz dela diminuiu um pouco e com algum embaraço, respondeu:
- Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".
Ela, a mulher bonita e interessante ficou com ar de pena e sentimento de culpa, perante o "Pequeno", "Pouco" Paulo. E o "Pouco" "Pequeno" Paulo que era um homem relativamente baixo e definitivamente feio aproveitou a deixa e disse-lhe que a única forma que ela tinha de o compensar daquele embaraço era jantar com ele.
Ana disse que sim no momento, por pura compaixão. Paulo sabia, mas não fazia mal. O pior que poderia acontecer era passar um bom serão com uma mulher bonita; o melhor...
Combinou em casa dele para a sexta seguinte, 20 de Agosto, e foi ele que cozinhou o jantar.
Ana combinou com uma amiga que lhe ligasse para ela ter uma desculpa para se vir embora cedo. Paulo não fazia o género dela e ela não queria ser rude.
Paulo abriu um "Duas Quintas" maduro tinto especial e pô-lo a decantar na cozinha. Tostou pão no forno e escolheu dois ou três queijos. Fez de véspera mousse de chocolate com gengibre, pimenta rosa e menta, uma especialidade sua. O chocolate ficava-lhe sempre com o ar banal de uma mousse de chocolate, de castanho rico e cremoso, mas as especiarias adicionavam-lhe um interesse diferente e faziam com que não ficasse enjoativo. Era uma surpresa que proporcionava aos convidados que olhavam céticos para os grãos de pimenta rosa e folhas de menta com que decorava o prato, encorajando-os a trincar tudo em conjunto.
Quando Ana chegou, pontualmente, ele estava a acabar a comida. Convidou-a a entrar e a fazer-lhe companhia na cozinha enquanto acabava o jantar.
Ana sentou-se numa cadeira na cozinha grande a conversar e a provar o vinho e o queijo, enquanto Paulo acabava o molho de carne picada e couve roxa para a massa que preparava.
A conversa começou distraída e descontraída. Paulo era feio, mas não era burro. Enquanto temperava e dava a provar a comida a Ana, enquanto agitava a massa para ela com as suas mãos experientes e lhe explicava os seus segredos de exímio cozinheiro, foi entrando aos poucos na sua alma, abrindo a porta do seu coração.
Antes de Ana dar por ela, estava completamente sob o feitiço de Paulo por quem não teria dado nada. e que, como frequentemente acontece, por detrás da sua aparência pouco atraente era um homem culto, interessante e charmoso.
A mesa estava posta com elegância e simplicidade. Um aparato despretencioso e intimista, criando um ambiente naquela fronteira difícil de conseguir, entre o interesse declarado e uma dúvida de casualidade simpática. No ponto perfeito entre o charme que é assim naturalmente ou a corte deliberada mas discreta. Um "quero-te, se tu valeres a pena" impossível de resistir.
O vinho era muito bom. Não chegaram à mousse.
Durante os quatro anos que estiveram juntos, jantavam sempre a 20 de Agosto com o mesmo menu. O ritual mudou ligeiramente; Ana passou a estar encarregue de escolher o vinho e os queijos que mudavam de ano para ano; na véspera, Paulo continuava a fazer a mousse, mas Ana lia para ele, enquanto ele derretia o chocolate espesso e lustroso e o perfumava de raspas de gengibre fresco e pimenta rosa moída, enquanto batia os ovos da forma mais silenciosa possível para poder continuar a ouvir narração de "O cemitério de pianos", "Sputnik, meu amor"ou "A cabeça cortada de Damasceno Monteiro" na voz ritmada e quente da sua amada.
No dia do jantar, Ana continuava a sentar-se na mesma cadeira da cozinha de copo na mão, conversando ou lendo para Paulo no ritual intimista de quem partilha ao vivo a emoção de uma história que se desenrola em tempo real e a criação de uma refeição perfeita.
Jantavam, conversavam e dançavam ao som das músicas intimistas de que gostavam.
Sentavam-se sempre nos mesmos sítios como se quisessem preservar aqueles momentos perfeitos em que se tinham apaixonado. Ana continuava a vestir o mesmo vestido desinteressante que tinha levado para não chamar a atenção do homem que achava que não queria cativar. Mudara a lingerie.
E aquele serão, que se repetia geminado de ano para ano, era sempre memorável, com o bom vinho e a leve embriaguez, a massa que ficava sempre perfeita com o seu ar roxo inconvencional e o queijo derretido, a mão de Ana pousada em cima da mesa e a mousse de chocolate depois da dança lenta - e da sobremesa.
Sorria com esta lembrança. Quando a conheceu, ela estava a dizer os significados dos nomes numa roda de curiosos.
-Tiago significa "o maior". Ana? "Agraciada por Deus". César? "Imperador", é daí que deriva a palavra Kaiser e Czar. Vitor? "Vencedor".
- Chamo-me Paulo. O que é que isso significa?
Silêncio.
- És Paulo, quê?
- Só Paulo.
A voz dela diminuiu um pouco e com algum embaraço, respondeu:
- Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".
Ela, a mulher bonita e interessante ficou com ar de pena e sentimento de culpa, perante o "Pequeno", "Pouco" Paulo. E o "Pouco" "Pequeno" Paulo que era um homem relativamente baixo e definitivamente feio aproveitou a deixa e disse-lhe que a única forma que ela tinha de o compensar daquele embaraço era jantar com ele.
Ana disse que sim no momento, por pura compaixão. Paulo sabia, mas não fazia mal. O pior que poderia acontecer era passar um bom serão com uma mulher bonita; o melhor...
Combinou em casa dele para a sexta seguinte, 20 de Agosto, e foi ele que cozinhou o jantar.
Ana combinou com uma amiga que lhe ligasse para ela ter uma desculpa para se vir embora cedo. Paulo não fazia o género dela e ela não queria ser rude.
Paulo abriu um "Duas Quintas" maduro tinto especial e pô-lo a decantar na cozinha. Tostou pão no forno e escolheu dois ou três queijos. Fez de véspera mousse de chocolate com gengibre, pimenta rosa e menta, uma especialidade sua. O chocolate ficava-lhe sempre com o ar banal de uma mousse de chocolate, de castanho rico e cremoso, mas as especiarias adicionavam-lhe um interesse diferente e faziam com que não ficasse enjoativo. Era uma surpresa que proporcionava aos convidados que olhavam céticos para os grãos de pimenta rosa e folhas de menta com que decorava o prato, encorajando-os a trincar tudo em conjunto.
Quando Ana chegou, pontualmente, ele estava a acabar a comida. Convidou-a a entrar e a fazer-lhe companhia na cozinha enquanto acabava o jantar.
Ana sentou-se numa cadeira na cozinha grande a conversar e a provar o vinho e o queijo, enquanto Paulo acabava o molho de carne picada e couve roxa para a massa que preparava.
A conversa começou distraída e descontraída. Paulo era feio, mas não era burro. Enquanto temperava e dava a provar a comida a Ana, enquanto agitava a massa para ela com as suas mãos experientes e lhe explicava os seus segredos de exímio cozinheiro, foi entrando aos poucos na sua alma, abrindo a porta do seu coração.
Antes de Ana dar por ela, estava completamente sob o feitiço de Paulo por quem não teria dado nada. e que, como frequentemente acontece, por detrás da sua aparência pouco atraente era um homem culto, interessante e charmoso.
A mesa estava posta com elegância e simplicidade. Um aparato despretencioso e intimista, criando um ambiente naquela fronteira difícil de conseguir, entre o interesse declarado e uma dúvida de casualidade simpática. No ponto perfeito entre o charme que é assim naturalmente ou a corte deliberada mas discreta. Um "quero-te, se tu valeres a pena" impossível de resistir.
O vinho era muito bom. Não chegaram à mousse.
Durante os quatro anos que estiveram juntos, jantavam sempre a 20 de Agosto com o mesmo menu. O ritual mudou ligeiramente; Ana passou a estar encarregue de escolher o vinho e os queijos que mudavam de ano para ano; na véspera, Paulo continuava a fazer a mousse, mas Ana lia para ele, enquanto ele derretia o chocolate espesso e lustroso e o perfumava de raspas de gengibre fresco e pimenta rosa moída, enquanto batia os ovos da forma mais silenciosa possível para poder continuar a ouvir narração de "O cemitério de pianos", "Sputnik, meu amor"ou "A cabeça cortada de Damasceno Monteiro" na voz ritmada e quente da sua amada.
No dia do jantar, Ana continuava a sentar-se na mesma cadeira da cozinha de copo na mão, conversando ou lendo para Paulo no ritual intimista de quem partilha ao vivo a emoção de uma história que se desenrola em tempo real e a criação de uma refeição perfeita.
Jantavam, conversavam e dançavam ao som das músicas intimistas de que gostavam.
Sentavam-se sempre nos mesmos sítios como se quisessem preservar aqueles momentos perfeitos em que se tinham apaixonado. Ana continuava a vestir o mesmo vestido desinteressante que tinha levado para não chamar a atenção do homem que achava que não queria cativar. Mudara a lingerie.
E aquele serão, que se repetia geminado de ano para ano, era sempre memorável, com o bom vinho e a leve embriaguez, a massa que ficava sempre perfeita com o seu ar roxo inconvencional e o queijo derretido, a mão de Ana pousada em cima da mesa e a mousse de chocolate depois da dança lenta - e da sobremesa.
domingo, agosto 12, 2012
O que não fazer na hora de perder o avião
Não pôr o despertador para a hora certa.
Não acordar a horas.
Não se certificar que as bagagens estão nos limites de peso.
Não fechar bem a mala.
Não colocar um aloquete.
Não escrever uma etiqueta com a morada de destino na mala, para o caso de se extraviar.
Não apanhar um taxi.
Não organizar os documentos.
Não conferir que os líquidos das bagagens de mão não excedem as quantidades permitidas.
Não ter os bilhetes impressos e à mão.
Não pagar o taxi.
Não sair do taxi.
Não entrar no aeroporto.
Não fazer o check in.
Não largar a mão. não abraçar. não beijar. não despedir. Não afastar. Não virar as costas. Não virar as costas. Não virar costas. Não caminhar para longe. e cada vez mais longe. e com as lágrimas nos olhos. não ir.
Não passar pela segurança do aeroporto.
Não correr.
Não ultrapassar as pessoas que caminham lentamente e apreciam os produtos no free shop.
Não encontrar a porta de embarque.
Não ir para a fila de embarque.
Não ter o cartão de embarque visível acompanhado do passaporte.
Não entrar no avião.
Não cumprimentar o simpático staff do avião.
Não encontrar o lugar no assento indicado no bilhete.
Não sentar.
Não apertar o cinto de segurança e colocar o assento numa posição vertical.
Não partir.
Não dizer adeus para sempre àquele amor.
Não acordar a horas.
Não se certificar que as bagagens estão nos limites de peso.
Não fechar bem a mala.
Não colocar um aloquete.
Não escrever uma etiqueta com a morada de destino na mala, para o caso de se extraviar.
Não apanhar um taxi.
Não organizar os documentos.
Não conferir que os líquidos das bagagens de mão não excedem as quantidades permitidas.
Não ter os bilhetes impressos e à mão.
Não pagar o taxi.
Não sair do taxi.
Não entrar no aeroporto.
Não fazer o check in.
Não largar a mão. não abraçar. não beijar. não despedir. Não afastar. Não virar as costas. Não virar as costas. Não virar costas. Não caminhar para longe. e cada vez mais longe. e com as lágrimas nos olhos. não ir.
Não passar pela segurança do aeroporto.
Não correr.
Não ultrapassar as pessoas que caminham lentamente e apreciam os produtos no free shop.
Não encontrar a porta de embarque.
Não ir para a fila de embarque.
Não ter o cartão de embarque visível acompanhado do passaporte.
Não entrar no avião.
Não cumprimentar o simpático staff do avião.
Não encontrar o lugar no assento indicado no bilhete.
Não sentar.
Não apertar o cinto de segurança e colocar o assento numa posição vertical.
Não partir.
Não dizer adeus para sempre àquele amor.
quinta-feira, agosto 09, 2012
Cala-te, Márcia #2
(guião)
Joana e Márcia estão na cozinha. A casa é claramente rica e bem situada, um apartamento na Foz. Ouve-se o mar ao fundo. E levemente o ruído de um jogo de futebol noutra divisão.
Joana e Márcia estão na cozinha. A casa é claramente rica e bem situada, um apartamento na Foz. Ouve-se o mar ao fundo. E levemente o ruído de um jogo de futebol noutra divisão.
A cozinha é grande e acolhedora.
Joana e Márcia conversam enquanto tomam um chá e comem biscoitos que talvez tenham sido feitos à mão, talvez tenham sido feitos por uma das duas, talvez tenham sido comprados. Têm bom aspeto: se foram elas que fizeram, fazem muito bem; se compraram, foram caros.
A loiça não é particularmente rococó. É Vista Alegre que se usa no dia a dia ou as chávenas boas que a avó deixou a Márcia.
Usam coisas boas e em pouca quantidade, com displicência natural de quem vive muito bem há muito tempo.
Márcia tem uma nódoa negra no braço que está mais ou menos tapada pela blusa.
Joana: Mas isto já aconteceu antes?
Márcia: Não. Achas? Isto foi uma coisa completamente extemporânea. Ele não sabe a força que tem.
J: Espera. Mas... como é que isso aconteceu?
M: Então, foi para eu não cair. Ele agarrou-me o braço e fez força a mais. Sabes que ele fica tolo quando imagina sequer que algo de mal me pode acontecer.
(pausa. Maria está incrédula, mas não quer confrontar nem intimidar a amiga)
M: Vá. Eu sei o que é que estás a pensar. Mas não é nada disso, não é nada disso mesmo. O Rui gosta mesmo muito de mim, fica completamente perdido quando nos zangamos, não tens noção. E tu sabes que ele teve uma vida lixada antes de me conhecer. Pronto. E quando pensa que me pode perder, fica um bocado descontrolado. Mas está tudo bem. (Márcia sorri, apaziguando a amiga)
(Joana continua sem saber o que dizer)
M: Queres mais chá?
J: Sim, se faz favor. O que é que estás a pôr nisso? Não queres ficar com uma marca aí...
M: Umas pomadas que tinha por aqui. Sabes que eu sou uma desastrada e ando sempre a fazer negras. Daqui a uns dias isto já está bom, nem se nota nada.
J: eu sei que ele é teu marido, mas estas coisas deixam-me preocupada...
Márcia não gosta da afirmação/insinuação e reage de forma muito levemente agressiva, mas sem cruzar o limite da confrontação aberta
M: Estas coisas? Mas que coisas?
J: Pronto, não te zangues.
M: Eu não estou zangada, Joaninha. Não estou é a perceber o que é que queres dizer com "estas coisas deixam-me preocupada". Até parece que há "coisas" para te preocupares. Não gosto desse tipo de comentários. Eu e o Rui somos um casal super feliz e damo-nos super bem. Temos as nossas coisas como todos os casais, mas ele nunca me faltou ao respeito. E tu sabes que ele faz tudo por mim. Está sempre preocupado se me falta alguma coisa, ajudou-me quando eu estava muito deprimida no trabalho e até foi ele que me disse que eu não precisava de trabalhar. O Rui pode ter muitos defeitos mas ninguém pode dizer que ele não me ama. E isso é o mais importante, ou não?
J: sim, claro... Não te queria ofender, Márcia, de todo. Eu só quero é que tu estejas bem, ok?
Márcia tira um biscoito e sentindo que recuperou o controlo da situação, continua
M: És uma querida. Mas eu estou bem, sim. Tu sabes que eu amo o Rui mais que tudo na vida. E ele faz-me feliz. Tem aquele feitiozinho dele, mas ama-me muito e cuida muito de mim.
J: A verdade é que ele não pode ver outro homem a olhar para ti.
Márcia sorri cumplicemente e diz vitoriosa e inchada de orgulho:
M: Fica louco. Tem logo que vir por o braço à minha volta, marcar território. Ele acha que todos os homens querem ficar comigo. E Deus me livre se me vê a conversar com alguém, acha logo que o fulano vai ficar obcecado, que me vai perseguir. Imagina tu que no último jantar do Lions a que fomos eu tive de mudar de vestido mesmo antes de sair. Fez uma cena porque achou que o vestido era muito decotado, que os outros iam ficar todos a olhar para mim, que - imagina tu - "o que é dele" ("o que é dele", vê lá tu que querido!) "o que é dele não é para os outros verem", que eu sou só dele. E fez finca pé, lá tive de ir trocar de vestido. Aquele homem quando mete uma coisa na cabeça é assim, tem que ser e tem que ser mesmo.
J: de que signo é que ele é?
M: Touro. Não se nota? Teimoso, ciumento e possessivo. parece que lhe vão tirar o chão quando acha que pode ficar sem mim.
J: Mas ele acha mesmo que te pode perder assim?
M: tens de compreender: o Rui vem de uma família em que os pais discutiam muito. Levou muita porrada quando era miúdo, sem razão nenhuma. Não contes a ninguém, mas o pai tinha muitas amantes e discutia muito com a mãe, batia-lhe e coisas afins. E a mãe metia-se nos copos. Ele era o filho mais velho e depois a irmã morreu naquele acidente esquisito. Olha, eu nem sei como é que ele saiu tão bem da situação. Ele subiu a pulso, sabes Joana. conseguiu bolsas de estudo e depois de ter sido retirado à família começou a trabalhar porque o sonho dele era ser médico. Ele não teve uma vida boa como nós. E mesmo assim, conseguiu chegar onde está. É um grande homem.
J: está bem, mas ele também devia saber a mulher que tem. Tu não és propriamente uma Lucrécia Bórgia. Eu já nem me lembro de te ver falar com outro homem.
M: Oh, sabes como é que é. Quando cresces num ambiente assim, tens sempre dúvidas sobre o que é que é e o que é que não é. Duvidas muito mais das coisas que tens e das relações que constróis. Nunca tens a certeza do amor da outra pessoa, tens sempre de estar a validar essa ideia.
J: Olha que mesmo não exercendo, as cadeiras de psicologia não te esqueceram.
M: eu tenho lido muito sobre isto, sabes? O Rui precisa muito de ajuda e eu acho que ele está muito melhor agora. Já não faz as cenas de ciumes que fazia. Isto é quase uma vergonha, mas vou-te contar que houve uma altura em que ele me ia ver telemóvel e o email. e o facebook. enfim. foi por isso que acabei com o facebook: ele ficava tão inseguro e alterado quando eu tinha amigos homens - Joana eram só conhecidos, só pessoas dos meus voluntariados e projetos de caridade - que eu decidi acabar com o facebook. Também não preciso daquilo para nada. É só para a cuscuvilhice e eu estou muito bem aqui no meu cantinho.
J: está bem. Mas podias aparecer mais, que nós não te temos visto e temos sentido a tua falta. Já nem vais à quintas-feiras aos chás a Seralves...
M: tenho andado na minha vida, sabes? Tenho andado a fazer as minhas coisas, metida nos meus projetos. O Rui também não achava grande piada quando eu ia aos chás, achava que eu vinha diferente e discutiamos mais vezes. Desde que eu deixei de ir as coisas andam mais calmas. Como uma lua mel. E nós os dois quando estamos só os dois entendemo-nos muito bem.
J: Ele passa muito tempo em casa?
M: Oh nem por isso, sabes que com o trabalho no hospital e na clínica e mais as reuniões do partido ele anda sempre de um lado para o outro. O Rui é uma pessoa muito cheia de vida, com muitos amigos e como trabalha para nós os dois também trabalha a dobrar - não quer que me falte nada... Eu já lhe disse um par de vezes que as coisas me fazem menos falta que ele, mas ele é assim, não consegue imaginar que me possa faltar alguma coisa.
J: Então o que é que tens feito?
M: Vou tratando da casa, vou ao ginásio e faço voluntariado. E leio muito. É isso. Quando o Rui tem um tempinho vamos namorar e fazer o que ele quiser.
J: Márcia, já viste que te tornaste uma dondoca e que o Rui conseguiu eliminar quase tudo o resto da tua vida? Que quase nem sequer tens amigos teus e já não te dás com mais ninguém?
(Márcia exalta-se e levanta a voz)
M: Não te admito isso, Joana. Não te admito mesmo.
(ouve-se a televisão na outra sala, onde está a dar futebol subir de volume também)
M: Não tens o direito de vir a minha casa e dizer essas coisas, insultar-me dessa maneira.
(A exaltação aumenta e também o volume da televisão)
M: Como é que tu te atreves a acusar o meu marido de uma coisa dessas?
Rui, da sala, grita um comando autoritário:
"Cala-te!"
quinta-feira, julho 19, 2012
As cidades
As cidades são só aglomerados de gente. Onde quer que vamos e qualquer que seja a natureza dos prédios, o que faz as cidades são as pessoas. Que caminham nas ruas, de cabeça erguida, no chão ou no iPhone. Que conversam nos cafés e nos bares e nos restaurantes e nas escadas dos prédios e nas esquinas. Que têm o coração partido, o coração a palpitar, o coração vazio.
Que sonham com as mesmas coisas sem o saberem. Que escalam as suas próprias montanhas que são todas diferentes, e que acham que são todas iguais.
Viajar não é ir para sítios diferentes, mas para pessoas diferentes. E se as pessoas que cruzam o nosso caminho e param estão destinadas pelas estrelas, então, no fundo, realmente, a cidade onde estamos é relativamente indiferente.
Porque nós somos o que somos. Não é porque dormimos numa garagem, que de repente nos tornamos carros. Porque não é essa a nossa natureza.
Só porque estamos numa cidade diferente, a nossa vida não é diferente, embora possa até ter um aspeto e contornos um pouco distintos. Nós moldamo-nos às cidades - mas as cidades também se moldam a nós.
E invariavelmente, depois de um periodo de deslumbramento, as cidades dão-nos o mesmo em todo o lado: pessoas boas ou pessoas más, amarguras ou contentamentos, sucesso, ilusão, aventura, mais uma racha no coração, o coração um pouco mais cheio. Pobreza ou riqueza. Isolamento ou ágora.
A vida que levamos é cá dentro de nós, filtra o que as cidades nos dão.
Mas mudar de cidade pode ser bom. Da mesma forma que mudar de namorado pode ser positivo. Porque, às vezes, há cidades que pelas suas características não se coadunam com a nossa natureza ou exaltam coisas de nós que preferíamos ver diminuídas. E por outro lado, pode haver outras que nos dão a oportunidade de crescer e a liberdade e o incentivo para sermos quem realmente queremos ser.
E é quando percebemos que a cidade em que estamos, a pessoa com quem nos relacionamos, nos ajuda a sermos uma pessoa de quem gostamos mais, exalta as qualidades que almejamos, nos incentiva a fazer coisas novas e a crescer, que percebemos que estamos em casa.
E por isso, é relativamente indiferente a cidade em que estamos, no mundo.
Exceto se estivermos em casa.
"E é sempre a primeira vez / em cada regresso a casa / rever-te nessa altivez / de milhafre ferido na asa"
Unless we
are home.
Que sonham com as mesmas coisas sem o saberem. Que escalam as suas próprias montanhas que são todas diferentes, e que acham que são todas iguais.
Viajar não é ir para sítios diferentes, mas para pessoas diferentes. E se as pessoas que cruzam o nosso caminho e param estão destinadas pelas estrelas, então, no fundo, realmente, a cidade onde estamos é relativamente indiferente.
Porque nós somos o que somos. Não é porque dormimos numa garagem, que de repente nos tornamos carros. Porque não é essa a nossa natureza.
Só porque estamos numa cidade diferente, a nossa vida não é diferente, embora possa até ter um aspeto e contornos um pouco distintos. Nós moldamo-nos às cidades - mas as cidades também se moldam a nós.
E invariavelmente, depois de um periodo de deslumbramento, as cidades dão-nos o mesmo em todo o lado: pessoas boas ou pessoas más, amarguras ou contentamentos, sucesso, ilusão, aventura, mais uma racha no coração, o coração um pouco mais cheio. Pobreza ou riqueza. Isolamento ou ágora.
A vida que levamos é cá dentro de nós, filtra o que as cidades nos dão.
Mas mudar de cidade pode ser bom. Da mesma forma que mudar de namorado pode ser positivo. Porque, às vezes, há cidades que pelas suas características não se coadunam com a nossa natureza ou exaltam coisas de nós que preferíamos ver diminuídas. E por outro lado, pode haver outras que nos dão a oportunidade de crescer e a liberdade e o incentivo para sermos quem realmente queremos ser.
E é quando percebemos que a cidade em que estamos, a pessoa com quem nos relacionamos, nos ajuda a sermos uma pessoa de quem gostamos mais, exalta as qualidades que almejamos, nos incentiva a fazer coisas novas e a crescer, que percebemos que estamos em casa.
E por isso, é relativamente indiferente a cidade em que estamos, no mundo.
Exceto se estivermos em casa.
"E é sempre a primeira vez / em cada regresso a casa / rever-te nessa altivez / de milhafre ferido na asa"
Home
Cities are only clusters of people.
Wherever we go and whatever the nature of the buildings, the essence of a city is
the people who live there. Who walk the streets, with their heads held high,
facing the ground or the iPhone. Who talk to others in cafes, and bars, and
restaurants, and stairs, and corners. Who have broken hearts, beating hearts, racing
hearts, empty hearts.
Who dream about the
same things and are unaware of it. Who climb their own mountains, which are all
different, but they think are all the
same.
Traveling is not about
going to different places; it’s
about going to different people. And
if the people who cross our path and stop are somehow destined by the stars,
then, actually, really, the city where we are is relatively indifferent.
Because we are
what we are.
Just
because you sleep in a
garage, that does not make you a car.
Because that is not your nature.
Just because we are in a different city, our lives aren’t
really different, although they may look
and feel differently. We are shaped by the cities we live in – but the cities
we live in are also shaped by us.
And invariably,
after a period of wonder, cities give us pretty
much the same everywhere: good people or bad people, bitterness or sweetness,
success, deception, adventure, another crack in the heart, the heart a little
fuller. Poverty or wealth. Isolation or crowd.
The life we lead
is inside of us. It filters what cities give us.
But it can be
good to move from a city, in the same way that it can be important to move on
from someone. Because sometimes, there are cities whose characteristics are not
consistent with our own nature, or that bring out things in us we would rather
see diminished. Some others, on the other hand, might give us the opportunity
to grow and the freedom and encouragement to be who we really want to be.
And it is when we
realize that the city we are in - the people with whom we build relationships -
help us be a person we like better, bringing
out the qualities we so desire, encouraging us to do new things and reach
higher, that we realize that we are home.
And so, it is relatively indifferent what in the world is the city where we are
in.
terça-feira, julho 03, 2012
Zeca
Os caracóis dourados do cabelo de Zeca, um miúdo magrito de 6 anos, parecem molas que saltitam na sua cabeça feliz, enquanto ele corre da maneira livre e desgovernada que os putos traquinas fazem.
Zeca quer experimentar tudo, viver tudo e conquistar tudo. Gosta de chocar os adultos com as perguntas que faz e as coisas que diz.
"Tu és uma gordalhufa. Tens um cu gigante." - diz, esticando os braços para dar ênfase às suas já expressivas palavras - "Chega o teu cu para lá que me vais esmagar com o teu cu, ó gordalhufa." - diz ele à prima que o irrita porque se quer sentar ao seu lado, no banco que ele queria ocupar sozinho.
As coisas que diz são ácidas, mas nunca amargas. Saem-lhe puras e inconsequentes, fruto da sede com que Zeca vive o mundo e a vida.
"A tua pila é grande? Qual é o tamanho da tua pila?" - pergunta ao primo mais velho mirando-o de cima a baixo, em avaliação.
Os pais ficam aflitos e tentam reagir com calma, explicando que esse é o tipo de coisas que não se pergunta.
O Zeca não percebe porquê.
"Porquê? Ele tem vergonha da pila dele? Porque é pequenina? Assim, mais pequenina que o meu dedo mindinho? A pila dele é mais pequenina que a de um bebé? E ele não lhe consegue segurar nem para fazer xixi?"
Faz as perguntas ininterruptamente, sem esperar resposta, e depois passa o resto do dia a falar do primo mais velho e de como ele tem uma pila pequenina e vergonha da pila pequenina. Confabula sozinho e faz troça do primo, diz que ele não tem namorada porque não quer que ela lhe veja a pila pequenina.
A seguir diz que queria comer o bolo todo, se o deixassem, mas não chega a conseguir acabar a primeira fatia. Mete-se com os tios mais brincalhões e provoca-os dizendo mal do clube de futebol deles, se não forem o seu, ou picando-os com tiradas a dizer que eles cheiram mal.
Usa os insultos mais fortes que a sua inocente mente de criança consegue conceber para os provocar. Mas é tão transparente no seu objetivo, que o máximo que consegue é suscitar um sorriso e um desafio.
"Cheiras a cuecas sujas, ó cabeça de cocó!"
E da boca do Zeca saem sem espinhas as verdades que ninguém tem coragem de dizer, como quando foi ele o primeiro a tirar da cartola que o tio divorciado tinha uma namorada nova, a "amiga" que aparecia com ele de vez em quando - coisa que todos sussurravam, mas ninguém se atrevia a pronunciar.
Apontou-lhes o dedo, disse que eram namorados e mandou-os dar um beijo na boca. Um ataque indefensável, por parte de alguém que tenha mais de 13 anos, perante uma verdade tão óbvia saída da boca de uma criança tão pequena.
O Zeca diz as coisas politicamente incorretas que fazem as delícias de todos os que não estão envolvidos. que se repreendem na hora e que depois se contam à socapa da criança, sussurradas e gargalhadas.
No mesmo dia em que a família dizia a Arminda que a cor de cabelo nova lhe ficava muito bem, Zeca surge do nada, aponta para as raízes do cabelo da rapariga - que eram a única parte da cabeleira que tinha conseguido absorver adequadamente uma cor muito mais clara que a sua cor natural - e pergunta com sinceridade:
"Prima, porque é que só pintaste esta parte do cabelo?"
O mundo de Zeca é temperado de sabores fortes e emoções intensas, e no entanto, não é um miudo estragado de mimo. É só um pequeno aventureiro destemido, que nas suas brincadeiras é mais famoso e melhor jogador que o Cristiano Ronaldo, é o rapaz mais fixe do mundo e é tão alto, bonito e forte como aos seus olhos só é o pai.
A sua valentia de vento é cómica perante o seu aspeto franzino. A sua picardia é facilmente suspendida com um tom de voz mais sério e uma justificação. Já com seis anos, Zeca sabe que nem para ganhar numa caçadinha qualquer se atravessa a rua sem dar a mão a um adulto. E se a mãe manda fazer alguma coisa com tom de voz sério é porque é mesmo para fazer. mesmo que seja contrariado e a reclamar.
A acutilância dos seus comentários selvagens é igualada pela doçura distraída com que faz declarações de amor desmedido e de importância avassaladora às pessoas da sua vida.
Zeca é o que é, sem aditivos nem conservantes. Sem intensificadores de sabor ou reguladores de acidez. Sem corantes.
E a forma como desafia todos e tem o coração perto da boca é algo que os adultos da família gostam de preservar só mais um bocadinho, como quem atrasa o despertador de um sonho bom mais 5 minutos.
Porque todos sabem também que o mundo não é para sempre o ambiente seguro da família e dos amigos de infância, e mais que nada querem que ele esteja bem e protegido.
E que ele não vai ser para sempre um miúdo engraçado a quem se perdoa tudo.
Que mais cedo ou mais tarde, Zeca terá de aprender o que se pode (e não) dizer em contexto social, das perguntas que se podem e não podem fazer em público. Das preferências e desagrados que se podem livremente expressar, das opiniões de que se pode fazer bandeira. Para seu próprio bem.
Até lá, a família vai guardando como relíquias douradas as histórias das pequenas façanhas do puto esperto, no baú das memórias divertidas com que anos mais tarde se vão entreter os convivas, para delícia de todos e embaraço generalizado do Dr. José.
Zeca quer experimentar tudo, viver tudo e conquistar tudo. Gosta de chocar os adultos com as perguntas que faz e as coisas que diz.
"Tu és uma gordalhufa. Tens um cu gigante." - diz, esticando os braços para dar ênfase às suas já expressivas palavras - "Chega o teu cu para lá que me vais esmagar com o teu cu, ó gordalhufa." - diz ele à prima que o irrita porque se quer sentar ao seu lado, no banco que ele queria ocupar sozinho.
As coisas que diz são ácidas, mas nunca amargas. Saem-lhe puras e inconsequentes, fruto da sede com que Zeca vive o mundo e a vida.
"A tua pila é grande? Qual é o tamanho da tua pila?" - pergunta ao primo mais velho mirando-o de cima a baixo, em avaliação.
Os pais ficam aflitos e tentam reagir com calma, explicando que esse é o tipo de coisas que não se pergunta.
O Zeca não percebe porquê.
"Porquê? Ele tem vergonha da pila dele? Porque é pequenina? Assim, mais pequenina que o meu dedo mindinho? A pila dele é mais pequenina que a de um bebé? E ele não lhe consegue segurar nem para fazer xixi?"
Faz as perguntas ininterruptamente, sem esperar resposta, e depois passa o resto do dia a falar do primo mais velho e de como ele tem uma pila pequenina e vergonha da pila pequenina. Confabula sozinho e faz troça do primo, diz que ele não tem namorada porque não quer que ela lhe veja a pila pequenina.
A seguir diz que queria comer o bolo todo, se o deixassem, mas não chega a conseguir acabar a primeira fatia. Mete-se com os tios mais brincalhões e provoca-os dizendo mal do clube de futebol deles, se não forem o seu, ou picando-os com tiradas a dizer que eles cheiram mal.
Usa os insultos mais fortes que a sua inocente mente de criança consegue conceber para os provocar. Mas é tão transparente no seu objetivo, que o máximo que consegue é suscitar um sorriso e um desafio.
"Cheiras a cuecas sujas, ó cabeça de cocó!"
E da boca do Zeca saem sem espinhas as verdades que ninguém tem coragem de dizer, como quando foi ele o primeiro a tirar da cartola que o tio divorciado tinha uma namorada nova, a "amiga" que aparecia com ele de vez em quando - coisa que todos sussurravam, mas ninguém se atrevia a pronunciar.
Apontou-lhes o dedo, disse que eram namorados e mandou-os dar um beijo na boca. Um ataque indefensável, por parte de alguém que tenha mais de 13 anos, perante uma verdade tão óbvia saída da boca de uma criança tão pequena.
O Zeca diz as coisas politicamente incorretas que fazem as delícias de todos os que não estão envolvidos. que se repreendem na hora e que depois se contam à socapa da criança, sussurradas e gargalhadas.
No mesmo dia em que a família dizia a Arminda que a cor de cabelo nova lhe ficava muito bem, Zeca surge do nada, aponta para as raízes do cabelo da rapariga - que eram a única parte da cabeleira que tinha conseguido absorver adequadamente uma cor muito mais clara que a sua cor natural - e pergunta com sinceridade:
"Prima, porque é que só pintaste esta parte do cabelo?"
O mundo de Zeca é temperado de sabores fortes e emoções intensas, e no entanto, não é um miudo estragado de mimo. É só um pequeno aventureiro destemido, que nas suas brincadeiras é mais famoso e melhor jogador que o Cristiano Ronaldo, é o rapaz mais fixe do mundo e é tão alto, bonito e forte como aos seus olhos só é o pai.
A sua valentia de vento é cómica perante o seu aspeto franzino. A sua picardia é facilmente suspendida com um tom de voz mais sério e uma justificação. Já com seis anos, Zeca sabe que nem para ganhar numa caçadinha qualquer se atravessa a rua sem dar a mão a um adulto. E se a mãe manda fazer alguma coisa com tom de voz sério é porque é mesmo para fazer. mesmo que seja contrariado e a reclamar.
A acutilância dos seus comentários selvagens é igualada pela doçura distraída com que faz declarações de amor desmedido e de importância avassaladora às pessoas da sua vida.
Zeca é o que é, sem aditivos nem conservantes. Sem intensificadores de sabor ou reguladores de acidez. Sem corantes.
E a forma como desafia todos e tem o coração perto da boca é algo que os adultos da família gostam de preservar só mais um bocadinho, como quem atrasa o despertador de um sonho bom mais 5 minutos.
Porque todos sabem também que o mundo não é para sempre o ambiente seguro da família e dos amigos de infância, e mais que nada querem que ele esteja bem e protegido.
E que ele não vai ser para sempre um miúdo engraçado a quem se perdoa tudo.
Que mais cedo ou mais tarde, Zeca terá de aprender o que se pode (e não) dizer em contexto social, das perguntas que se podem e não podem fazer em público. Das preferências e desagrados que se podem livremente expressar, das opiniões de que se pode fazer bandeira. Para seu próprio bem.
Até lá, a família vai guardando como relíquias douradas as histórias das pequenas façanhas do puto esperto, no baú das memórias divertidas com que anos mais tarde se vão entreter os convivas, para delícia de todos e embaraço generalizado do Dr. José.
domingo, julho 01, 2012
Márcia, shhhhh
À noite, o som das ondas a bater continua e impiedosamente nas rochas pode ser tão calmante como assustador.
É o som da inevitabilidade da vida, é o som daquilo que não podemos controlar e que é mais poderoso que nós.
A onda bate com força na rocha ou na costa e depois faz "shhhhhhh", como se pedisse desculpa ou silêncio.
Quando o mar não está agitado, quase só se ouve o "shhhhh" ritmado das ondas a recuar, progredindo na praia, se a maré estiver a encher, ou caminhando de volta para o mar alto quando a maré decresce, dançando para cá e para lá no planeta uma salsa devagar.
Pedindo silêncio à costa que erode lentamente em cada pancada de água, com que a seguir a acaricia e lhe pede perdão.
e silêncio.
Shhhhhhh.
A Márcia, de nada adiantava viver no último andar do prédio da linha costeira, com vista para o mar, com mais assoalhadas do que precisava, piano de cauda e empregada interna.
De nada servia ser a esposa modelo, e ir todos os dias ao ginásio. fazer voluntariado e cursos de arranjos florais em Serralves às quintas feiras de tarde. De nada serviam as surpresas que comprava ao marido com o cartão de crédito dele. De nada servia o curso superior em Filosofia e o bom gosto. Participar em chás de caridade no Sheraton da Boavista. Ser bem relacionada.
"O mar enrola na areia / Ninguém sabe o que ele diz / Bate na areia e desmaia / Porque se sente feliz"
E como o mar pode ser temperamental, também o marido de Márcia era imprevisível. A sua vingança contra os atos invisíveis, que ele concebia, imaginava ou inventava que Márcia tinha perpetrado, era cruel, calculada e mesquinha.
Não a marcava nunca.
E pedia-lhe desculpa muitas vezes. Outras vezes, já sabia que ela perdoava mesmo sem ele pedir, porque ela própria inventava justificações para o seu comportamento vil: o trabalho, o stress, o amor demais que sentia por ela e que o cegava e fazia perder a razão e o controlo.
A violência que o Dr. Rui exercia sobre Márcia era tão refinada como a própria Márcia e levara anos a atingir os níveis de perfeição com que a executava. Começara com pequenos reparos às suas ações e aparência, "para bem dela"; passou a críticas e escrutínios rigorosos acerca de todos os seus comportamentos e opções. Em vagas sistemáticas e ritmadas.
E uma vez que a auto-estima dela estava completamente dependente da aprovação do marido, o Dr. Rui assumiu o controlo total.
Como se ela se tivesse tornado no seu projeto privado, o seu bonsai de estimação, que ele modelaria a seu gosto. Cortando fora as partes que não interessavam.
Com o tempo, Márcia foi-se tornando mais e mais maleável, até fazer tudo o que ele queria.
Mas nessa altura já não chegava. Porque Rui tinha-se habituado a mandar e a fazer Márcia sacrificar-se. O seu "melhoramento" já não era o propósito das chantagens, manipulações e humilhações: era o meio com que alimentava o seu ego e a sua relação.
Modelava-a da mesma forma que o mar modela a costa, que conquista e engole se não se colocam paredões nas praias.
Fazendo o mesmo que o mar com as suas ondas. Batendo e pedindo silêncio de seguida. Magoando e pedindo perdão, no ritmo cíclico e intervalado das vagas.
Erodindo-a e invadindo-a progressivamente, de todas as vezes em que ela assumia a inevitabilidade dos factos e aceitava ficar calada.
É o som da inevitabilidade da vida, é o som daquilo que não podemos controlar e que é mais poderoso que nós.
A onda bate com força na rocha ou na costa e depois faz "shhhhhhh", como se pedisse desculpa ou silêncio.
Quando o mar não está agitado, quase só se ouve o "shhhhh" ritmado das ondas a recuar, progredindo na praia, se a maré estiver a encher, ou caminhando de volta para o mar alto quando a maré decresce, dançando para cá e para lá no planeta uma salsa devagar.
Pedindo silêncio à costa que erode lentamente em cada pancada de água, com que a seguir a acaricia e lhe pede perdão.
e silêncio.
Shhhhhhh.
A Márcia, de nada adiantava viver no último andar do prédio da linha costeira, com vista para o mar, com mais assoalhadas do que precisava, piano de cauda e empregada interna.
De nada servia ser a esposa modelo, e ir todos os dias ao ginásio. fazer voluntariado e cursos de arranjos florais em Serralves às quintas feiras de tarde. De nada serviam as surpresas que comprava ao marido com o cartão de crédito dele. De nada servia o curso superior em Filosofia e o bom gosto. Participar em chás de caridade no Sheraton da Boavista. Ser bem relacionada.
"O mar enrola na areia / Ninguém sabe o que ele diz / Bate na areia e desmaia / Porque se sente feliz"
E como o mar pode ser temperamental, também o marido de Márcia era imprevisível. A sua vingança contra os atos invisíveis, que ele concebia, imaginava ou inventava que Márcia tinha perpetrado, era cruel, calculada e mesquinha.
Não a marcava nunca.
E pedia-lhe desculpa muitas vezes. Outras vezes, já sabia que ela perdoava mesmo sem ele pedir, porque ela própria inventava justificações para o seu comportamento vil: o trabalho, o stress, o amor demais que sentia por ela e que o cegava e fazia perder a razão e o controlo.
A violência que o Dr. Rui exercia sobre Márcia era tão refinada como a própria Márcia e levara anos a atingir os níveis de perfeição com que a executava. Começara com pequenos reparos às suas ações e aparência, "para bem dela"; passou a críticas e escrutínios rigorosos acerca de todos os seus comportamentos e opções. Em vagas sistemáticas e ritmadas.
E uma vez que a auto-estima dela estava completamente dependente da aprovação do marido, o Dr. Rui assumiu o controlo total.
Como se ela se tivesse tornado no seu projeto privado, o seu bonsai de estimação, que ele modelaria a seu gosto. Cortando fora as partes que não interessavam.
Com o tempo, Márcia foi-se tornando mais e mais maleável, até fazer tudo o que ele queria.
Mas nessa altura já não chegava. Porque Rui tinha-se habituado a mandar e a fazer Márcia sacrificar-se. O seu "melhoramento" já não era o propósito das chantagens, manipulações e humilhações: era o meio com que alimentava o seu ego e a sua relação.
Modelava-a da mesma forma que o mar modela a costa, que conquista e engole se não se colocam paredões nas praias.
Fazendo o mesmo que o mar com as suas ondas. Batendo e pedindo silêncio de seguida. Magoando e pedindo perdão, no ritmo cíclico e intervalado das vagas.
Erodindo-a e invadindo-a progressivamente, de todas as vezes em que ela assumia a inevitabilidade dos factos e aceitava ficar calada.
O Mar Enrola Na Areia
O mar enrola na areia
ninguém sabe o que ele diz
bate na areia e desmaia
porque se sente feliz
até o mar é casado - ai!
até o mar também tem mulher
é casado com areia - ai!
bate nela quando quer
até o mar é casado - ai!
até o mar tem filhinhos
e casado com areia - ai!
e seus filhos são os peixinhos
ó mar tu és um leão - ai!
a todos queres comer
não sei como os homens podem - ai!
as tuas ondas vencer
ó mar que te não derretes - ai!
navios que te não partes
ó mar que não cumpriste - ai!
o que comigo trataste
ouvi cantar a sereia - ai!
no meio daquele mar
tantos navios se perdem - ai!
ao som daquele cantar
até o peixe do mar- ai!
depenica na baleia
nunca vi homem solteiro - ai!
procurar a mulher feia
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