A minha mãe dizia que sonhar com dentes era morte e eu
sonhei que me caiam os dentes todos. Sonhei que ficava com os dentes na mão e
acordei a suar em bica de madrugada.
Ninguém pode morrer, e muito menos pode morrer toda a gente.
Mas eu ficava com os dentes todos na mão e ficava a olhar para eles. Sentia o lábio a rodear a gengiva. Sentia o sabor metálico do meu sangue percorrer-me a língua e descer-me pela garganta.
E matava-me a sede, sabia bem. O sangue morno, metálico e muito líquido sabia-me bem. Mas eu não sabia o que fazer com os dentes.
Estava atónita perante aquele espectáculo macabro.
E quando acordei, percebi que estava sozinha e que nada das tradicionais interpretações dos sonhos poderia ser verdade, porque nunca me poderiam morrer todas as pessoas, como me tinham caído todos os dentes no sonho.
Mas fiquei desinquietada com o presságio.
E no meio do choque queria perceber como é que aquilo tinha acontecido, qual era a história por detrás da queda dos dentes no sonho. Acho que me tinham caído suavemente, de forma indolor, como se fossem pequenos bagos de romã que eu libertava sem dor nem arestas. Eu até tinha noção de que eles me estavam a sair, tanto que colocava a mão à frente da boca para que não caíssem ao chão.
E soltava-os um a um depressa até estarem todos na mão.
Depois olhava para cima horrorizada, ainda tinha alguma sensação física da minha boca mas ficava paralisada pelo choque e não sentia mais nada.
E, de repente, ocorre-me. Há uma maneira muito simples de eu perder toda a gente.
É se toda a gente me perder a mim, se eu morrer.
Olho à minha volta e está tudo vazio. O Talmud diz que "para onde quer que olhes há algo para ser visto", mas eu não vejo nada.
E subitamente apercebo-me: eu já não existo. Eu não tenho mãos, nem dentes, nem corpo nem nada. Eu sou só este pensamento e os meus sonhos.
Shakespeare disse que a morte é um sono sem sonhos. Suponho que ele estava enganado.
E, sendo assim, parece-me agora claro que na morte como na vida é na nossa capacidade de sonhar que reside o nosso próprio céu ou o nosso próprio inferno.
1 comentário:
Linda personificção. Tão verdade, tão intenso: "Há uma maneira muito simples de eu perder toda a gente. É se toda a gente me perder a mim...".
Sonhemos então, para que não morramos. Mas quantas vezes morremos, quantas partes de nós morrem, enquanto vivemos (ou julgamos que vivemos)?
Parabéns, Helena!
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