"Quero-lhe partir a cara de cada vez que ela me fala, de cada vez que ela comenta uma coisa qualquer minha no facebook, de cada vez que recebo uma mensagem comunitária em que ela fala à bebé.
"Puka munina gota munto de ti, nunhé?"
Quero-lhe ir à cara, pronto, doutor, é isso, quero-lhe partir aquele focinho."
Marina já fazia psicoterapia com Hugo há mais de meio ano.
"Hmmmm"
Hugo vocalizou um incentivo neutro para Marina continuar a falar. Eram típicos estes acessos de raiva sem razão aparente nesta cliente. Tinha sido a forte emocioanlidade e a dificuldade em reagir friamente perante situações de interacção uma das principais razões de Marina o ter procurado. "Sou demasiado impulsiva, tempestuosa" dissera ela na entrevista de avaliação terapêutica.
"Quer dizer, doutor, eu não lhe quero bater, não tenho interesse nenhum em chegar a vias de facto. Mas muitas vezes, quando estou sozinha, imagino que lhe dou um par de estalos e as coisas que gostava de lhe dizer."
A possibilidade de estar perante alguém com uma perturbação de personalidade borderline ocorrera-lhe num primeiro momento. Chegou mesmo a perguntar-lhe se ela estivera envolvida em episódios de violência física, mas a sincera estranheza aversiva com que esta respondeu à questão deixara-o logo na altura com a impressão que mantinha até ao momento, de que Marina simplesmente vivia as coisas com uma intensidade momentânea descabida, mas era fundamentalmente inofensiva.
"Hmmmm"
Hugo procurava manter uma atitude de especial neutralidade com Marina. Sabia que isso a enervava e, embora tivesse fundamentação terapeutica para esta atitude, admitia para si mesmo que o divertia enervá-la com esta atitude. E gostava de esticar a corda.
"Sinto que está tensa, Marina."
Hugo percebeu um esgar de vitória em Marina. E apreciou como ambos jogavam o mesmo jogo de gato e rato por entre os conteúdos das conversas, replicando as dinâmicas de Marina no seu quotidiano.
Marina respondeu com "Hmmmmmm"
E Hugo não conseguiu deixar de sorrir divertido. E de pensar como gostava do seu trabalho, como o considerava desafiante e interessante. Que sorte tinha por poder lidar com pessoas tão diferentes e que lhe davam luta, sem se aperceberem que estavam a desemaranhar os seus próprios novelos.
Mexeu-se na cadeira, ajustando a sua posição, inclinou-se para ela e perguntou, olhando-a directamente nos olhos:
"Fale-me dessa situação."
E pronto,com uma simples questão acabara com a ilusão da cliente que achava que o tinha vergado e feito perder a calma.
Marina, com um ar perfeitamente incrédulo e mesmo ultrajado, desatou de forma emocionada a descrever como o processo terapêutico e a neutralidade do psicólogo a irritavam, como ela nunca sabia o que ele estava a pensar, como não sabia o que ele estava a perguntar e muito menos o que responder a maior parte das vezes. E que ela, por seu turno dizia tudo o que lhe passava pela cabeça, sem restrições; ela não tinha segredos para ele. E que acabava por não perceber muito bem o que é que andava para ali a fazer se ele não lhe dizia nunca merda - desculpe doutor - coisa nenhuma, se não lhe dava qualquer solução.
Hugo ficou feliz por finalmente ver expostas as ideias que sabia que Marina alimentava há algum tempo e decidiu provocá-la ainda mais:
"Então porque é que volta?"
Hugo sentia-se sempre como um jogador de vólei que faz o bolar: ele atirava a bola com perícia, agilidade e convicção, mas depois ficava de olhos fixos nela, torcendo para que não se desviasse da rota pretendida e não fosse bater na rede. Desta pergunta poderia surgiu absolutamente qualquer coisa. Até a agressão que não esperava.
Mas Marina permaneceu em choque e depois de uns momentos sem conseguir articular palavra, respondeu:
"Oh doutor, francamente..."
"Sim?"
Confirmou a pergunta com mais confiança.
Hugo sabia que Marina não tinha uma resposta para aquela pergunta. Não tinha. Pelo menos nada que fosse coerente com a explosão anti-psicologia que acabara de ter.
"Porque isto me ajuda." disse finalmente a cliente e em voz sumida.
"Como assim?" perguntou neutralmente o terapeuta, já sem provocar, apenas querendo que Marina reflectisse sobre o processo terapêutico.
"Porque saio daqui aliviada. Parece que me tiraram um peso de cima. Porque lhe digo a si o que não tenho coragem de dizer a mais ninguém. Mesmo que o doutor não me diga coisa nenhuma relativamente à forma como devo agir. Eu sei que a terapia me faz falta e sei que estou melhor. Sei que penso mais claramente depois de falar consigo."
Hugo sorriu e depois deste desvio relativamente à questão central, achou que devia subrepticiamente voltar ao argumento principal da consulta.
"Hmmmmm. E em relação à sua amiga?"
"Amiga? Mas ela não é minha amiga!" - Marina soltou a frase e parou, reflectindo.
"Ela não é minha amiga. É só uma pessoa que eu conheço" disse novamente como se quisesse cimentar a recém-descoberta verdade.
"Hmmmmm" - vocalizou Hugo, disfarçando o sentimento de vitória e satisfação por a cliente ter chegado à conclusão que ele desejava desde o princípio da consulta.
"Ora nem mais, então ela não me devia conseguir afectar desta maneira, não é?"
(a situação pelos olhos de Marina em http://personifixar.blogspot.com/2010/10/marina.html)
2 comentários:
;)gosto mt desta!
O efeito duplamente terapêutico da reflexão: a auto-determinada e a externamente espelhada...
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