Já não gostava da casa.
A casa era pequena. Tinha sido André que a tinha encontrado, quando ambos procuravam apartamento. Ficava numa zona excelente do Porto, central mas recôndita ao mesmo tempo. A renda era uma pechincha.
"Um verdadeiro achado", como gostava Joana de dizer às pessoas a quem contava onde vivia naquela altura.
André ficara com a casa, Joana ficara com as gatas.
Na altura, ainda atordoado com a decisão de separação que lhe era apresentada assim, concluída e em fase de execução, sem espaço para negociações ou discussões concetuais, André achou que estava bem e que era justo. Ela é que queria acabar, ela que saísse de casa.
A verdade é que jamais teria saído da casa se tivessem acordado o oposto, teria protelado a sua saída até vencer Joana pelo cansaço, como fazia sempre.
Se calhar era por isso que a ex-namorada tinha optado por romper com ele daquela forma.
Sentado na poltrona azul da sala, sem ligar a TV, nem o rádio nem o pc, André admirava a casa. O silêncio da casa.
Sempre tinha detestado a mania de Joana de trautear músicas pimba e pouco cool que depois se lhe colavam no ouvido e que por seu turno passava a trautear também, distraidamente.
Mas tinha saudades das gatas, Coco e Rosie, em homenagem a uma das poucas bandas de que ambos gostavam. Coco era tímida e assutadiça, Rosie era uma safada, uma aventureira.
Aos Domingos de manhã, gostavam de preguiçar em casa, e faziam brunch, com ovos mexidos e sumo de laranja natural. Com croissants fresquinhos da confeitaria da esquina e pão da aldeia que tinham sempre, da loja transmontana. Joana tinha uma tia que fazia uns doces excecionalmente bons, com umas receitas secretas que não dava a ninguém, e ambos veneravam esses nectares lambendo os dedos, e poupando a iguaria como se fosse preciosa. às vezes faziam panquecas ou crepes. às vezes tinham convidados para o banquete matinal.
Coco e Rosie pedinchavam-lhe comida discretamente, porque Joana não aprovava que se desse comida "de humanos" às gatas, que lhes fazia mal.
No fim da refeição, completamente cheios e com a gula saciada, muitas vezes até à indisposição, resfastelavam-se no sofá grande, com as gatas no colo a ronronar, a ver "trash TV" e a rirem-se muito dos programas juvenis da MTV "date my mom" ou "made", a criticarem "toddlers and tiaras" e de queixo caído com "big fat gipsy weddings" ou "extreme couponing".
Eram manhãs completamente inúteis, muito melhor dispendidas a passearem ou a irem a museus como sempre combinavam "para a próxima semana", mas eram também alguns dos melhores momentos da sua semana.
Segunda era sempre o dia em que ambos, bastante gordinhos, planeavam começar a fazer dieta.
Agora, André corria aos domingos de manhã, como de resto fazia em todos os momentos de rotina em que lhe faltava a sua "cara metade".
Segurando o gelo no joelho lesionado, André considerava como era curiosa a expressão "cara metade".
Saboreou a expressão: "Cara metade".
Quando era jovem pensava que "cara metade" era como que a dizer que a pessoa era a outra metade da sua face. E gostava do conceito de fazer parte da cara de outra pessoa. Fazia-lhe sentido, porque a cara é a parte mais identificativa de uma pessoa, e, quando se assume uma relação, passa-se a fazer parte da identidade dessa pessoa. Há pessoas que adotam os nomes umas das outras, há pessoas que deixam de se relacionar individualmente com outros e passam a ser uma "entidade" com a outra pessoa, falando sempre de si na primeira pessoa do plural por defeito ("vamos passar férias", "não temos a certeza se podemos ir ao jantar", "estamos a chegar", "Gostamos muito de almoços de família"), mesmo quando uma pergunta lhes é dirigida só a si. Gostava também porque cara metade tinha tinha implícita a ideia que a pessoa veria um dia os seus genes misturados em partes iguais - metade, metade - num outro ser humano e que essa pessoa teria duas metades espelhadas na sua cara. Uma sua, outra da sua cara metade.
Não foi sem desencanto que um dia percebeu que cara metade, significava mais "querida metade" do que "a outra metade da minha face", perante o ar trocista de Joana.
E nessa altura deixou de usar a expressão, porque perdeu o valor para si.
Esticou-se em direção ao sofá e procurou a almofada de caroços de cereja às apalpadelas, entortando-se e ficando sem ângulo de visão para não ter de se levantar e desmontar o aparato da sua lesão: o saco do gelo, o banco para estender a perna, o leite com café e o pão com manteiga na mesa de apoio e o jornal de ontem e mais umas revistas na mesa do outro lado, ao pé do telefone. Não encontrou. Levantou-se. Olhou à volta e ocorreu-lhe, contrariado, que a também a almofada tinha ficado com Joana.
Sentiu uma fúria súbita encher-lhe o peito. Insultou-a com muitos palavrões. E sentou-se novamente, muito irritado.
Colocou o gelo e sentiu falta de correr.
Correr ocupava-o. Era a ocupação perfeita porque era solitária e ele não queria a companhia de ninguém, era saudável e ele era precisava de perder peso, gastava muito tempo e ele tinha muito tempo para preencher.
Mas correr por vício e de forma obsessiva como ele fazia desde a separação tinha o seu quê de negativo e as suas articulações já andavam a queixar-se desde há umas semanas. Agora estava de baixa, nem para o trabalho podia ir, e era obrigado a enfrentar todos os seus fantasmas de uma só vez, confinado ao espaço que partilhara com a mulher de cujas lembranças tentava fugir, sozinho com os seus pensamentos que havia engarrafado sob pressão, no dia da semana em que mais usufria do amor que sentia por ela e da cumplicidade que partilhavam.
E se André havia muito que já não gostava dos domingos, percebia agora que também já não gostava da casa.
A casa enchia-se das coisas que lhe faltavam e que Joana tinha levado, enchia-se da sua ausência e da ausência das gatas. Enchia-se do silêncio de não ouvir o irritante trautear de "Karma chameleon" ou músicas de Bon Jovi e Brian Adams. E as paredes assim, mais à mostra da muita tralha que ela tinha levado - porque Joana colecionava toda a tralha que encontrasse - pareciam mais perto e mais opressoras. A casa tinha ficado mais pequena. As paredes tinham mais rachas. As portas rangiam mais. O chão era mais feio. O sol não batia. A vizinhança era chata. Os móveis estavam mais estragados. Os armários eram mais pequenos e menos jeitosos. Cheiravam a mofo.
André punha defeitos em tudo e culpava os outros, sobretudo Joana. Não deixava que lhe falassem dela, nem dos erros que ele estava a cometer contra a sua própria saúde e reagia de forma quase agressiva quando o tentavam fazer.
Vestia a capa de uma racionalidade fria e calma, abrigada no pressuposto de que ela era uma cabra e toda a sua vida se tinha tornado num inferno por causa dela, que o destruíra afetiva, social e até economicamente. Por culpa dela.
Tinha medo que, se um dia pensasse seriamente sobre o assunto, se um dia se acalmasse e permitisse a possibilidade de outras hipóteses, pudesse descobrir que, afinal, a culpa não só não estava solteira, como nem sequer era monogâmica.
Karma Chameleon - Culture Club
Lemonade - CocoRosie
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