sexta-feira, janeiro 13, 2012

Gomes

Tinha opiniões sobre tudo e achava-se um homem moderno, dos dias de hoje. Evoluído, informado, liberal, de mente aberta.

E não obstante, toda esta filosofia de ser um homem esclarecido, na vanguarda do seu tempo, capaz de conversar sobre qualquer coisa, em casa, Gomes era um homem mandão. Dizia-se a favor da igualdade, mas às mulheres que tomavam a iniciativa numa relação ele chamava de oferecidas e dizia "nunca pensei". Era a favor do aborto por motivos mais egoístas do que podia admitir. Dizia-se a favor do casamento homossexual desde que eles mantivessem a sua vida dentro da casa deles. Reclamava que era um libertário, mas era-o apenas das liberdades que lhe interessavam.

Dizia meio a sério, meio a brincar que "lá em casa é tudo muito equilibrado: eu sujo, ela limpa, eu gasto, ela paga...". E no meio das discussões mais acesas, quando se enervava muito, por vezes até lhe saia a frase icónica do seu pai "andas-me a perder o medo".

Gomes dormia como um rei no meio do seu domínio: a mulher debaixo de um braço e a gata do outro. E não gostava cá de zaragatas. São sabia que o seu lugar era à direita, a gata sabia que o seu lugar era à esquerda.

Acordava de manhã, religiosamente, apesar de detestar as manhãs, e ia sempre para o trabalho, estivesse como estivesse, feliz ou infeliz, doente ou sadio. Em 20 anos de trabalho faltou duas vezes. Em ambos os casos estava no Hospital.

A mulher fazia-lhe o café e o pequeno almoço e mantinha o silêncio na casa porque Gomes, mais do que os benfiquistas, odiava as manhãs.

Vestia a camisola interior caviada que tinha em duas cores: ou brancas ou pretas que usava por cima da barriga proeminente e por baixo das camisas. Gostava de vestir bem, e usava sempre perfume. Mesmo quando ia para os trabalhos mais sujos de pichelaria, gostava de estar apresentável por baixo do fato-macaco - até porque nunca se sabe quando se vai encontrar alguma freguesa mais fresca ou necessitada.

Gomes gostava de lançar charme sobre todas as mulheres, essas criaturas que dissessem o que dissessem, não o enganavam. Ele não era um puto inocente e da operária fabril à advogada, ele sabia o que a casa gastava. Já tinha vivido qb e orgulhava-se muito disso.

Considerava-se um homem do mundo e citava orgulhosamente António Aleixo para dizer que se tinha formado na Universidade da Vida. Considerava que ir às meninas ocasionalmente não era um ato de machismo antiquado, antes uma questão social, porque ia com os amigos (esses sim, gente antiquada e machista) a convívios e despedidas de solteiro e gostava de se integrar com o grupo, eram uma "pessoa social"; além do que sempre aprendia algumas coisas e - mais ainda - ensinava umas quantas àquelas mulheres que achavam que eram "da vida", mas que comparadas com ele eram umas miudas.

E assim Gomes vivia no limbo dos dois mundos que residiam nele: a modernidade de que queria ser parte e o homem à moda antiga que era na realidade. Como se a sua razão e o seu coração habitassem dois mundos distintos.

Só que independentemente de perceber que não era a pessoa que aspirava ser, nas suas ações mais básicas, corriqueiras e instintivas, nas suas opiniões sentidas, nas decisões que acabava sempre por tomar, Gomes era uma relíquia de homem, um homem à antiga, daqueles que já não se fazem mais.

E que não se fazem mais por algum motivo - chama-se evolução.

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