Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".
Sorria com esta lembrança. Quando a conheceu, ela estava a dizer os significados dos nomes numa roda de curiosos.
-Tiago significa "o maior". Ana? "Agraciada por Deus". César? "Imperador", é daí que deriva a palavra Kaiser e Czar. Vitor? "Vencedor".
- Chamo-me Paulo. O que é que isso significa?
Silêncio.
- És Paulo, quê?
- Só Paulo.
A voz dela diminuiu um pouco e com algum embaraço, respondeu:
- Paulo significa "pouco", em latim. Ou "pequeno".
Ela, a mulher bonita e interessante ficou com ar de pena e sentimento de culpa, perante o "Pequeno", "Pouco" Paulo. E o "Pouco" "Pequeno" Paulo que era um homem relativamente baixo e definitivamente feio aproveitou a deixa e disse-lhe que a única forma que ela tinha de o compensar daquele embaraço era jantar com ele.
Ana disse que sim no momento, por pura compaixão. Paulo sabia, mas não fazia mal. O pior que poderia acontecer era passar um bom serão com uma mulher bonita; o melhor...
Combinou em casa dele para a sexta seguinte, 20 de Agosto, e foi ele que cozinhou o jantar.
Ana combinou com uma amiga que lhe ligasse para ela ter uma desculpa para se vir embora cedo. Paulo não fazia o género dela e ela não queria ser rude.
Paulo abriu um "Duas Quintas" maduro tinto especial e pô-lo a decantar na cozinha. Tostou pão no forno e escolheu dois ou três queijos. Fez de véspera mousse de chocolate com gengibre, pimenta rosa e menta, uma especialidade sua. O chocolate ficava-lhe sempre com o ar banal de uma mousse de chocolate, de castanho rico e cremoso, mas as especiarias adicionavam-lhe um interesse diferente e faziam com que não ficasse enjoativo. Era uma surpresa que proporcionava aos convidados que olhavam céticos para os grãos de pimenta rosa e folhas de menta com que decorava o prato, encorajando-os a trincar tudo em conjunto.
Quando Ana chegou, pontualmente, ele estava a acabar a comida. Convidou-a a entrar e a fazer-lhe companhia na cozinha enquanto acabava o jantar.
Ana sentou-se numa cadeira na cozinha grande a conversar e a provar o vinho e o queijo, enquanto Paulo acabava o molho de carne picada e couve roxa para a massa que preparava.
A conversa começou distraída e descontraída. Paulo era feio, mas não era burro. Enquanto temperava e dava a provar a comida a Ana, enquanto agitava a massa para ela com as suas mãos experientes e lhe explicava os seus segredos de exímio cozinheiro, foi entrando aos poucos na sua alma, abrindo a porta do seu coração.
Antes de Ana dar por ela, estava completamente sob o feitiço de Paulo por quem não teria dado nada. e que, como frequentemente acontece, por detrás da sua aparência pouco atraente era um homem culto, interessante e charmoso.
A mesa estava posta com elegância e simplicidade. Um aparato despretencioso e intimista, criando um ambiente naquela fronteira difícil de conseguir, entre o interesse declarado e uma dúvida de casualidade simpática. No ponto perfeito entre o charme que é assim naturalmente ou a corte deliberada mas discreta. Um "quero-te, se tu valeres a pena" impossível de resistir.
O vinho era muito bom. Não chegaram à mousse.
Durante os quatro anos que estiveram juntos, jantavam sempre a 20 de Agosto com o mesmo menu. O ritual mudou ligeiramente; Ana passou a estar encarregue de escolher o vinho e os queijos que mudavam de ano para ano; na véspera, Paulo continuava a fazer a mousse, mas Ana lia para ele, enquanto ele derretia o chocolate espesso e lustroso e o perfumava de raspas de gengibre fresco e pimenta rosa moída, enquanto batia os ovos da forma mais silenciosa possível para poder continuar a ouvir narração de "O cemitério de pianos", "Sputnik, meu amor"ou "A cabeça cortada de Damasceno Monteiro" na voz ritmada e quente da sua amada.
No dia do jantar, Ana continuava a sentar-se na mesma cadeira da cozinha de copo na mão, conversando ou lendo para Paulo no ritual intimista de quem partilha ao vivo a emoção de uma história que se desenrola em tempo real e a criação de uma refeição perfeita.
Jantavam, conversavam e dançavam ao som das músicas intimistas de que gostavam.
Sentavam-se sempre nos mesmos sítios como se quisessem preservar aqueles momentos perfeitos em que se tinham apaixonado. Ana continuava a vestir o mesmo vestido desinteressante que tinha levado para não chamar a atenção do homem que achava que não queria cativar. Mudara a lingerie.
E aquele serão, que se repetia geminado de ano para ano, era sempre memorável, com o bom vinho e a leve embriaguez, a massa que ficava sempre perfeita com o seu ar roxo inconvencional e o queijo derretido, a mão de Ana pousada em cima da mesa e a mousse de chocolate depois da dança lenta - e da sobremesa.
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