sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Verdade ou consequência?

Lá fora o temporal parece o lobo mau da história dos três porquinhos, a soprar e a soprar a ver se deita as casas abaixo.

Verdade.

Já começou a trovejar embora não se vejam relâmpagos. E está a ficar escuro.
Daqui a mais ou menos duas horas tenho de sair daqui e pegar no carro para subir a montanha mal iluminada em direção a casa.

Verdade.

Não gosto de conduzir assim. Quer dizer, eu gosto do mau tempo, e até gosto do mau tempo quando estou a conduzir, como se o deus das tempestades ele mesmo fosse a fazer-me companhia no caminho.
Até gosto de atravessar nevoeiros.
Antigamente não gostava, mas depois li num livro sobre cerâmica chinesa que os dragões são criaturas mágicas cujas manifestações corpóreas são as neblinas. Temos um dragão de montanha quando é uma neblina na montanha, um dragão de rio, quando é uma neblina num rio... e por aí adiante. Os dragões de cidade devem ser os mais tristes, coitados, sem espaço para espraiarem as suas escamas e as suas pernas, sem poderem voar baixinho à vontade e em sossego.
Gosto de atravessar dragões e faço-o sempre com a mesma solenidade respeitosa e uma espécie de carinho que é o mesmo que eu dirijo ao meu amigo, o deus das tempestades.

Verdade.

Mas hoje há um conjunto de circunstânicas de que eu não gosto. Além do mau tempo que eu gosto de ver, mas cujas palavras são sempre demasiado ásperas e desajeitas, sempre um bocado a puxar ao melodramático, está muito escuro. E a estrada por onde eu vou quase não é iluminada em lado nenhum. Não gosto de conduzir assim, na escuridão total; parece que vem o escuro comer-me o carro, parece que a traseira do carro está a ser abocanhada pela noite ou um fantasma negro e eu não gosto.

Verdade.

Mas tenho andado distraída e por isso o trabalho hoje alonga-se até às horas que ele decidir, até ele dizer que está feito e que eu posso ir para casa.

Consequência .

Na verdade, não me importo muito de ficar até mais tarde no trabalho, hoje. Não sei se hoje conseguia encará-lo com as suas mazelas, a sua tentativa bem disposta de disfarçar a indisposição e as naúseas, as aftas que tem na boca, o cansaço e as dores constantes que nega e mente e não engana ninguém.

Verdade.

Não sei se conseguia mais um serão de fazer de conta que estou bem disposta e ótimista. Não sei se conseguia mais uma conversa à lareira com a minha mãe, a descansá-la que vai correr tudo bem.
Não sei se me custa mais o cansaço físico de estar sempre a correr para o Porto para o levar aos tratamentos e exames, se o cansaço existencial de imaginar que existir pode ser sem ele.
O cansaço mental de me preparar para uma perda que pode não acontecer - e que não pode acontecer.
O desgaste psicológico de negar que tudo pode correr mal e o cançaso de estar sempre a torcer muito para que tudo corra bem.

Verdade.

E este cansaço, que me acossa e que me culpa a cada passo, - porque eu não tenho o direito de estar cansada, porque eu não estou doente, porque eu é que sou a rocha e é preciso agora que alguém o seja, porque eles precisam de quem lhes dê força e essa pessoa sou eu, tenho de ser eu - não me deixa dormir. Não me deixa comer. Não me deixa distrair. Esta mistura tóxica de medo, cansaço e uma culpa que eu não sei de onde vem - dos momentos em que não estive? Do que podia ter feito e não fiz? De não poder fazer mais? Do quê? - deixam-me acordada mas não desperta.

Consequência.

E com isso o trabalho vai-se arrastando numa mistura de lentidão de exaustão e procrastinação por ter medo de ficar sem nada que fazer, sem nada mais que ocupar a minha mente do que os fantasmas da doença dele e da possibilidade de ele não existir mais. De ele sofrer e eu não poder fazer nada senão assistir impotente.

Consequência.

Estas são as coisas que eu não posso contar a ninguém, e que conto apenas ao deus das tempestades em dias como hoje, quando choro no seu ombro. E ele - amigo de velha data - chora comigo e urra tudo o que eu não ouso, tudo o que eu não posso. E faz as tempestades que sopram e chovem como se quisessem deitar tudo abaixo.

Simpático, ele. Um bocado extravagante, mas querido.

Não se pode dizer o mesmo do meu outro companheiro de viagem de hoje, o negrume silencioso que me esconde o caminho que eu já fiz e que me impede de olhar para trás, para onde eu já estive. Que me esconde o passado bom e em segurança de que eu tanto preciso. Que me abocanha o carro sem me deixar ver o que o consome e sem que eu possa fazer nada para o impedir.

Verdade ou consequência?


1 comentário:

Octávio Miguel Félix disse...

E assim contada a vida perdura pela verdade. Beijo.