domingo, setembro 09, 2012

Clara

Clara era uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.

Gostava de estar no meio da multidão, onde somos todos ninguém e somos todos iguais.

A multidão é uma massa de gente anónima, cada uma protagonista do seu próprio enredo, que se junta num determinado momento do tempo e do espaço e se torna numa só.

A comunhão que se vive numa multidão é uma experiência de que nem sempre nos apercebemos. A multidão tem correntes e força e ânimo. Não há nada mais perigoso que uma multidão em pânico e nada mais inconsciente que uma multidão absorta.

Cada pessoa na multidão pode estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo. Apesar de nos sabermos rodeados de pessoas, no meio de uma multidão podemos ter a sensação  - que pode ser enganadora - de que temos privacidade. Uma pessoa provavelmente não contará os segredos da sua vida íntima a outra num elevador onde mais duas pessoas estão presentes, mas facilmente revela detalhes embaraçosos no caminho para algum sítio no meio da rua. As mesmas duas pessoas que estavam no elevador podem estar a ouvir. Mas a multidão torna-as invisíveis e torna-as anónimas.

E por isso nos sentimos tão surpreendidos quando estamos no meio de uma multidão e encontramos alguém conhecido. Como se fosse improvável, perguntamos: "olha, tu aqui! que andas por aqui a fazer?". Como se fosse inverosímil encontrar alguém que conheçamos no meio de muita gente.

Clara tinha decidido que queria ser feliz, só não sabia como. Era uma mulher bonita, inteligente, sonhadora e invulgar. Um pássaro. Indisponível para sacrificar as suas asas por qualquer convenção social ou desejabilidade familiar. De olhos abertos. Com vontade de viver. Por vezes perdida. Por vezes partida. Por vezes com força. sempre capaz de se refazer. sempre capaz de voar. mesmo que baixinho.

E gostava da multidão. De estar no meio da mole humana. De ver as pessoas que caminham depressa para os empregos, para os encontros, para o autocarro. As pessoas que caminham devagar de câmara fotográfica em punho, numa conversa gostosa, de mão dada, de olhos no chão.

Gostava de se lembrar que era pequena perante a multidão. Que na vida da senhora que ralhava ao filho por não lhe dar a mão ao atravessar a rua, Clara era uma figurante. Na vida da senhora da sua padaria diária, uma atriz muito secundária. Fazia-lhe bem lembrar-se que era pequena para se lembrar que os seus problemas eram também pequenos.

Na vida de Clara, a multidão não era um mero cenário, era uma atriz secundária importante.

E a multidão, sempre boa conselheira, permitia-a ver o miolo da vida dos outros. lembrava-a que, no fundo, somos todos iguais, temos todos problemas, inseguranças, dores, aspirações, sonhos, vontades. Que até podem ter configurações diferentes mas que no fim redundam na mesma essência.

Que não é apenas como mero conceito abstrato. ou só por pertencermos à mesma espécie animal. Fazemos mesmo, de forma quase palpável, parte da mesma vida, da mesma humanidade. somos únicos mas nunca estamos sós.

Compreender a multidão, escutar a sua respiração, abraçar a batida do seu coração, sentir-lhe o pulso, ajudava-a  manter-se fiel a sim mesma, a não comprometer os seus princípios, a encontrar o norte da sua vida.

A multidão, sempre diferente e sempre igual, lembrava-a que na sua condição humana não devia nada a ninguém, a não ser uma predisposição de boa-vontade e compaixão. Que não era obrigada a tomar decisões que iam contra si mesma. Porque tudo passa e a multidão que é sempre a mesma, é sempre diferente. e quando uma pessoa sai, entra outra. ou outras. ou não entra ninguém. e não faz mal.

Que o que faz mal é a infelicidade que nos infligimos quando vamos contra nós mesmos porque nos esquecemos que estamos todos no meio da mesma massa e que o nosso impacto no mundo é limitado. que a nossa vida, mais que nada é nossa. independentemente de tudo o que nos queiram impingir. Que as nossas escolhas não servem para ir ao encontro das vontades dos outros, expressas por eles ou imaginadas por nós, mas para ir ao encontro daquilo que nos dá sentido. daquilo que nós somos. Porque somos nós e não os outros que vivemos com elas todos os dias.

A multidão lembrava-a que ela podia ser quem queria, porque nunca ia ficar sozinha. A multidão ia sempre continuar ali. E o mundo continuaria a girar, sempre com coisas para serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas. para onde quer que ela olhasse. Talvez melhores, talvez piores. Mas sempre dignas de serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas.

E por isso, independentemente da forma como ela sentisse a realidade, que por vezes era dura, por vezes a fazia sofrer e nem sempre fazia justiça aos desejos de felicidade constante que lhe direcionavam algumas pessoas, a multidão lembrava a Clara que ela era quem era. E que era imune ao medo da solidão: a multidão nunca ia deixar de existir, e de a incluir sempre que ela desejasse.

E isso fazia em grande parte com que Clara fosse uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.



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