(guião)
Joana e Márcia estão na cozinha. A casa é claramente rica e bem situada, um apartamento na Foz. Ouve-se o mar ao fundo. E levemente o ruído de um jogo de futebol noutra divisão.
Joana e Márcia estão na cozinha. A casa é claramente rica e bem situada, um apartamento na Foz. Ouve-se o mar ao fundo. E levemente o ruído de um jogo de futebol noutra divisão.
A cozinha é grande e acolhedora.
Joana e Márcia conversam enquanto tomam um chá e comem biscoitos que talvez tenham sido feitos à mão, talvez tenham sido feitos por uma das duas, talvez tenham sido comprados. Têm bom aspeto: se foram elas que fizeram, fazem muito bem; se compraram, foram caros.
A loiça não é particularmente rococó. É Vista Alegre que se usa no dia a dia ou as chávenas boas que a avó deixou a Márcia.
Usam coisas boas e em pouca quantidade, com displicência natural de quem vive muito bem há muito tempo.
Márcia tem uma nódoa negra no braço que está mais ou menos tapada pela blusa.
Joana: Mas isto já aconteceu antes?
Márcia: Não. Achas? Isto foi uma coisa completamente extemporânea. Ele não sabe a força que tem.
J: Espera. Mas... como é que isso aconteceu?
M: Então, foi para eu não cair. Ele agarrou-me o braço e fez força a mais. Sabes que ele fica tolo quando imagina sequer que algo de mal me pode acontecer.
(pausa. Maria está incrédula, mas não quer confrontar nem intimidar a amiga)
M: Vá. Eu sei o que é que estás a pensar. Mas não é nada disso, não é nada disso mesmo. O Rui gosta mesmo muito de mim, fica completamente perdido quando nos zangamos, não tens noção. E tu sabes que ele teve uma vida lixada antes de me conhecer. Pronto. E quando pensa que me pode perder, fica um bocado descontrolado. Mas está tudo bem. (Márcia sorri, apaziguando a amiga)
(Joana continua sem saber o que dizer)
M: Queres mais chá?
J: Sim, se faz favor. O que é que estás a pôr nisso? Não queres ficar com uma marca aí...
M: Umas pomadas que tinha por aqui. Sabes que eu sou uma desastrada e ando sempre a fazer negras. Daqui a uns dias isto já está bom, nem se nota nada.
J: eu sei que ele é teu marido, mas estas coisas deixam-me preocupada...
Márcia não gosta da afirmação/insinuação e reage de forma muito levemente agressiva, mas sem cruzar o limite da confrontação aberta
M: Estas coisas? Mas que coisas?
J: Pronto, não te zangues.
M: Eu não estou zangada, Joaninha. Não estou é a perceber o que é que queres dizer com "estas coisas deixam-me preocupada". Até parece que há "coisas" para te preocupares. Não gosto desse tipo de comentários. Eu e o Rui somos um casal super feliz e damo-nos super bem. Temos as nossas coisas como todos os casais, mas ele nunca me faltou ao respeito. E tu sabes que ele faz tudo por mim. Está sempre preocupado se me falta alguma coisa, ajudou-me quando eu estava muito deprimida no trabalho e até foi ele que me disse que eu não precisava de trabalhar. O Rui pode ter muitos defeitos mas ninguém pode dizer que ele não me ama. E isso é o mais importante, ou não?
J: sim, claro... Não te queria ofender, Márcia, de todo. Eu só quero é que tu estejas bem, ok?
Márcia tira um biscoito e sentindo que recuperou o controlo da situação, continua
M: És uma querida. Mas eu estou bem, sim. Tu sabes que eu amo o Rui mais que tudo na vida. E ele faz-me feliz. Tem aquele feitiozinho dele, mas ama-me muito e cuida muito de mim.
J: A verdade é que ele não pode ver outro homem a olhar para ti.
Márcia sorri cumplicemente e diz vitoriosa e inchada de orgulho:
M: Fica louco. Tem logo que vir por o braço à minha volta, marcar território. Ele acha que todos os homens querem ficar comigo. E Deus me livre se me vê a conversar com alguém, acha logo que o fulano vai ficar obcecado, que me vai perseguir. Imagina tu que no último jantar do Lions a que fomos eu tive de mudar de vestido mesmo antes de sair. Fez uma cena porque achou que o vestido era muito decotado, que os outros iam ficar todos a olhar para mim, que - imagina tu - "o que é dele" ("o que é dele", vê lá tu que querido!) "o que é dele não é para os outros verem", que eu sou só dele. E fez finca pé, lá tive de ir trocar de vestido. Aquele homem quando mete uma coisa na cabeça é assim, tem que ser e tem que ser mesmo.
J: de que signo é que ele é?
M: Touro. Não se nota? Teimoso, ciumento e possessivo. parece que lhe vão tirar o chão quando acha que pode ficar sem mim.
J: Mas ele acha mesmo que te pode perder assim?
M: tens de compreender: o Rui vem de uma família em que os pais discutiam muito. Levou muita porrada quando era miúdo, sem razão nenhuma. Não contes a ninguém, mas o pai tinha muitas amantes e discutia muito com a mãe, batia-lhe e coisas afins. E a mãe metia-se nos copos. Ele era o filho mais velho e depois a irmã morreu naquele acidente esquisito. Olha, eu nem sei como é que ele saiu tão bem da situação. Ele subiu a pulso, sabes Joana. conseguiu bolsas de estudo e depois de ter sido retirado à família começou a trabalhar porque o sonho dele era ser médico. Ele não teve uma vida boa como nós. E mesmo assim, conseguiu chegar onde está. É um grande homem.
J: está bem, mas ele também devia saber a mulher que tem. Tu não és propriamente uma Lucrécia Bórgia. Eu já nem me lembro de te ver falar com outro homem.
M: Oh, sabes como é que é. Quando cresces num ambiente assim, tens sempre dúvidas sobre o que é que é e o que é que não é. Duvidas muito mais das coisas que tens e das relações que constróis. Nunca tens a certeza do amor da outra pessoa, tens sempre de estar a validar essa ideia.
J: Olha que mesmo não exercendo, as cadeiras de psicologia não te esqueceram.
M: eu tenho lido muito sobre isto, sabes? O Rui precisa muito de ajuda e eu acho que ele está muito melhor agora. Já não faz as cenas de ciumes que fazia. Isto é quase uma vergonha, mas vou-te contar que houve uma altura em que ele me ia ver telemóvel e o email. e o facebook. enfim. foi por isso que acabei com o facebook: ele ficava tão inseguro e alterado quando eu tinha amigos homens - Joana eram só conhecidos, só pessoas dos meus voluntariados e projetos de caridade - que eu decidi acabar com o facebook. Também não preciso daquilo para nada. É só para a cuscuvilhice e eu estou muito bem aqui no meu cantinho.
J: está bem. Mas podias aparecer mais, que nós não te temos visto e temos sentido a tua falta. Já nem vais à quintas-feiras aos chás a Seralves...
M: tenho andado na minha vida, sabes? Tenho andado a fazer as minhas coisas, metida nos meus projetos. O Rui também não achava grande piada quando eu ia aos chás, achava que eu vinha diferente e discutiamos mais vezes. Desde que eu deixei de ir as coisas andam mais calmas. Como uma lua mel. E nós os dois quando estamos só os dois entendemo-nos muito bem.
J: Ele passa muito tempo em casa?
M: Oh nem por isso, sabes que com o trabalho no hospital e na clínica e mais as reuniões do partido ele anda sempre de um lado para o outro. O Rui é uma pessoa muito cheia de vida, com muitos amigos e como trabalha para nós os dois também trabalha a dobrar - não quer que me falte nada... Eu já lhe disse um par de vezes que as coisas me fazem menos falta que ele, mas ele é assim, não consegue imaginar que me possa faltar alguma coisa.
J: Então o que é que tens feito?
M: Vou tratando da casa, vou ao ginásio e faço voluntariado. E leio muito. É isso. Quando o Rui tem um tempinho vamos namorar e fazer o que ele quiser.
J: Márcia, já viste que te tornaste uma dondoca e que o Rui conseguiu eliminar quase tudo o resto da tua vida? Que quase nem sequer tens amigos teus e já não te dás com mais ninguém?
(Márcia exalta-se e levanta a voz)
M: Não te admito isso, Joana. Não te admito mesmo.
(ouve-se a televisão na outra sala, onde está a dar futebol subir de volume também)
M: Não tens o direito de vir a minha casa e dizer essas coisas, insultar-me dessa maneira.
(A exaltação aumenta e também o volume da televisão)
M: Como é que tu te atreves a acusar o meu marido de uma coisa dessas?
Rui, da sala, grita um comando autoritário:
"Cala-te!"
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