sábado, outubro 09, 2010

Marina

"Quero-lhe partir a cara de cada vez que ela me fala, de cada vez que ela comenta uma coisa qualquer minha no facebook, de cada vez que recebo uma mensagem comunitária em que ela fala à bebé.
"Puka munina gota munto de ti, nunhé?"
Quero-lhe ir à cara, pronto, doutor, é isso, quero-lhe partir aquele focinho."

"Hmmmm"

Marina enervava-se e constrangia-se sempre com as vocalizações sem palavras do psicólogo. Que raio é hmmm?!!

"Quer dizer, doutor, eu não lhe quero bater, não tenho interesse nenhum em chegar a vias de facto. Mas muitas vezes, quando estou sozinha, imagino que lhe dou um par de estalos e as coisas que gostava de lhe dizer."

"Hmmmm"

Outra vez o hmmm. Marina enervou-se novamente, sem verbalizar o quanto a  incomodava aquela atitude neutra do terapeuta.

"Sinto que está tensa, Marina."

Finalmente! Aleluia! Cinquenta euros de consulta que não eram só para ouvir gemer e grunhir e ver acenar com a cabeça e bufar!

"Hmmmmmm"

Ora prova lá do teu próprio remédio, a ver se gostas ó doutor!, pensou com os seus botões.

O terapeuta sorriu, mexeu-se na cadeira, ajustando a sua posição, inclinou-se para ela e perguntou, olhando-a directamente nos olhos:

"Fale-me dessa situação."

Marina, incrédula no que estava a acontecer e com menos que confiança que nunca nessa treta da psicoterapia desatou de forma emocionada a descrever como o processo terapêutico e a neutralidade do psicólogo a irritavam, como ela nunca sabia o que ele estava a pensar, como não sabia o que ele estava a perguntar e muito menos o que responder a maior parte das vezes. E ela, por seu turno dizia tudo o que lhe passava pela cabeça, sem restrições; ela não tinha segredos para ele. E que acabava por não perceber muito bem o que é que andava para ali a fazer se ele não lhe dizia nunca merda - desculpe doutor - coisa nenhuma, se não lhe dava qualquer solução.

"Então porque é que volta?"

Ora, este espertinho estava-se a habilitar, realmente. Então ela a pagar-lhe 100€ por mês e o gajo pergunta assim sem mais nem menos porque é que ela volta? E se ela percebe que não precisa de voltar? E se ela decide mudar de terapeuta? Ou melhor, passar para um psiquiatra que ao menos sempre lhe dá medicamentos e é um médico a sério? Que filho da puta.

Mas permaneceu em choque; depois de uns momentos sem conseguir articular palavra, Marina responde:

"Oh doutor, francamente..."

"Sim?"

Marina não tinha uma resposta para aquela pergunta. Não tinha. Pelo menos nada que fosse coerente com a explosão anti-psicologia que acabara de ter.

E o gajo em silêncio, imperturbável.

"Porque isto me ajuda." disse finalmente e em voz sumida.

"Como assim?" perguntou neutralmente o terapeuta.

"Porque saio daqui aliviada. Parece que me tiraram um peso de cima. Porque lhe digo a si o que não tenho coragem de dizer a mais ninguém. Mesmo que o doutor não me diga coisa nenhuma relativamente à forma como devo agir. Eu sei que a terapia me faz falta e sei que estou melhor. Sei que penso mais claramente depois de falar consigo."

"Hmmmmm. E em relação à sua amiga?"

"Amiga? Mas ela não é minha amiga!" - parou e reflectiu no que acabara de dizer "ela não é minha amiga"

"Ela não é minha amiga. É só uma pessoa que eu conheço" disse novamente como se quisesse cimentar a recém-descoberta verdade.

"Hmmmmm"

"Ora nem mais, então ela não me devia conseguir afectar desta maneira, não é?"


(a situação pelos olhos de Hugo em http://personifixar.blogspot.com/2010/11/hugo.html)