quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Maria Albertina

A avó da noiva manteve o semblante pesado e recusou-se a comer uma fatia de bolo.

A filha virou-se para ela e tentou trazê-la daquele sítio cheio de eletricidade estática para onde também vão os miudos birrentos quando não querem comer a sopa.

"Então, mãezinha? Não faça desfeita à miuda que ela fica triste."

"Não gosto desta gente", disse Maria Albertina como se falasse de um pedaço de couve. Disse "não gosto desta gente" como se a gente se pudesse dividir em grandes blocos e formasse em conjunto uma unidade indivisível, como um pedaço de outra matéria qualquer, um queijo. Se Maria Albertina tivesse dito "Não gosto deste queijo" o drama não existia e a filha dedicada dar-lhe-ia uma alternativa de queijo ou mandava-a comer pão com marmelada em vez disso.

No dia do casamento da neta Joana, Maria Albertina demorou-se a sair de casa e tentou por todos os meios não estar presente. Que lhe doía a cabeça, as costas, o peito. Que estava indisposta. Que não queria sair.

A filha, doutorada em todas as birras que a mãe fazia quando a queriam contrariar, estava precavida e tinha solução pronta para cada uma: comprimido para a dor de cabeça, a possibilidade de andar sempre de carro e uma cadeira especial durante a cerimónia, por causa das dores de costas, a presença de um primo do noivo, médico, para qualquer problema de coração que pudesse surgir. Não ia ficar a fazer nada em casa, e era mais seguro estar acompanhada, se ainda por cima não se sentia bem.

E a velha, vencida e contrariada lá foi ao dia mais feliz da vida da neta com a disposição de quem se dirige ao veterinário para mandar abater o cão.

"Não gosto desta gente." - disse novamente Maria Albertina, desta vez um pouco mais alto.

Joaquina, a filha, corou muito e apertou o braço da mãe, encostou a cara na sua, olhou-a nos olhos com ar de leoa e disse-lhe séria e quase ameaçadora para parar com aquilo e que nem pensasse em fazer uma cena e estragar o dia à Joaninha.

Maria Albertina encheu os olhos de lágrimas e deixou-os vazar pela cara abaixo silenciosa e engasgada.

Joaquina estava cada vez mais com um menino nos braços. Entre o embaraço de parecer má filha por ter a mãe quase a fazer beicinho e a chorar aparentemente por algo que ela lhe disse de forma ríspida, a vergonha de ter a mãe a começar aos impropérios a dizer que não gostava "daquela gente" e a deixar ficar mal a família toda, e a preocupação de ter a mãe naquele estado mal disposto e frágil, não sabia bem para que lado se virar.

"Então, mãezinha?" disse depois de uma pausa segurando-lhe o braço com a mesma mão, mas agora sem o apertar, afagando-o como se segurasse nela por inteiro naquele simples gesto e a embalasse.

Maria Albertina tirou um lenço bordado da carteira preta das festas, enxugou as lágrimas e fungou o mais silenciosamente que pode. Lembrou-se que era uma senhora e que ainda não estava senil. Endireitou-se na cadeira. Disse um "deixa estar" reconfortante à filha, como se a Maria Albertina de outrora viesse tomar o seu lugar à mesa em vez da velha mimada e birrenta dos últimos tempos.

Maria Albertina recusou com firmeza o bolo na mesma, mas jurou a si mesma que não ia estragar o dia à neta.

A verdade é que já não era de agora que Maria Albertia sentia a Morte rondar-lhe a porta. Alfredo já tinha falecido havia mais de 10 anos, as meninas estavam quase todas casadas, ela já não vivia na sua casa, já era um parasita noutra casa onde as regras eram as que lhe impunham e onde a sua vontade só se fazia valer como nos garoticos - com pedinchice, ronha, birras ou chantagem.

Sentia a Morte rondar-lhe a porta e queria ter a certeza que partia com a missão cumprida e tudo bem entregue.

Já tinha começado a fazer partilhas em vida, embora soubesse muito bem o que pensavam os filhos desta sua subita vontade de dar coisas: que estava senil, que desistia de viver. E pelas suas costas desfaziam o que ela tinha feito, lamuriavam as coisas que ela dava e agradeciam quando vinha alguém devolver algo de valor que ela lhes havia ofertado. Não interessava. Os seus dias estavam contados e ela não queria partir sem acertar as suas contas.

Maria Albertina sentia saudades do tempo em que tinha uma casa para fazer o que bem lhe apetecesse, dos dias em que não tinha de ter uma ama seca permanentemente atenta aos seus movimentos, não fosse ela fazer algum disparate no meio das tropelias que às vezes magicava no seu novo papel de criança travessa.

Mas o que ela sentia mais falta de tudo era de Alfredo, o marido. o companheiro. o amigo. De beber leite morno com ele à noite antes de irem para a cama. de fazer as palavras cruzadas com ele aos domingos, nas manhãs de preguiça na cama. dos extras que ele trazia de vez em quando com o pão que ia buscar nas caminhadas depois de almoço: flores silvestres, amoras, camarinhas, folhas bonitas de outono. uma vez chegou mesmo a trazer um cachorro pequeno muito esfomeado e assustado que provavelmente se teria perdido da mãe. de lhe abrir a cama e de por lá um saco de água quente para ele não se arrepiar nos dias de inverno. de o chamar para a mesa depois de por o lanche. de fazer cozinhados enquanto ele, sentado na mesa da cozinha folheava os "Doze Meses de Cozinha" e lhe lia as receitas.

No dia em que deu a Joana o seu livro de cozinha predileto, depois de ser anunciada a boda, fê-lo propositadamente em frente ao noivo. Ofereceu a sua preciosidade com uma casualidade ensaiada, como se fosse apenas mais um capricho de velha semi senil e entregou-o, na esperança secreta de vislumbrar uma vez mais a cumplicidade que tinha com o seu Alfredo numa troca de olhares de Joana e Marco, num afagar da mão de um deles, num comentário entusiasmado, numa qualquer expressão daquela marca de afeto específica e indisfarçável que é incondicional, incontestável e cúmplice.

Entregou o livro e os olhos de Joana brilharam emocionados. O livro largo e pesado transportou-a para um tempo que nunca iria voltar e deu-lhe a imagem exata dos dias de festa em que a avó era nova, ela era pequena e, de baixo para cima, via maravilhada bolos a serem feitos num processo mágico qualquer, com um feitiço que o avô lançava e que a avó concretizava entre os balcões da cozinha e o forno. Os balcões acima do seu campo de visão, o bolo que crescia misteriosamente no forno, ao seu nível, mesmo à sua frente:

"- não te encostes ao forno que te queimas, Joaninha, sai daí".

Transportou-a para cima de um banco de cozinha alto e sem ninguém a segurá-la, a decorar bolos com chantilly e bolinhas prateadas  com a ajuda da avó e da sua manga de pasteleiro que fazia rosáceas e flores magníficas com os mais variados sabores, texturas e cores.

Olhou para Marco e ele já estava de saída para ir ter com o sogro e discutir o jogo de futebol. Joana chamou-o para lhe explicar o que é que aquele livro era, mas ele encolheu os ombros e reduziu-lhe a significância no mesmo instante.

E nesse momento, Maria Albertina, desfeiteada pelo desprezo do genro-neto que a tomava por uma velha esquecida e pouco importante, e que nem depois de a neta se sentar ao seu lado e mostrar entusiasmada o tesouro que tinha nas mãos deixou de olhar para a televisão, concluiu que aquele moço não merecia a sua Joaninha. Não era digno daquele pedaço de si e que a sua parte daí, ela não lha cedia. E nunca mais conseguiu encará-lo nem gostar dele. Achou que ele nunca faria companhia à neta nos momentos menos bons, tornando-os especiais, que ele não lhe dava o valor que ela merecia, que ele era um egoísta e um diabo.

E nunca mais gostou dele. E quanto mais não gostava dele, mais implicava com tudo o que ele fazia, tudo o que ele dizia, tudo o que ela percebia da relação deles. Que era podre. que era ele que mandava na relação. que a neta não tinha uma palavra a dizer. que ela ia ser uma pobre infeliz.

E isso era algo que Maria Albertina, agora que sentia a Morte tão perto não conseguia suportar e que na sua veste de criança mimada expelia sem pensar nas consequências como se cuspisse a sopa passada que não quer comer. Sem reparar que a sujeira que fazia eram outros que a tinham de limpar e que ninguém queria estar por perto de uma bomba-relógio daquelas.

Mas no dia do casamento da neta, e depois de se ver refletida nos olhos de leoa da filha e de se ouvir a começar uma birra com "não gosto desta gente", Maria Albertina foi-se buscar ao fundo da gaveta mais funda da sua alma na sua forma mais senhoril e educada.

Mordeu o lábio e engoliu o orgulho e as certezas. O seu lugar era de convidada, apenas e só - e era assim que se ia comportar: como se deve. Cumprimentou os noivos e brindou com a família. Não foi hipócrita e celebrou a felicidade da neta, que estava radiosa e deslumbrante.

E aquele acabou por ser um dia muito bom para todos.

Já mesmo no fim da festa, fosse pelo esforço férreo de controlar a vontade para não dizer à neta que ela merecia melhor e que se podia sempre separar, talvez pela epifania de que a alegria daqueles que amamos é mais importante do que as certezas que achamos que temos sobre a vida ou por se permitir pensar que estava errada e que a neta até podia ser muito feliz e ela ter visto mal a situação - que já sabia como era quando tomava alguém de ponta. se calhar, pela descoberta daquele momento como uma das raras e últimas ocasiões em que tinha a família toda junta; talvez fosse da muita felicidade que sentiu quando abriu o semblante e permitiu que outros a viessem cumprimentar e que pouco a pouco e um de cada vez os diferentes familiares viessem conversar um pouco consigo; pode ter sido pela montanha russa de emoções que viveu, ou ainda - porque não - porque simplesmente chegara a sua hora, Maria Albertina fechou os olhos num súbito e irresistível cansaço. E enquanto esperava que a filha fosse buscar o carro, morreu feliz, cheia do mimo que lhe davam e a pensar no seu Alfredo, algures à sua espera.


1 comentário:

Anónimo disse...

:-)
(muito bom)