sexta-feira, dezembro 30, 2011

Flávio

Flávio tinha um problema. Se há pessoas que de nervosas coram, outras que ficam às manchas, outras que suam ou que ficam com as mãos frias... A Flávio o nervosismo dava "a volta à barriga".

Em periodos de grande tensão dava por si a ter de ir muitas vezes e com muita urgência à casa de banho e - quando conseguia controlar o "ir à casa de banho" propriamente dito - o seu organismo vingava-se dele libertando ventosidades tão silenciosas como letais que o pobre Flávio não conseguia controlar.

Lembrava-se de situações em que lhe sucedera algum flato involuntário publicamente e em que outras pessoas comentavam "eh pá, não sei quem largou isto, mas é melhor ir ao médico, que esta pessoa está podre por dentro! Isto só pode ser alguém muito doente. A morrer, mesmo."

Esta sua característica, embora não fosse especialmente usual porque Flávio era uma pessoa calma que vivia uma vida o mais possível pacata, causava-lhe grandes embaraços e vergonhas e fazia com que ele tivesse grandes problemas no plano romântico, já que nada o deixava tão nervoso como estar perto da pessoa amada.

Por esta mesma situação de há uns tempos para cá, os ensaios do coro tinham-se tornado uma verdadeira tortura. Conhecera Marina havia algumas semanas e já estava caidíssimo pela contralto que por sorte ou por azar ficava muitas vezes à sua beira nos ensaios.

Dada a antiguidade da sua condição, Flávio já dispunha de uma série de técnicas para evitar o embaraço de lhe ser apontado o dedo pelo mau cheiro de uma sala inteira cheia de gente. Contraia os glúteos, sustinha a respiração, apertava a barriga, cruzava as pernas, ou concentrava-se numa coisa completamente diferente - como por exemplo a cadela vadia "Pipoca" que a D. Elisa havia acolhido e que assistia a todos os ensaios do coro com grande atenção no canto da sala. Se a situação fosse completamente impossível de controlar, usava o plano B de ir à casa de banho ou à varanda ou ao pátio, ou a qualquer sítio onde não estivesse mais ninguém. Se isto não fosse possível, tinha ainda a opção de circular tanto quanto pudesse e de forma estratégica de modo a que não se percebesse quem estava na origem do intenso mau cheiro.

Lembrava-se entre o ruborescer e o sorrir de malandro da festa de natal da empresa, no ano em que se apaixonara pela secretária da direção. Teve um ataque incontrolável de gases e não podia sair do recinto porque chovia desalmadamente. Nesse dia deambulou pela festa de forma inteligente de modo que se instalou nos presentes a ideia de que o cheiro fétido que se entranhava na sala só podia ser do próprio edifício. E lembrava-se bem da cara do administrador que se virou para o seu chefe e exclamou "ó engenheiro, então o problema da fossa não tinha ficado resolvido na semana passada??"

Mas neste momento a situação era completamente diferente e muito mais dramática. Não havia engenheiro para lhe arcar com as culpas e Marina estava mesmo ao seu lado enquanto cantavam o Haleluia de Haendel. Como esta nunca levava as partituras para os ensaios, estava a ler ora pela partitura de Flávio, ora pela da colega do lado.

Flávio estava literária e literalmente num aperto. O contacto tão próximo com a amada, que lhe roçava displicentemente o braço e lhe sorria com cumplicidade por este condescender na sua distração e a deixar ler pela sua página, acelarava-lhe o coração e demais processos fisiológicos.

Respirava pausadamete tentando controlar-se. Distraía-se olhando para a cadela que era castanha e patusca. E rezava para que o Haleluia acabasse rapidamente para que ele pudesse ir à casa de banho.

Já quase no final da peça, a mestrina virou-se para eles ordenando "Fortissimo!", e a exigência de forçar os músculos da garganta e peito para cantar mais alto, nos derradeiros "Haleluias" tornaram inevitável a catástrofe.

Todo o esforço foi por água abaixo, à medida que o gás que reprimira desde o início do ensaio, fermetando e ganhando uma potencia verdadeira épica se libertava à sua rebelia, em pleno climax do Haleluia.

A música acabou e começaram os risinhos. Os companheiros de coro entreolhavam-se e sorriam, tentando controlar a gargalhada que queria sair. Olhavam para ele e continham o riso.

Até que o cheiro intenso e nauseabundo chegou a D. Elisa, a mestrina opinativa e sem papas na língua que cada vez mais fazia uso do seus estatuto de septuagenária para dizer o que melhor entendesse a quem quer que fosse.

D. Elisa, que sempre fora muito expressiva, contorceu a cara num esgar de nojo e nausea, olhou para todos com ar de reprovação, e depois virando-se para o filho mais velho, apontou para o canto da sala e disse:

"Pipoca! Ai o raça da cadela! A cadela come-me as cascas do queijo e depois é isto. Um cheiro que não se aguenta! Já lá para fora Pipoca. Ai! A culpa é tua, Filipe - apontando para o filho mais velho - dás as cascas do queijo à cadela e depois é isto. Intervalo para toda a gente a ver se isto areja!"

Marina continuava a sorrir trocista e cumplicemente para Flávio, que se percebeu apanhado em flagrante delito. E achou perdida para todo o sempre qualquer esperança de uma relação com a doce Marina.

No meio da sua vergonha e embaraço, Marina puxa-lhe o braço e com o ar mais trocista e malandro do mundo sussurra-lhe ao ouvido:

"É nestas alturas que eu dou graças ao Senhor pela minha sinusite!! Enquanto que vocês estão para aí todos aflitos com o cheiro da Pipoca eu estou aqui na maior!"

Flávio olhou-a, sorriu rendido e aliviado e percebeu que se calhar, se calhar, Marina era mesmo a mulher da sua vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

LOL LOL LOL

Está bem esgalhada esta flatulenta estória!

Coitado do Flávio! Em todo o caso, espero que a Marina não se lembre de fazer termas, para curar a sinusite. A coisa podia acabar em divórcio.

Por outro lado, o Flávio bem que podia recorrer à indústria cosmética.

Eu conto...

Era eu um pirralho do 2º ou do 3º Ciclo do Ensino Básico quando, um dia, me deu para assaltar os perfumes de um primo mais velho que estava a passar uma temporada em casa dos meus pais.

Quando pus um pouquinho da coisa no meu corpinho imberbe, bem que a coisa não me cheirou lá muito bem mas, para todos os efeitos, era um perfume.

Ora, por essa altura, costumava ir para a escola com um outro amigo, que passava todos os dias em minha casa. Foi esse o caso, uma vez mais.

E, ainda não tínhamos percorrido metade do caminho, já ele estava a olhar para mim de lado e a comentar:

"Eh pá, JP!!! Mas tu deste um traque ou quê? Cheiras mesmo a m....!!!"

Pois, de facto, confirmaram-se as minhas suspeitas: o raio do perfume tinham uma certa proximidade odorífera com aquilo a que chamamos um flato!

É o que dá assaltar os perfumes alheios! Escusado será dizer que, durante alguns anos, não quis ouvir falar de, ou antes, cheirar, perfumes.

Infelizmente, não me recordo da marca do dito cujo perfume.

Se soubesse, deixava a minha recomendação ao pobre do Flávio. Assim, sempre que se descuidasse, podia desculpar-se, alegando ser culpa do excesso de perfume!

Beijocas da cidade neve!!!

JP
:-))