sexta-feira, maio 11, 2012

A Aldeia

O tempo ficava preguiçoso naquela aldeia em Trás-os-Montes.
A aldeia vivia num estado de permanente letargia, entre os velhos de bengala e chapéu de feltro ou boina que se encontravam nos bancos de pedra, espalhados um pouco por todo o lado. Os cães dormitavam aos seus pés, indiferentes às moscas frenéticas e zombeteiras.
De vez em quando, uma vaca vagarosa passava pelas ruas de terra batida para ir beber ao tanque no centro da aldeia. O passo da vaca era lento e certo, como se fosse o eco dos relógios que ficavam perdidos no marasmo.
Os velhos encontravam-se para jogar cartas e damas, para beber bagaço e café, para conversar sobre coisa nenhuma; para ficarem parados a olhar para o nada, naquele estado de sábia quietude que é apenas dos velhos, agarrados às suas bengalas. As velhas encontravam-se nos alpendres e nas cozinhas, discípulas de um tempo em que uma mulher séria não entra num café. Conversavam entre o tricot e a malha que faziam sem precisar de usar as vistas gastas. Contavam as novidades e as cusquices, debatendo a moral e os costumes da vizinhança, da juventude de hoje, das personagens das novelas. Pregando sem púlpito e fazendo correr a informação como se fosse o sangue da aldeia entre os seus membros.
E sempre que morria um velho, e sempre que um jovem se ia embora, a aldeia ficava mais manca, mais incapaz de andar, mais incapacitada.
O próprio tempo parecia definhar na aldeia, demorando-se a passar pela escola vazia e desactivada há mais de 25 anos, mas ainda intacta, com as carteiras preservadas e os livros que a última professora deixou, com os cadernos dos meninos. Como se fossem só de férias e fossem voltar dentro de pouco tempo. Os globos terrestres, as figuras geométricas de madeira, os quadros com o abecedário e o mapa-mundi. O crucifixo na parede. Pedaços gastos de giz na borda do quadro preto.
A aldeia percebeu quando a Escola Primária fechou que era o princípio do fim, mas guardaram todos a esperança secreta, recusando-se a aceitar que a Escola não voltaria a abrir. Guardavam a escola como uma velha solteirona guarda o enxoval, que reserva por estrear na arca de cânfora, para não se estragar. À espera de um dia que cada vez tem menos vontade de chegar e que depois não aparece. Vigiavam a escola e certificavam-se que nada de mal lhe acontecia, como se fosse ela mesma uma das crianças da aldeia, cada vez mais raras.
Um quarto de século depois, apenas o pó e as teias de aranha tinham mudado o rosto da escolinha. Não havia um vidro partido, uma telha levantada. Como se também a divina providência preservasse à sua maneira o edifício.
Ao lado da escola estava o casebre de latão do bêbedo da cidade, um homem azedo e malcriado. O latão era feio e tinha pintadas com tinta de um vermelho muito garrido, as palavras “Deus te dobre o que me desejas”.
O tempo sorria com a sabedoria simples e eficaz de Caninho, o bêbedo. Prosseguia, passando pelo parque infantil que a junta mandou construir, para que os netos estrangeiros da aldeia pudessem brincar em Agosto, o único mês em que o tempo ganhava ritmo e se apressava para voltar a França, a Espanha, à Suíça, à Alemanha.
No seu passeio vagaroso, o tempo parava no centro da aldeia, junto ao tanque grande de pedra, onde as vacas bebiam e onde as pessoas iam buscar água para lavar loiça e tomarem banho, no tempo em que as casas ainda não tinham canalização.
E no seu passeio, o tempo ficava indeciso sobre se devia ir em frente para a eira, pelo caminho ladeado por hortas tão velhas como a própria aldeia, onde as pessoas trabalhavam diariamente para comerem o que a terra dava e por causa das quais tantas rixas já tinham acontecido. Ou se devia ir para a esquerda para a “igreja nova” como lhe chamavam os velhos, construída nos tempos do PREC por um candidato à junta de freguesia que meteu uma cunha com o compadre que tinha no governo para a edificar com subsídios, enganando assim os habitantes da aldeia para o elegerem. E que depois arruinaria os cofres da junta.
Ou ainda, se deveria ir para a direita, rumo à fonte onde noutros tempos as moças encontravam os seus namorados às escondidas e tantas vezes se faziam mulheres.
O tempo ficava muitas vezes indeciso sobre o caminho que tomar e frequentemente deixava-se ficar no centro da terriola, admirando a mercearia fechada da Ti Ester, a casa grande com um ar quase senhorial da Ti’lena, a forma como aos poucos o vento erodia as fachadas das casas levando-lhes a tinta e deixando descarnadas as paredes de pedra que resistiam estoicamente.
E na aldeia, viviam essencialmente as recordações e a ânsia pelo mês de Agosto que teimava em demorar todos os anos, como se fosse uma noiva caprichosa que quer deixar o noivo inseguro.
Viviam as recordações do tempo em que a Ti’lena tinha porcos, galinhas, vacas e até um cavalo e de como eram garbosos os filhos dela. Tão diferentes, todos e cada um – que viviam agora na cidade; de quando o marido da Ti Ester tinha abelhas e se fazia bom mel na aldeia. Do lagar do Ti António, que deixava os vizinhos usufruir das instalações para as suas colheitas em troca de uma maquia de azeite que lá produzissem. Dos dias de festa em que a Ti Mona recebia as filhas, que vinham da cidade, e se matava um peru, que era primeiro embebedado e que depois corria sem cabeça pelo largo, para diversão e gáudio da populaça que a vizinhava. Dos rapazes novos e sujos de terra, malandros, que roubavam a fruta das árvores e andavam com fisgas e sem dentes.
A aldeia vivia de se lembrar dos tempos em que as pessoas viviam e celebravam a vida na terra. A aldeia jubilava com a recordação de tempos melhores, em que as castanhas se assavam à lareira e o pão se fazia no forno comunitário. Em que ninguém passava fome porque, embora não houvesse mordomias, havia sempre um pouco de pão a mais e algum trabalho para as famílias mais pobres. Das lembranças dos bailaricos e das longas jornadas no campo a lavrar a terra desde a madrugada, com som distante do sino da igreja para lhes indicar as horas na lonjura.
De quando as pessoas se vestiam de festa para ao domingo irem à missa e ao cemitério. De quando se faziam procissões várias vezes ao ano e a terra tinha o seu próprio padre, que vivia abençoando os paroquianos, ouvindo os seus pecados e convivendo maritalmente com a moça que lhe tratava da casa, sem que ninguém ousasse comentar que o santo padre punha um pé que fosse fora da linha.
De quando havia bodas e baptizados e não apenas funerais na igreja, fora da eucaristia dominical.
A aldeia sabia que morria aos poucos e passava cada ano devagar, definhando, ansiando pela festa e pela volta dos parentes emigrados. Os parentes que no mês de Agosto a lembravam que ainda era muito querida e muito amada, que era lá que eles ambicionavam construir as suas casas de sonho e viver felizes e pacatos. E prometiam voltar cada ano e depois um dia de vez, quando se reformassem.
E a aldeia sorria porque sabia que os seus entes queridos o diziam com sentimento e coração crente, e fazia de conta que não dava fé de que esse sonho era cada vez mais distante, porque a cada ano a aldeia ficava mais longe, ficava mais adormecida, ficava mais deserta.
Mas naquele mês, a aldeia era de novo viva e feliz com os filhos que tinham partido em busca de uma vida melhor e voltavam brevemente. E havia abraços inteiros, acolhendo no peito todo o afeto que a saudade tinha alimentado durante 11 meses. E havia felicidade e orgulho de ver os parentes chegar de carro novo e grande, sinal de que estavam bem na vida. E havia toda uma azáfama para receber o melhor possível os entes queridos, que a gente é simples mas sabe receber. Vinham à porta embaraçados da sua simplicidade e pobreza dizendo “a gente não é fidalga, mas gosta muito de vos ter cá”. E os filhos traziam presentes e as noras loiras de nariz empinado; traziam netos que já não sabiam falar bem o português e desdenhavam os divertimentos simples da aldeia, agarrados às suas playstations e telemóveis e computadores. E havia conversas que se repetiam, por falta de assunto e de proximidade: “Então como é que estás?”, “E como é que vai a vida lá na França?”, “Muito trabalho, tenho saudades da nossa terra, que lá trabalha-se muito é uma vida muito desgraçada.”, “A gente aqui nem sabe dar valor ao bem que tem.” E depois a mesma conversa no café, nos encontros casuais, nos bailes à noite.
E os velhos contavam as novas da terra. Cada vez mais do mesmo. Que morreu o Ti Henrique, o Ti Carlos, a Ti Mona, a Ti’lena e o filho da Ti’lisa. Que este inverno só nas três aldeias vizinhas tinham morrido mais de 20 pessoas. Que o dinheiro cada vez dava para menos. Que a carrinha do Continente agora só vinha uma vez de quinze em quinze dias no inverno. Que a camioneta tinha menos horários e que iam fechar mais uma linha de comboio. Que fechara a última mercearia das aldeias vizinhas e que agora nem que fosse só para comprar um litro de leite, que se tinha de ir à vila. Que as filhas da Ti Mona andavam de candeias às avessas por causa das partilhas.
E eles partiam com as lágrimas nos olhos e lembranças da terra que a cada ano estava mais deserta e mais parada.
Na aldeia, primeiro fechara a mercearia da Ti Ester; depois o café no início da terra, que já só abria em Agosto. A piscina que o Joaquim tinha aberto funcionou dois anos, mas só dava lucro em Agosto e ficou abandonada, com o seu azul piscina cada vez mais gasto, num estranho monumento àquilo que um dia a aldeia fora e que agora já não era. Símbolo de um tempo em que as pessoas de aldeias vizinhas vinham de propósito àquela aldeia. Símbolo do que acontecera entretanto.
E a cada ano morriam mais velhos e ficavam menos jovens, até na aldeia não restar mais do que o tempo e o vento, que de vez em quando brincava com os galhos que encontrava nas eiras, nos pomares e nos olivais abandonados à sua sorte.
A carrinha do Continente levava e trazia todos os dias os velhos nos meses de verão; uma vez por quinzena nas outras estações. A aldeia já não tinha mercearias nem lojas. As mulheres vestiam-se de preto, os homens em tons de terra. A missa já não era ao domingo que o senhor padre tinha de ir a muitas aldeias e aquela tinha muito pouca gente. O cemitério era cada vez mais populado. As funerárias, as empresas de cuidados domiciliários e os lares floresciam, na zona.
E a aldeia vivia cada vez mais das recordações e das lembranças. Sabia-se de cabeça e de boca de quem eram as coisas que se herdavam depois de os habitantes morrerem. A macieira do Zé, as oliveiras da Ana, a horta da Rosa. Mesmo se a Rosa vivia muito longe, no Porto, e o Zé só aparecia na altura da festa e nem sequer era todos os anos.
A aldeia atrasava-se no seu fim, na esperança de mais um Agosto, de mais um fôlego, de mais uma criança. Enchia-se poesia serena, exacerbando a sua beleza triste à medida que ficava mais quieta, com menos gente.
Vivia sem pressa, sem querer dar parte fraca nem querer ser vaidosa, mas rezando para que a fotografassem, a cantassem e a dissessem. Que se lembrassem dos tempos em que os seus enchidos eram famosos, porque naquela aldeia, os porcos não eram alimentados com a lavagem, mas com farelos e legumes: batatas pequenas, beterrabas, abóboras. Para que contassem às gerações vindouras como era bonito o entardecer visto da igreja no monte, de como se tinha temido o fim do mundo na noite em que choveram estrelas no céu límpido de Trás-os-Montes. De como eram bonitos a sua forma de vida e os seus costumes agora tantas vezes incompreendidos e quase esquecidos. Uma forma de bolo da lareira nunca se lava com água, mas sim com azeite, senão estraga-se irremediavelmente; a melhor coisa para limpar uma panela de cobre é esfregá-la com areia…
E a aldeia via o tempo passar de olhos rasos de água, como crónica de uma morte anunciada, caminhando ao ritmo da vaca lenta para o seu fim, guardando a esperança de que um dia alguém contasse a sua história e as suas estórias, para que na memória imaginada ou real dos outros ela pudesse viver para sempre.
Porque a vida não é só o que acontece na realidade. A vida acontece muito e muitas vezes é na memória, na imaginação, no coração. Por isso é que contamos com detalhe pequenos momentos de segundos que nos marcaram para sempre e falamos de anos monótonos da forma lacónica e simples “muito tempo depois”.
É que a importância e a longevidade das pessoas, das coisas e dos lugares depende muito de lhes fazermos jus no afeto, pensamentos e narrativas que lhes dedicamos.
E por isso, a aldeia – que sabia ser pequena, recôndita e insignificante - resistia, batalhando em cada fôlego pelo direito a ser recordada por mais uma geração, de viver um pouco mais além da sua existência real.
E por isso, o tempo fazia-se preguiçoso naquela aldeia em Trás-os-Montes.



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