Lembrava-se de ser uma noiva feliz, cheia de sonhos e esperanças, apaixonadíssima e feliz, não se pode descrever de outra forma, arrebatada de um sentimento absoluto, inteiro, pleno.
Camilaera o centro da animação, sempre. Quem visse a sua energia inefável, o seu bom humor, a sua capacidade organizativa em prol dos outros, sempre em prol dos outros, não imaginaria quão opostas eram as águas profundas que lhe corriam na alma.
Quando Amália conheceu David, Camila foi conspiradora-mor da sua felicidade, arranjando pretextos perfeitos para Amália sair de casa, servindo de alibi para as suas escapadas com o namorado secreto.
Quando decidiram casar, Camila mostrou mais uma vez o seu valor como amiga. Ajudou na organização sem ser intrometida, mobilizou os amigos de ambos em surpresas infidáveis, animou como sempre um pouco mais a vida de todos.
Mesmo tratando-se de um casamento na igreja do Bonfim, como o seu fora. Mesmo segurando e ajeitando o véu da noiva à entrada da igreja num gesto parecido com o que tinham feito por si.
Mesmo perante um amor tão puro e promissor como o seu havia sido.
Marco e Camila namoraram 10 anos e ele estava já diagnosticado com cancro quando casaram. Camila amava-o e nada seria diferente. O amor tudo conquista e haveria de resgatar também a vida de Marco.
Continuaram a construção da sua casa e começaram os tratamentos, escrupulosamente seguindo todos os tortuosos ditames médicos. Camila deixou o seu emprego, a sua vida e a sua existência para o amparar a ele.
E ele lutou o mais que pode, numa luta perdida à partida. E deixou a Camila um legado bem maior do que a casa que o seguro de vida pagou; deixou-lhe a certeza de que ela fez tudo o que podia, que ele a amava mais que tudo o resto e que ela era mais forte do que supunha.
E que a vida é preciosa e se tem de viver momento a momento.
O vestido que levou para o casamento da sua amiga era preto e elegante. “Com o meu vestido preto, eu nunca me comprometo”, dizia num tom jocoso e coquete, mudando logo de assunto.
Porque se de alguma maneira queria estar de luto pelo seu amor, por tudo o que tivera e perdera, pelos momentos que vivera naquela mesma igreja 3 anos antes, os mesmos olhares, as mesmas sensações, o mesmo nervosismo e a mesma alegria profunda de quem se entrega sem reservas a outro ser humano para o melhor e para o pior, na saúde e na doença, não suportava que sentissem pena dela ou que isso fosse motivo de conversa e jamais roubaria o centro de atenções da sua grande amiga, a noiva feliz.
Judite tinha um coração de ouro maciço, inteiro e reluzente.
E como qualquer objecto de metal deste tipo, era também impenetrável.
Tomava as maiores precauções para que não ficasse ferido, não se riscasse, não perdesse o brilho. Guardava-o como se tivesse um cofre, dentro de um forte, no meio de uma ilha.
E o seu coração crescia, em tamanho e peso, cada vez mais.
Até se tornar insustentável carregar com o seu coração grande, bonito, perfeito, doirado, pesado e inútil.
Porque os corações não são meras peças decorativas, são peças utilitárias.
E o coração de Judite quanto mais temia o uso mais se tornava pesado.
Até que um dia, farta de o carregar de um lado para o outro, Judite já só o queria entregar a alguém que a ajudasse com esta carga.
Ernesto tinha ar de quem conseguiria segurar o coração Judite porque era ele próprio grande e forte. Faltava-lhe no entanto a coragem e a sabedoria para compreender o valor do objecto que segurava nas mãos e um dia deixou o coração de Judite caído pelo chão, depois de o riscar, rachando-o a meio na queda.
Desgostosa de ver o seu maior tesouro partido e desprezado, Judite consertou-o na medida do possível e pensou que não o voltava a deixar por mãos alheias.
Mas os corações são um pouco como a loiça boa de jantar. Depois de se partir o primeiro prato, há sempre um pouco menos de cerimónia no uso do serviço.
E Judite continuou a usar o seu coração que continuou a ser partido, rachado e riscado.
No princípio, parecia mais feio, mas, com o tempo, foi evoluindo; tornou-se filigrana, cota de malha cinzelada, fio de ouro... E com cada uso, o objecto parecia ficar mais leve, flexível, rico e permeável.
E a sua composição foi mudando, desrigidificando. O coração adquiriu o hábito de se mexer e começou a não conseguir passar sem isso, já não sabia estar inerte sem se sentir morto.
Porque o coração de Judite deixou de ser um coração de ouro maciço e passou a ser um coração humano, cheio de sangue mas cheio de vida. Capaz de sentir e de se saber vivo.
Então, Judite deixou de ter medo e começou a viver, agora que tinha um músculo que lhe bombeasse o sangue devidamente pelo corpo todo.
Teresinha Villaverde fazia ballet na adolescência, como qualquer menina de bem. E se Teresinha era a princesa das meninas de bem, era também dedicadíssima ao seu ballet que praticara durante 12 anos.
Aos 18 anos, com a entrada na Faculdade, houve muito na sua vida que mudou e deixou de fazer sentido. E com isso, também o ballet.
Mas um ano depois, Teresinha sentia-lhe a falta. Não porque gostasse especialmente de se ver de cor-de-rosa literal e figurativamente, mas porque se sentia a perder destreza, agilidade e sobretudo flexibilidade.
Decidida a distanciar-se da imagem convencional e perfeitinha que tinha, agora que estudava Comunicação Social e queria ser "alternativa", foi com algum entusiasmo que se inscreveu nas recém inauguradas aulas de Tai-chi que dava um seu conterrâneo, no centro da Santa Casa da Misericórdia.
O professor de Tai-chi era simultaneamente o professor de Chi-kung e de Kung-fu. Era um homem muito alto e muito magro, de nariz adunco e barbicha, como alguns vilões dos filmes de desenhos animados infantis. Casado com uma senhora de Braga, vivia na capital de distrito e fazia a sua vida entre Braga e o Porto, difundido as 3 artes em que se tornara mestre no Japão.
António era um homem um pouco amargo e zangado com a vida que não dispensava conhecimento algum que não fosse a troco de dinheiro, porque, dizia, também lhe tinha custado muito ir para o Japão e tinha de rentabilizar as coisas que aprendera com sacrifício.
Exercia ainda acumpunctura e shiatsu e andava a tentar implementar aulas de meditação na localidade, mas sem grande sucesso até à data.
António encarnava de alguma forma uma sabedoria e um exotismo que apenas os lugares muito distantes têm e encantava as senhoras de Vila Verde com estes mistérios, angariando várias clientes para as suas aulas.
Quando Teresinha manifestou o seu contentamento com as aulas de Tai-chi que lhe devolviam a mobilidade que sempre tivera e estimulavam a sua flexibilidade de que tanto sentira falta, António sentiu um orgulho muito especial. Teresinha era muito popular e admirada na terra e representava uma excelente publicidade a todos os níveis que estivesse satisfeita com as aulas.
Envaidecido, António propôs ajudar Teresinha, compartilhando algumas técnicas orientais diferentes para ajudá-la a recuperar ainda mais depressa a flexibilidade de uma bailarina clássica.
Combinaram nas instalações da Misericórdia uma hora antes da aula de Tai-chi. A aula não surpreendeu Teresinha que era perita em exercícios de flexibilidade e não trouxe grande novidade às técnicas que já conhecia, à parte incorporar formas diferentes de respirar nos exercícios. Mas a António, a aula trouxe novidades. Gostava de um desafio e não sabia perder. Teresinha Villaverde era dona de uma figura admirável, e tinha um controlo incomum sobre cada músculo do seu corpo de bailarina.
Cinco minutos depois de a aula começar, António teve a clara noção de que a sessão seria uma desilusão para Teresinha que aparentemente já fizera cada um dos exercícios que lhe propunha. Mas António não dava ponto sem nó.
No final da aula, e enquanto falavam de como tinha corrido e das diferenças entre estes exercícios e os do ballet clássico, António revela que ainda tem uma última e derradeira carta na manga.
Técnicas orientais que sabe que não pode partilhar com a maioria das pessoas da terra, gente tacanha, sem grandes horizontes e muito presa a conceitos do passado, mas que sente que pode partilhar com Teresinha que é uma rapariga de mente aberta e com grande flexibilidade física e mental.
E então António propõe a Teresinha, sob o abrigo da partilha de conhecimentos orientais exclusivos, e sem qualquer interesse da sua parte, a prática de posições sexuais milagrosas no ganho da flexibilidade.
Ora bem, Maria Teresa Villaverde era cada vez mais uma jovem alternativa e moderna. Mas Maria Teresa Villaverde era bem neta da sua minhota e matriarcal avó Lucinda, de espinha vertebral direita e valores católicos e cristãos mais profundamente enraizados do que supunha.
Na fracção de segundo que se seguiu à proposta de António, Teresa não ouviu nenhum som, até ouvir o estalo que dava de expressão inalterada na cara de António, directamente na sua face esquerda, com a sua mão de bailarina que redescobria inusitadamente agilidade e força.
O segundo que se seguiu ao estalo foi também silencioso. E quando terminou, Teresinha caiu em si, achou pouco inteligente a sua atitude e chegou a temer pela vida, porque António era um homem quase com o dobro do seu tamanho, o dobro da força e conhecimentos marciais letais.
Mas António permaneceu paralizado nesse instante e Teresinha saiu rapidamente pela porta fora.
O que desconheciam ambos até à data é que um estalo bem dado é uma arma indefensável e universal. E que não há defesa possível de um estalo merecido, depois de se fazer algo que se sabia à partida que não se devia ter feito ou devia ter dito.
Porque um estalo bem dado atinge uma pessoa de forma cirurgica nesse ponto vital e secreto que é o ego. um ponto a que nem os maiores mestres orientais conseguem chegar com facilidade, mas a que as donzelas bonitas, indefesas e voluntariosas têm um acesso privilegiado.
(Teresinha já tinha aparecido em Outubro no Personificcionar e decidiu repetir a visita.)
Martina aprendeu com a vida que não se deixa fugiu amor nenhum. Aprendeu às suas próprias custas que o amor, quando se nega, tarda em voltar. E às vezes tarda mesmo muito.
E por isso quando Martina conheceu Gilberto atirou-se de cabeça, como vinha aprendendo há vários anos.
Martina aprendera à custa dos seus erros e das suas próprias protecções emocionais que nada há que seja pior que o arrependimento e o vazio depois do que poderia ter feito "se" e apenas "se".
E decidira desde há muito que não voltaria a ser assaltada por esses pensamentos.
E Gilberto cozinhou-a como a uma rã. Foi aquecendo a água da panela enquanto ela estava viva lá dentro, para tornar a sua carne mais tenra quando finalmente a consumisse.
Martina foi mudando, cedendo até já não poder mais. Desta vez aprendeu que afinal não se pode dar desmesuradamente, e que a vida é assim, uma madrasta que passa anos a ensinar uma coisa, apenas para depois ensinar o contrário.
E que Gilberto mentia, enganava e manipulava Martina, sob o manto de uma transparência e uma brutalidade infantil e pura.
E que toda a gente tinha pena dela, da forma como se deixava cozinhar, saindo e entrando a panela que não parava de aquecer, cozendo mais um bocadinho de cada vez.
Só que a mulher-rã é uma espécie em vias de extinção. E Martina, ao invés de ficar mais macia, à medida que a panela aquecia, ficava mais dura, mais amarga, mais imprópria para consumo. Até que, envenenada pela própria água em que a escaldavam, saltou para fora.
O temor era algo que o tomava de assalto e que tentatava incutir nas ovelhas do seu rebanho.
O temor a Deus.
O temor aos Santos.
O temor ao Fogo do Inferno.
O Padre Daniel era um homem consciencioso, rigoroso, meticuloso, estóico, disciplinado.
Na sua infância tinha tido um episódio de que mantinha hoje em dia segredo absoluto, fora possuído e exorcizado. Salvo pela luz da salvação eterna e pela água benta da Santa Madre Igreja. E ainda hoje tomava frequentemente banho com água benta para afastar e dissuadir potenciais demónios que de si se quisessem apoderar.
O Padre Daniel era dedicado e respeitado por toda a comunidade, mas todos sabiam que do padre Daniel não se podia esperar misericórdia.
Um dia ouviu Rufino em confissão, um adolescente com um atraso mental, e incutiu-lhe a importância do temor para não mais pecar, como era aliás sua imagem de marca.
Rufino saiu perturbadissimo da Igreja a murmurar coisas que ninguém compreendia.
Dias depois as pessoas que estavam com ele no centro de dia, preocupadas, chamam o padre, pois acham que Rufino deve estar a começar a entrar em transe.
Rufino repete "morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE, morTE" sem parar, dia e noite.
Mas o Padre Daniel não percebe o que é que isso tem a ver com ele. Na confissão repreendeu Rufino pelos seus actos, mas não falou da morte.
Conjectura-se que Rufino possa estar a escalar no caminho para a santidade ou demonização e o sacerdote começa a considerar a necessidade de chamar alguém versado na arte do exorcismo, quando Rufino não consegue parar de se balaçar chamando pela terrível ceifeira, ou anunciando a sua chegada.
Chama-se o médico, o psicólogo, a assistente social, que não lhe conseguem arrancar mais nenhuma palavra.
Rufino está por um fio, entre o internamento, a sedação absoluta e o exorcismo. Nenhum dos processos é agradável.
Na aldeia discute-se que o rapaz deve ser morada aberta, que é caso de arrepiar.
Até que surge, escrito a vermelho na parede da igreja uma aviso com letra de primária que dissuade todos da transcendência do caso e obriga o Padre Daniel a repensar a sua política de ensinar a temer:
"Torem das árvores os galhos.Rotem em torno do temor e a morte estará a um metro. Tremo pelo termo deste caso."
Quando era uma principiante na arte do jazz recusaram a sua voz cristalina e surpreendente com base na interpretação. Disseram-lhe com sobranceria que "lhe faltava dor de corno para cantar jazz em condições".
Catarina saiu do clube pior que estragada. No auge dos seus 22 anos era dona de uma técnica vocal perfeita, fruto de anos e anos de estudo, de exercícios incontáveis, de aulas de conservatório, cursos livres dentro e fora do país e sessões de terapia da fala regulares.
Dominava a improvisação e tinha um ouvido fantástico que lhe permitia sempre perceber se e quem estava dentro ou fora de tom. Tinha swing, compreendia o ritmo como se fosse o bater do seu coração que se alterava quando ela outra pessoa dava o tempo. Conhecia os standards quase integralmente.
Tocava piano com mestria e percebia muito de todos os outros instrumentos, porque Catarina praticamente respirava o jazz e assistia a todas as jam sessions, aulas e concertos que podia. A sua própria entoação verbal era sincopada.
E fazia teatro, porque lhe tinham dito que a interpretação era fundamental no jazz.
Cantar no Hot Club era um passo natural nesta evolução fulgurante, digna das maiores honras académicas e prémios musicais.
E por isso, foi com indignação, mais do que com desânimo, que Catarina recebeu do grande especialista do clube a notícia de que o que ela era ainda não chegava para os padrões deles, quando gente "pior que ela" já lá tinha estado.
"Se quisesse ser uma desgraçadinha tinha-me dedicado ao fado", pensava com os seus botões tão zangados como ela.
E voltou à sua vida academicamente perfeita tão frustrada e revoltada com aquela injustiça, a primeira que sentia verdadeiramente queimar-lhe na pele, que começou a tornar-se na interprete e compositora que sempre estivera destinada a ser.
Vai ao ginásio todos os serões. Faz solário. Estica o cabelo preto que pinta de 3 em 3 semanas, religiosamente. A sua roupa é sempre bem escolhida e até as peças com que faz spinning são pensadas cuidadosamente: calções um pouco abaixo do joelho, justos, e top que deixa o ombro à mostra, revelando as alças coloridas do bikini por baixo. E sim, Elisa usa maquilhagem também no ginásio, porque uma pessoa nunca sabe quando é que vai conhecer alguém interessante e mais vale prevenir.
Elisa tem todo o ar de quem está a arrumar as suas coisas calmamente no balneário do ginásio, enquanto faz conversa com todas as mulheres que a rodeiam, comentando a festa do Habana Club para os membros do health club no fim de semana passado. Foi boa, mas o Alfaiate é que é, e não se paga só para entrar, apenas aquilo que se consome. E não se tem filas.
Enquanto comenta as suas opiniões com as colegas que vão dispersando, Elisa verifica as borbulhas, as unhas de gel e o peso na balança disponível. Tenta captar as atenções das pessoas que vai encontrando na sua imagem de verniz, polida ao extremo, mas a cada três frases diz um palavrão e comete outro erro gramatical. E só consegue dizer bem de algo quando é uma rampa de lançamento para criticar qualquer coisa.
Elisa é espampanante, divertida e "um ponto". Aparece em todos os eventos do ginásio e já namorou com alguns dos seus elementos, não porque estivesse especialmente enamorada pelas suas personalidades, mas porque dá muito valor a um corpo bem definido e adora a sensação de entrar num sítio e de ser alvo da inveja de outras mulheres.
Elisa tem um sucesso mediano no seu trabalho, tem 36 anos bem conservados, trabalha com uma disciplina estóica na sua aparência impecável. Sacrifica-se diariamente por um objectivo que não sabe bem o que é, mas que pelo menos vai tacteando. E no entanto, as únicas alturas em que se sente realmente viva e relevante são pouco mais do que estes momentos em que se sente a raínha do ginásio e fala com pessoas que na verdade até nem estão assim tão interessadas naquilo que Elisa tem para dizer.
(personagem construída para o Projecto Curta Metragem)
Ernesto chegou a casa mas não estava cansado. Sentou-se à mesa cheia de papéis e livros há uma quantidade de tempo indefinida. Notava-se que tinham sido depositados em cima da mesa em tempos distintos, frutos de ideias geniais repentinas a realizar a breve trecho, com potencialidades explosivas, mas que depois ia deixando no seu mar de "projectos até um dia" poeirentos, ultrapassados e claramente fora de tempo.
A pilha incluía recortes de revistas, livros seus, livros emprestados, livros da biblioteca fora de prazo, cartas pessoais, desenhos, decretos-lei, jornais e mesmo os insuspeitos restos mortais de um pacote de batatas fritas esquecidas no meio da bagunça.
O sofá de Ernesto estava também ele cheio de tralhas que foi acrescentando quando lhe faltou o espaço na mesa ou quando quis libertar a mesma para outros projectos ou mesmo para comer. Por cima de toda a tralha no sofá ficava sempre o casaco de onde por vezes fugiam as chaves que teimavam em se esconder nos labirintos insondáveis da sua tralha depositada no maple.
Sentou-se na cadeira encostada à mesa e serviu-se de um copo de whisky sem gelo e amargou.
Amargou os seus malditos 40 anos, velhos demais para ir para outro sítio, novos demais para se reformarem. o seu sucesso mediocre, alvo da inveja de outros escritores que tiveram de mudar de vida e traidor do potencial extraordinário que identificaram professores e pares toda a vida.
Ernesto trabalhava para a ficção nacional num lugar perfeitamente invejável para a maioria dos escritores e argumentistas portugueses.
Ganhava bem e até tinha contrato.
Arrendava uma casa mais por capricho que por falta de opção.
Tinha namoradas e casos a granel, já que possuía um charme e uma dose de intrepidez e inconsequência que o tornavam irresistível às mulheres.
E no entanto, neste momento da sua vida sentia-se um traidor, um vendido e um falhado, que nunca fez realmente jus ao seu potencial, nunca arriscou. Ernesto nunca iria ganhar um Oscar, um Emmy, um Pullizer ou o Nobel da Literatura, como em tempos sonhara. Nunca chegaria ao topo.
Adiou tanto assentar com alguém que sentia que fazê-lo agora seria quase contariar a sua natureza. Mas amargava nunca se ter entregue a ninguém, nem ter constituído família.
Sabia que não havia nada por que fosse lembrado nas gerações vindouras.
E isto, estes desejos frustrados de plenitude e imortalidade faziam-no amargar nos fins de tarde, agarrado ao seu copo whisky.
No princípio, a saudade doia-lhe com uma taquicardia aguda. Uma dor localizada no peito quando lhe faltava ela, quando sentia falta dela nos momentos mais inusitados.
No supermercado quando via uma coisa que lhe costumava comprar, quando lhe falavam de uma saída ou concerto e pensava como ela gostaria de ir, à noite, em casa, quando dormia só, quando conduzia no meio do transito, sem lhe telefonar para matar o tempo com as parvoíces cúmplices que tinham possuído em tempos.
Era como se lhe faltasse uma parte do corpo, por não ter o seu abraço. Deitava-se no sofá e aninhava-se nas costas fofas do móvel como se fora ela, nos piores momentos.
Sentia-se incompleta, amputada numa qualquer parte do corpo onde não era possível criar próteses.
E nenhum dia era pior que o Domingo.
Dava por si a fazer expressões de infelicidade, a sentir nada mais do que tristeza e reparava na delicadeza exacerbada das pessoas que lhe eram queridas que intuíam ou sabiam o que se estava a passar.
No princípio, a sua ausência deixava Gisela de rastos. A saudade fracturava-a de ponta a ponta e deixava-a imóvel, paralizada e cega.
Mas o tempo passou e o comportamento errático de Joana, ora adesiva ora evasiva, prosseguiu.
Gisela teve momentos de raiva absoluta, mais contra si por permitir que a relação continuasse do que contra Joana que a menosprezava. Sentiu-se pequena, insignificante e perdeu um pouco do respeito que tinha por si mesma.
Zangava-se consigo mesma por sentir a falta dela. Por ceder às suas próprias fraquezas. Por gostar tanto dela que fazia de conta que não via os seus imensos defeitos, o pior dos quais claramente não gostar de Gisela o suficiente, embora a quisesse só para si.
À medida que o tempo foi passando, Gisela começou a interiorizar a dura verdade de que Joana não a amava nem nunca a iria amar, não obstante as suas promessas. Lentamente foi-se afundando nela a certeza de que era essa mesma miragem de amor e tranquilidade, de segurança e conforto, que a fazia ultrapassar os hábitos irritantes de Joana, ignorar as suas manias, o seu egoísmo e a sua arrogância absurdas, própria dos ignorantes a quem a vida ainda não marcou nem ensinou grande coisa.
Perguntava-se quanto tempo levaria a deixá-la definitivamente, já que já tinha terminado a sua relação mais vezes do que conseguia contar. De cada vez que reatavam sentia-se mais longe daquilo queria, menos feliz. Mas não resistia. E percebia que quando finalmente o fizesse teria de evitar Joana a todo o custo, que não podia estar mais com ela, porque Joana não era boa para Gisela e, não obstante, Gisela era absolutamente incapaz de lhe resistir.
A casa gritava por ela, em cada canto, em cada estante, nos bibelots das mesas, nas fotografias por toda a parte, nos livros abundantes e nas plantas que ela escolhera.
A casa estava em silêncio.
A casa gritava por ela e o grito tinha o som branco do ar condicionado. Omnipresente, intolerável, insuportável.
A casa sentia a falta dela como se fosse órfã. Como se lhe tivessem arrancado um membro. Como se tivesse perdido o sentido.
A casa parecia catatónica.
E a casa chorava - ostensivamente, nada menos.
Eles tentaram fazer com que a casa sossegasse; mudaram as divisões dela, transformaram os espaços que eram só dela, eliminaram as coisas que apenas ela usava e que a faziam mover, os projectos dela. O escritório, a cama, o canto das especiarias na cozinha.
Mas a casa não se deixava enganar.
E chamava por ela continuamente, como a cria abandonada de um animal selvagem.
Quase – quase – que era possível sentir o cheiro dela, ouvir o tilintar dos brincos dela, sentir o toque mão dela a ajeitar uma almofada, porque a casa lutava com todas as suas forças para que a presença dela não fosse apagada.
Porque ela estava no DNA da casa, indelével, intrínseca, sanguínea.
As paredes da casa eram dela, os quadros nas paredes transpareciam a essência dela, a disposição dos móveis fora estudada por ela e escolhida até à perfeição, os tapetes comprados por ela e o candeeiro da sala a ela oferecido.
A casa era deles e era dela. Era muito dela.
E eles tinham de viver na casa, os dois, sem que esta lhes desse um momento de sossego na lembrança de que ela existira, de que ela era ela, insubstituível, e que ela já não vivia entre eles, que ela tinha morrido.
(personagem construída para o Projecto Curta Metragem)
Susana limpava o estúdio sem grande brio, mas com um rigor mecânico. Tinha 19 anos e trabalhava nas limpezas havia 5. Nunca fora boa aluna, mas a mãe só a tirou da Escola porque certo dia lhe ligaram para o trabalho por um engano ou uma partida maldosa, dizendo que Susana tinha dado entrada no Hospital.
Alzira deixou tudo e foi a correr ter com a filha, que não estava no Hospital. Ainda muito preocupada decidiu ir à Escola confirmar com os seus próprios olhos que Susana estava bem. Mas Susana, apesar de ter a mochila na estante da escola secundária, não estava na edifício e tinha faltado às aulas toda a manhã.
Alzira tinha problemas de coração. E sentiu a taquicardia doer-lhe no peito quando percebeu que Susana podia de facto estar em apuros.
Na altura não havia telemóveis e Alzira ficou sem saber o que fazer, desesperada. Uma auxiliar deu-lhe um chá e a Presidente do Conselho Diretivo sugeriu que fosse para casa e tentasse ligar às amigas da filha.
No dia seguinte soube-se que Susana e outras duas amigas tinham passado o dia em casa de uma delas, a embebedarem-se, e os colegas nunca mais a veriam.
Susana tinha sido levada para casa pelo pai da amiga em cuja casa estavam, bebeda até à inconsciência. A mãe sovou-a na mesma, até se sentir ressarcida do mal que tinha passado nesse dia. e tirou-a da escola, já que ela de qualquer forma não estava a aproveitar o esforço que a mãe, viúva e sem grandes possibilidades, estava a fazer por ela.
A partir de então começou a trabalhar como ajudante num cabeleireiro e a ajudar a mãe nas limpezas que fazia aos dias. Rigidamente controlada por Alzira (que decidira que não podia confiar na filha) durante a maior parte da adolescência, Susana ambicionava mais que tudo fazer 18 anos. Aos 16 começou a trabalhar para uma senhora que gostava muito dela e lhe arranjou uma cunha para ir para a empresa onde estava agora, em que, apesar de ganhar menos do que faria independentemente, sempre tinha um contrato e direitos.
O sonho dos 18 anos era a liberdade. Era o ser "maior de idade", poder fazer o que lhe apetecesse. E Susana cumpriu o seu preceito. Quando fez 18 anos e se tornou coincidentemente o principal ganha-pão da casa porque a mãe teve de pedir uma pensão de invalidez dada a sua condição de cardíaca que se agravava, informou que a partir daí era dona do seu próprio nariz e que a mãe não mais a iria controlar. Que pretendia sair e divertir-se muito e que a mãe não tinha nada, mesmo nada a ver com isso. E Alzira não teve outro remédio senão conformar-se. Valeriam a Susana os anos de inflexível disciplina e intransigência da mãe o resto da vida, onde acima de tudo se obrigava a cumprir as suas tarefas, independentemente do quão bebeda tivesse chegado na noite anterior a casa ou das horas da madrugada a que chegasse. Mas a amargura de sentir o futuro roubado e o rancor pela ausência de compaixão perante uma estupidez da adolescência por parte da mãe nunca mais a abandonariam também.
No dia em que o avô Jaime morreu, Amélia teve um sentimento ambíguo, que não era de todo diferente de tudo o que sempre sentira em relação ao velho.
Nunca se haviam entendido plenamente. Jaime nunca percebera nem valorizara os esforços de Amélia por dar aos netos uma educação de valores sólidos e tradicionais e por construir com Vasco uma família exemplar e honesta. Amélia nunca percebera nem valorizara os esforços de Jaime por fazer dos netos seres pensantes e tolerantes e por querer que o filho lutasse pelos seus sonhos e afirmasse as suas opiniões.
Tinham um perante o outro sentimentos ambíguos de carinho pela forma como sentiam que ambos amavam e cuidavam das pessoas que lhes era mais queridas, e de aversão pela completa oposição dos seus valores e prioridades.
Queriam ambos a mesma coisa: ver Vasco e "as crianças" bem e felizes, mas queriam tornar isto possível de formas antagónicas e incompatíveis, o que resultava frequentemente num "choque de titãs", em que Amélia queria afastar os filhos da influência nefasta e ideias retorcidas de Jaime e Jaime queria afastar o netos dos espartilhos mentais a que Amélia chamava "valores tradicionais".
Acrescendo a tudo isto, Amélia achava a relação de Jaime com Margarida uma aberração da natureza. Claramente, a escritora 30 anos mais nova que o seu sogro não andava com ele pelo dinheiro, porque ele não tinha "onde cair morto", o que a fazia pensar que aquilo devia ser falta de atenção paterna ou carências infantis. Sentia um asco quase espasmódico quando pensava naquele casal e nunca fizera questão de o esconder. Nojo.
Mas apesar de tudo, Amélia era uma mulher de princípios e que fazia questão de exemplar e estoicamente exercer os valores que tanto tentava incutir aos filhos. E achou que quem ama se deve poder despedir.
Amélia achava justo e fez tudo para que Margarida fizesse parte desta última fase da existência física de Jaime. Conversou com o marido que havia decidido excluí-la sem mais satisfações e fez todos os possíveis por forçar Vasco.
Mas, ao contrário do que toda a agente pensava, Vasco não era nem nunca fora um pau mandado.
Era um rochedo que se pode até pisar, mas que nunca se derruba.
E assim, Margarida foi deixada de parte das cerimónias fúnebres de Jaime e impedida de se despedir condignamente do namorado.
Enquanto o marido fora vivo, tentara manter a vontade de mandar e a impaciência contidas, mas depois da sua morte, revelara-se a tirana que sempre fora em todo o seu esplendor.
Na sua casa era dona e senhora, imperatriz. e nada que não fosse na medida, forma e momento que ela determinava podiam acontecer.
Elvira sentia especial prazer no exercício do poder, embora não a procurassem para conselhos tanto quanto ela achava que lhe era devido. Então, tratava de dar a sua opinião acerca de tudo o que via, ouvia e presenciava, fosse ou não chamada para o assunto.
À medida que os filhos cresciam e saiam do seu domínio de força, começavam a decidir por eles, a pensar pela sua cabeça, crescia neles a saudade do pai a quem toda a autoridade e sabedoria eram reconhecidas e a aversão pelas opiniões rápidas e rombas da mãe que não reflectia sobre nenhum assunto muito demoradamente, mas que era inevariavelmente contundente na forma de emitir juizos de valor.
Frequentemente faltava-lhe uma parte fulcral da história e acabava por ser injusta. Mas não saia jamais do seu pedestal nem da sua opinão pré-formada. Mesmo depois de conhecer a história restante.
Os filhos recordariam com mágoa, tareias imerecidas, castigos injustos, invasões de privacidade e espaço despropositadas. E todas estas situações Elvira consideraria normais.
Quando envelheceu foi ficando cada vez mais sozinha, pois insistia em não abandonar o seu orgulho e a sua teimosia, que foram quem mais companhia lhe fez nos últimos anos da sua vida, enquanto tinha conversas baixinho constantemente com o seu marido falecido, a quem fazia queixas de todas as situações que a incomodavam e sobretudo das pessoas que lhe eram mais próximas e que ainda a visitavam.
Dos outros ia perdendo memória.
Convenceu-se que a queriam roubar, que se queriam aproveitar dela. mesmo se eram os outros que lhe traziam alimentos, roupa e outros bens. E começou a desconfiar de todos. Azedou mais do que a solidão por si só tinha conseguido fazer.
Recusava ir para casa de quem quer que fosse pela desconfiança inusitada. Que a queriam envenenar também.
E os outros não tiveram força ou vontade de a contrariar.
Morreu enquanto dormia e a sua casa e todos os seus bens que guardava religiosamente ardiam, num incêndio provocado por uma vela descuidada.
Subiu as escadas até ao primeiro andar da casa de Jaime com o jornal do dia e o pão fresco e tocou levemente à campaínha antes de abrir a porta com as suas próprias chaves.
Entrou directamente para a cozinha e pôs café a fazer, no mimo habitual que concedia a Jaime.
Chamou por ele e, como de costume, não obteve resposta. Jaime dormia pesadamente apenas de manhã, mas não fora habituado a dormir até ao meio dia e considerava uma falta de amor à vida desperdiçar assim os dias, pelo que fazia questão de contrariar sempre o seu ritmo circadiano com a ajuda da namorada.
Margarida, de 35 anos era uma mulher bonita e interessante, escritora de profissão. Escrevia crónicas para revistas e livros, e, apesar de não ter no horizonte ganhar o prémio Nobel, não se saia nada mal na sua profissão.
Gostava de trabalhar perto de Jaime, o amor inesperado e inexplicável que a assolara repentinamente. Conheceram-se na biblioteca, onde o ancião ia buscar livros e ler jornais e revistas e onde Margarida fazia as pesquisas para mais um livro. Conversa puxa conversa e antes que pudesse dar por isso, Margarida estava a jantar com Jaime na sua casa à beira-mar, fascinada pelas suas histórias e tonta do vinho que bebiam, dos charros que fumavam e da companhia que se tornava cada vez mais importante para si.
Da primeira vez que aconteceu fazerem amor, Margarida achou que era uma vez sem exemplo e ficou confusa durante muito tempo. Combateu o que sentia por não achar natural estar apaixonada por um homem com o dobro da sua idade.
Com o passar do tempo optou por colocar o seu bem-estar acima daquilo que os outros poderiam pensar.
Margarida e Jaime eram criaturas de hábitos e circunstâncias muito compatíveis, mas que prezavam muito o seu próprio espaço, ao mesmo tempo.
Apesar de estarem juntos havia já dois anos e dormirem juntos amiúde, mantinham as suas casas e vidas separadas.
Jaime tinha uma vida familiar complicada e Margarida sentia sempre uma grande necessidade de proteger a sua vida dos media que ela mesma utilizava para obter visibilidade para os seus livros.
Uma das coisas que davam especial gozo a Margarida eram os pequenos-almoços com Jaime, em que este, sem as habituais capacidades para a contrariar e contradizer, porque nunca acordava totalmente até umas duas horas depois de ter abertos os olhos do sono, era mais doce e terno. Era nestas alturas em que ele dizia de forma mais desabrida as coisas que a faziam acreditar na relação deles - efémera certamente, mas intensa à sua maneira. Jaime nunca dizia coisas boas "gratuitamente", mas se estivesse ensonado era frequente sair-lhe um "adoro-te" ou um "gosto muito de ti", tão impensado e espontâneo que só podia ser profundamente verdade.
Margarida aprendera a viver com estas pequenas coisas e a adaptar-se de modo a consegui-las ao máximo.
Hoje esmerara-se especialmente. Trazia pão e croissants frescos. Fazia café e aquecia o leite enquanto punha a mesa e o jornal. Como Jaime demorava em se levantar, Margarida fizera ainda sumo de laranja natural e compusera a mesa primorosamente.
Resignada com a ausência de iniciativa de Jaime em sair da cama, Margarida decidiu ir chamá-lo pelo seu pé. Deu-lhe um beijo na nuca, no sítio que ele gostava mais e enfiou-se na cama abraçando-o por trás, com um sorriso traquina de quem sabe que está a fazer uma maldade disfarçada.
Mas Jaime não reagiu.
O horror que Margarida sentiu no momento em que percebeu que o namorado jazia morto na sua cama só se equiparou em magnitude à incapacidade de agir que se lhe seguiu e ao sentimento de insignificância que lhe foi devotado pela restante família de Jaime, o avô Jaime: o filho, nora e netos que sem qualquer respeito ou consideração pela sua dor e pela sua existência a despiram daquela relação, mantendo-a à parte e na ignorância de todos os preceitos e cerimónias fúnebres do homem que amara intensamente nos últimos dois anos.
Quis ser rápida com a entrega do dinheiro na bomba de gasolina e atirou a moeda e a nota que faziam a conta certa do valor em dívida.
E numa fracção de segundos, reparou como os objectos lhe saiam da mão de forma bruta, e sem consideração pela outra pessoa, quase num sinal de desprezo.
E parou.
Ela não conhecia a outra pessoa. Não tinha nada contra o senhor da caixa registadora.
Sentiu aversão pelo seu próprio gesto, pediu desculpa por ter atirado as coisas e deu o seu melhor sorriso.
Foi para ao carro perturbada. Profundamente inquietada por não reconhecer como seu um gesto impensado, questionou-se se estava a tornar numa dessas pessoas frias e frustradas.
Colocou o cinto de segurança e acendeu as luzes. Seguiu devagar para casa, tendo especial cuidado com os outros condutores e peões.
E pelo caminho perguntou-se o que é que se passava consigo que ultimamente se sentia menos ela mesma.
O semáforo ficou vermelho e ela parou, sem o ignorar como de costume. Tinha a mente vazia de pensamentos, mas sentia-se apreensiva e preocupada.
Verde. Seguiu o caminho.
E no momento em que deu o pisca para a sua rua, fez-se luz em si.
Quando alguém era especialmente mauzinho para ela, dizia para si mesma que a pessoa devia estar infeliz no amor, que a vida íntima não lhe devia andar a correr bem. E fez a relação consigo mesma. No espaço de tempo entre descer a sua rua e estacionar o carro, compreendeu que as atitudes que menos gostava em si ultimamente se deviam à forma como a sua relação com Jorge não estava a correr. E pensou em si como pensava nas tais pessoas "mazinhas" e "infelizes", que não eram más em si mesmas, tinham era falta de coragem de procurar o que queriam, de seguir com as suas vidas sem aquele cobertor de segurança, ainda que se tratasse de um cobertor fino e roto.
Puxou o travão de mão e disse-se que se havia coisa que não era, era cobarde.
Desligou o carro e as luzes.
Pausou brevemente antes de tirar o cinto de segurança e sair do carro.
Saiu, bateu com a porta, trancou o carro e decidiu que tinha de acabar a sua relação com Jorge naquele mesmo dia.
Pegou na chave de casa e ao rodá-la na fechadura, sentiu-se feliz por se ter re-encontrado.
A aparelhagem do bar cantava "Lose your keys under the house" na voz de Madeleine Peyroux. O ambiente do bar era a cara dele. A mesma cara porque se tinha apaixonado à primeira vista semanas antes, antes do que viria a seguir.
O ambiente era apenas medianamente iluminado, a estética boémia, as cadeiras desconfortáveis e não combinavam. Ele tinha uma aura de escritor parisiense do princípio do século XX, acossado pelos seus próprios demónios pessoais, de maus hábitos incorrigíveis, cheio de ilusões e ao mesmo tempo, paradoxalmente, descrente da humanidade e do mundo.
"Lose your rhythm, lose your lines, lose your sense of passing time", continuava Madeleine, enquanto ele ia buscar os cigarros.
Ela não tinha perdido a fé na Humanidade. Ela era o seu oposto. Tinha bons hábitos, projectos por sonhos, planos por desejos secretos. Estável e permanentemente feliz. Mas não nestas semanas em que os demónios dele tinham invadido um pouco a sua vida tornando-a um carrossel de sentimentos de euforia e depressão, quase paralisante.
"But if you lose me in your mind I must be saved", tinha apreciado a volta no carrossel e estava grata, embora ligeiramente enjoada.
Sabia-se e sentia-se, finalmente, viva. E um pouco tonta.
"Then lose yourself instead till you remember to forget."
Tinha feito um esforço consciente por não o analisar demasiado enquanto o encantamento durou, mas agora que fora quebrado, via-o tal como ele era. E não conseguia deixar de sorrir.
"Lose your senses, lose your mind, lose your faith in human kind," reconhecia nele os bocadinhos de si que tanto amava e reconheceu o universo paralelo de si mesma que ele representava.
"Lose the chance to find another who'd behave, " reconhecia as coisas que nunca tinha tido coragem para fazer na sua vida, e percebeu que não "tinha de" tantas coisas como achava. Percebeu que a vida podia ser diferente. Percebeu que ela mesma poderia ser diferente, sem assim se perder de si própria ou dos outros.
"Lose the vows we never spoke, lose the punch-line to the joke, " compreendia-o agora melhor do que ele próprio poderia supor. Melhor do que ela imaginava que fosse possível, porque finalmente percebeu que ele era ela mesma noutro momento, noutro contexto, noutra vida.
E que ambos nunca haviam estado destinados a encontrar-se ou a fundir-se, porque isso de alguma forma ia contra as leis da natureza.
"Lose your innocence as if willingly you gave-" Guardou-o com carinho na sua essência e deu-lhe um abraço com a alma toda.
Ele não compreendia, tinha demasiado medo para abrir os olhos ou sequer tirar as mãos da barra em frente do seu assento no carrossel que não podia abandonar. Ficara tanto por dizer, nos pressupostos que ele supunha. E ela mesma não sabia se devia dizer-lhe tudo o que queria, porque - afinal de contas - não se devem estragar os filmes alheios.
"Lose the kettle on the pot, you can lose the best you've got But if you lose me in your heart. I must be saved"
Não lamentava nada do que vivera e finalmente confirmara a sua suspeita de que se não se importasse de fazer más figuras e de deixar transparecer o que era e sentia, se se deixasse invadir pelo que sentia, embora sofresse pelo caminho, não restaria nada de que se arrepender.
Sentir-se-ia em paz, não chorando porque acabou, mas sorrindo porque aconteceu.
Era de resto bem constituído e bonito. Dotado de um físico invejável e de uns olhos verdes a que nenhuma fêmea era capaz de resistir, Elias tinha esse pequeno, pequeníssimo senão.
Estava habituado a ser assediado de forma mais ou menos descarada por mulheres de todas as faixas etárias e géneros. Elias culminava a sua boa aparência com uma cortesia irrepreensível e um charme absurdo. E gostava da "caça", embora tivesse uma sensação ambígua perante a mesma.
Dada a sua condição, desenvolvera ao longo dos anos uma série de estratégias para evitar os olhares de desprezo, risinhos, incredulidades e humilhações a que as mulheres, cruéis, o podiam submeter na intimidade.
Era um amante competente e incansável, fazendo jus ao adágio português, que repetia para si mesmo "enquanto houver língua e dedos, não há medos!". Era fogoso e imaginativo e alternava a penetração que raramente era sentida com toques e beijos e voltas de forma que se notasse o menos possível a sua pequenez. E nunca deixava que o vissem completamente nu.
Embora as suas primeiras experiências sexuais tivessem sido um fiasco humilhante, de há uns anos para cá, Elias gozava de uma reputação brilhante no que tocava ao sexo e era claro para todas as mulheres com quem dormia que não havia qualquer possibilidade de uma relação ou de a experiência se repetir muitas vezes, por isso que "aproveitassem o dia".
Para Elias era impensável que alguma mulher alguma vez o quisesse da maneira que ele era e o simples pensamento de se apaixonar e ser deixado pelo tamanho do pénis, como acontecera no passado, era insuportável. Então, preferia manter o coração frio e as mãos quentes.
Não gostava do Natal. Das luzes de Natal; das músicas incessantes e irritantes e repetidas na rua, no rádio, no supermercado, no trabalho; dos enfeites verdes e vermelhos e dourados; dos intervalos entre os programas de tv prolongados com anúncios de perfumes e marcas e brinquedos. Não gostava de bacalhau cozido. Nem de peru. Fazia alergia aos pinheiros e tinha aversão às árvores de plástico. Achava hipócrita dizer-se que Jesus tinha nascido em Dezembro, quando todos os indícios bíblicos indicavam que ele teria nascido em Março/Abril e considerava o Pai Natal o maior golpe publicitário de todos os tempos. Irritavam-na os mails-tipo que recebia aos magotes e ainda mais - muito mais - a quantidade de sms's enviadas em massa nesta altura do ano e os telefonemas que se "tinham de" fazer. Não gostava de comprar prendas por obrigação e odiava shoppings cheios de gente. Nem a doçaria de Natal lhe era apelativa já que era celíaca e quase todos os doces tradicionais incluíam farinha de trigo.
Noutros tempos tempos gostara de sentir a casa a cheirar a canela e açúcar queimado, de poder deixar os cães entrar na cozinha de casa dos pais como única excepção anual à regra rígida de "cães dormem na rua", de comer todo o chocolate que conseguisse antes de dormir em frente à lareira entre conversas intimistas com as irmãs. Mais tarde gostaria do ritual de pensar na prenda perfeita para o namorado e depois marido, de enfeitar a sua casa de formas criativas, evitando a tradicional árvore de natal e os cânticos repetidos, de pensar e criar novas versões de doces tradicionais sem glúten e do pretexto para partilhar a felicidade com conhecidos, desconhecidos e amigos por igual.
Mas hoje tinha um sabor especialmente amargo o jantar de natal em casa da família onde a mesa tinha exactamente o número de lugares menos um do ano passado. Onde todas as festividades de família a lembravam do que já não tinha. De inventar o que fazer por não ter pretexto para passar tanto tempo à procura do presente ideal, embora lhe fosse inevitável reconhecer nas montras as diferentes opções de presente que ele certamente iria gostar ou que eram "a sua cara". De conduzir sozinha para a terra dos pais e dormir sozinha em frente à lareira. De não ter quem abraçar e com quem dançar músicas que não foram feitas para se dançar, no fim da noite, já um pouco bêbeda, depois de toda a gente se ter ido deitar. De enfrentar o ar de pena disfarçado das suas pessoas queridas.De não ter como fugir da sua pele, da sua vida e do seu natal.
Aos 70 anos, o avô Jaime continuava a gostar das suas pequenas transgressões. Nada lhe sabia tão bem como um prazer roubado.
Os netos com quem fumava charros na varanda de casa (erva de cultivo e cuidado próprios e biológicos) conheciam bem demais como lhe apraziam estas pequenas facadas que espetava na educação convencional que Amélia, a nora, tanto se esforçava por dar aos filhos.
Gabriel e Ana Maria andavam ambos num colégio católico, iam à missa todos os Domingos e eram escuteiros.
Ao avô Jaime, um liberal de esquerda aventureiro isto sempre fizera muita confusão, mas não sentia que tinha legitimidade para interferir. mesmo se isso o fazia pensar que não educara o seu filho Vasco, agora um mero pau mandado da mulher, tão bem como havia suposto.
Quando os netos adolescentes o visitavam, a palavra chave era "vamos falar para a varanda" ou "vamos ver as estrelas" ou "vamos ver o mar", e os três percebiam imediatamente que o caminho estava livre para as suas conversas intimistas, explícitas e frequentemente heréticas com o ancião renegado da família.
Mas Jaime não agradava à nora que percebia os filhos diferentes depois das idas ao avô e isso fazia com que estas fossem tanto quanto possível escassas. E como ele ansiava com sofreguidão as visitas da juventude da família.
Preparava-se cedo, contrariando o seu ritmo habitual. Levantava-se da cama e tomava banho. Queria sempre certificar-se que tinha todas as referências musicais que queria partilhar com os netos, todas as fotografias, livros e filmes que lhes queria referenciar. Guardava a erva mais suave, certificando-se que não era especialmente forte para quando estava com eles.
Se pudesse, se lhe dessem por uma vez carta de alforria e a liberdade de um dia só com eles, prepararia algum prato exótico e serviria do vinho especial que tinha guardado para as melhores ocasiões. Amava aqueles dois adolescentes quase adultos muito mais do que a sua própria vida. e queria beber da sua juventude, assegurando-se que percebiam a liberdade ao seu dispor, as suas possibilidades; que a moral e os limites que lhes eram impostos precisavam de ser questionados. Que tinham de viver. E que o deixassem viver um pouco da sua juventude de forma partilhada.
Jaime era viúvo e tinha uma namorada, Margarida, cerca de 30 anos mais nova que ele, com quem não vivia e que evitava trazer para as reuniões familiares para evitar expô-la ao escrutínio mesquinho e precipitado da nora e para evitar dar a Amélia mais uma desculpa para o privar dos netos.
Os dentes, titânio;
os braços, puro aço;
a vontade, ferro;
o cabelo, prata;
a pele, bronze;
e o coração, ouro.
Jorge Silva vê-se a si mesmo como uma espécie de herói de acção da banda desenhada enquanto toma o duche matinal. Gosta de imaginar que é uma personagem, um herói de banda desenhada e até tem nome para si mesmo: "Metalman", o que lhe permite fazer uma campanha de trocadilhos e respostas mordazes e engraçadas.
Metalman é o seu "guilty pleasure". Quando era mais novo, Jorge desenhava bem e fazia cartoons a pedido dos colegas de turma que lhe veneravam os dotes artísticos e o talento para o teatro.
Mas Jorge era de uma família convencional com larga tradição na área da Gestão e da Economia e foi pressionado pelos pais a fazer um "curso a sério", que teria sempre tempo e oportunidade de explorar os passatempos depois de garantir a sua subsistência com um emprego "a sério".
E portanto, Jorge tornou-se num contabilista medíocre e obeso, de 45 anos, cujo ponto alto do seu dia era sonhar com os heróis de banda desenhada que poderia ter criado e as personagens que encarnaria se não tivesse sido tão ajuizado.