segunda-feira, maio 28, 2012

Maria qualquer dia

“Maria Ventania!”

No sonho, estava sempre na roda gigante, muito agarrada a André porque fazia vento e as cadeirinhas balançavam mais e ela tinha medo das alturas. Podia ver a cidade toda: parecia ser Antuérpia ou pelo menos uma cidade belga, com cursos de água e casas baixas. A cadeirinha circular em tons de azul, onde estavam os dois, chiava ao balançar-se na corrente de ar.

“Maria Tonteria
André agarrava-lhe as mãos e não conseguia deixar de sorrir trocista perante o medo evidente que ela tanto tentava disfarçar.

“Não vamos cair, Maria Valentia. Não podemos.” – Sorria e dizia-lhe que apreciasse a paisagem e sentisse o vento na cara.

Ela encostava mais o corpo a ele e largava a sua mão para dar a cara ao vento, conquistando o medo pouco a pouco. Sabia bem ter o vento na cara. Tentava gozar a vista, mas sentia náuseas.

“Maria Cobardia…”
E nesse momento, ele caía e deixava-a sozinha.

Nunca o via chegar ao chão e ele nunca parecia aterrorizado. Caía a fazer as rimas que tanto gostava, a brincar com o seu nome.

“Maria Pontaria, Maria Gritaria, Maria Sinfonia!”
E ela queria agarrá-lo mas não conseguia largar o banco da roda gigante.

E acordava sobressaltada, Maria Nostalgia.

Acordava na cama vazia.
Acordava na cama, vazia.

Aguentava o lento passar dos dias pesados, com a determinação muda dos passos de uma vaca transmontana fora da manada. Ouvia o pendulo do relógio de sala que tinha sido do avô bater ritmadamente, ordenando ao seu coração o compasso que ele queria esquecer. Mexia-se de forma mecânica e sem pensar, só porque tem de ser, porque é preciso ir à vida, porque é preciso fazer, porque há contas para pagar.

Lenta. Sem outro propósito.
Maria Anestesia.
Abrir os olhos para o teto branco com pontos de humidade, o quarto iluminado pela persiana que nunca fechava e que mais valia não existir. Pensar em ficar mais tempo a dormir. Ouvir o telemóvel soar o despertador em alarmes adiados de 5 em 5 minutos. Só mais 5 minutos. Só mais cinco minutos. Só mais 5 minutos. São só 5 minutos.

Sentar-se na cama. Levantar-se da cama. Chinelos. Chuveiro. Água quente no pescoço, no peito, no torso, nas costas, no cabelo. Mais água. A água que lhe sai dos olhos e se mistura com a água do banho. Mais água para lavar o corpo e as mágoas. Só mais 5 minutos, vamos lá.

Prolongava o banho como se lavasse a alma.
Depois do banho não se chora, depois do banho não existe mais Maria-coração-partido, depois do banho só a Maria-profissional.

E a Maria vai para o trabalho e não pensa em mais nada até à hora de sair, depois de fazer horas extraordinárias.

E faz tantas horas extraordinárias quanto pode para evitar parar, pensar, existir, sentir.

Maria Catalepsia.

Fazia este “jogo de externalizar” consigo mesma quando se queria martirizar por todas as coisas que não fez e que devia ter feito, aquilo que poderia ter dito e não disse.

Fazia estes negócios de 5 minutos consigo mesma. 5 minutos sem pensar em nada. Só 5 minutos a pensar nele. 5 minutos para chorar. 5 minutos para o insultar. 5 minutos para ter saudades. Intervalinhos pequenos e sustentáveis para a ajudar a digerir o que não podia ser mudado. Intervalinhos pequenos e alcançáveis. Só mais 5 minutos. Vamos lá, 5 minutos é num instante.

Sabia que tudo havia de passar e depois a vida continuaria como dantes. Mas quando? Quando?

E nestes intervalos pequeninos, de horizonte visível, Maria praticava a sua paciência esperando que em breve a vida melhorasse e lhe trouxesse outras coisas muito boas.

E havia de trazer.

Maria, qualquer dia.

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindo!