terça-feira, outubro 12, 2010

Cremilde

Apesar da vocação maternal e espírito protector que a tornaram a verdadeira matriarca da família, nunca teve filhos.
Em vez disso, adoptou os irmãos mais novos e os sobrinhos, quase todos afilhados, não por acaso.
Fisicamente, madrinha e afilhada eram e são muito parecidas: maxilar largo, nariz igual e mais alguns traços indubitavelmente familiares. Partilhavam uma relação inequívoca e indisfarçável de cumplicidade e afecto.
Era de tal modo óbvia a sua parecença e carinho que sempre que passeavam juntas por Barcelos, e apesar de Cremilde ser uma pessoa bastante conhecida na cidade, quando encontrava alguma amiga ou conhecida a pergunta era incontornável:
"É sua filha?"
Era um procedimento tão costumeiro que Helena se habituara a brincar com o assunto e divertia-se respondendo
"Sim!"
Ao mesmo tempo que ela respondia
"Não."
Depois, Cremilde virava-se para Helena e dizia "Oh Lena!" e para a outra pessoa "É tão patarata! É minha sobrinha/afilhada".
Se estivessem com tempo e a pessoa sorrisse, Helena insistia dizendo
"Oh mãe, lá estás tu a renegar-me! Não percebo porque é que tens vergonha de mim!" - e depois com um ar muito sério para outra pessoa "Não conta a ninguém que tem uma filha, é impressionante."
Acabavam sempre a rir desta diabrura que ela repreendia com o sorriso feliz e orgulhoso de ter uma sobrinha/afilhada que insistia em se passar por sua filha.

Naquela Quinta-feira, Helena seguiu o pai ao gabinete da médica que "queria falar com alguém da família da paciente". Havia uma estudante de Medicina com ela que observava ambos como aos peixes de um aquário.
A médica deu a notícia da irreversibilidade dos danos devagar e com suavidade, como quem ministra uma injecção de penicilina, já com muita experiência.
Foi suave, mas firme: ia acontecer o pior.
À medida que as frases se sequenciavam da maneira que os "Psis" ensinam que se deve fazer, as lágrimas começaram a rolar pela cara de Helena, sem parar, grossas e indisfarçáveis, apesar das suas tentativas de controlo.
Queria fazer-se forte, mas não conseguiu. Virou-se de costas enquanto a médica acabava de dar as notícias ao pai, estoicamente assimilando tudo.
Quando acabou e Helena se virou, um pouco mais recomposta, a médica perguntou:

"É sua mãe?"
Foi a última vez que alguém perguntou.


Nils Frahm – Unter (Official Music Video) from Erased Tapes on Vimeo.

2 comentários:

La fille disse...

obrigada por partilhares

La fille disse...
Este comentário foi removido pelo autor.