Chegámos ao número 100.
A centésima personagem, por ser a número 100 e por tudo o que significa (nomeadamente que vou agora tentar editar esta aventura literária em livro) é proposiadamente uma "não personagem".
É um agradecimento.
Ao longo destes três anos as personagens evoluíram mais do que eu imaginava e tornaram-se num hobbie, numa necessidade, num vício.
Venho aqui para escrever, para vos escrever, para imortalizar uma frase bonita ou um dito curioso, para homenagear as pessoas que me tocam, para explicar as situações que eu não percebo, para exorcizar os meus demónios, para dar asas às minhas fantasias, para explicar a mim e ao mundo que a verdade é uma coisa relativa e que a vida é mais que nada uma coisa aleatória em que todos podemos e não podemos fazer o que entendermos.
Repetir o credo que o que importa é viver. sem medo. E tentando não julgar os outros. Flexibilizar as balizas com que imaginamos que a nossa vida existe. E não ver o mundo a preto e branco porque há uma quantidade extravagante de cores que aparecem quando abrimos esta possibilidade.
E as Personagens evoluíram nestes 3 anos e meio. do tímido reconhecer que muitas das minhas personagens
têm um pouco das pessoas que eu conheço ou que são o retrato de alguém
num dado momento no tempo, à explícita dedicação de personagens que nem
se dão ao trabalho de mudar os nomes dos intervenientes.
As personagens são bocadinhos mais ou menos desconexos do meu universo e dos universos que o circundam.
Eao longo destes três anos e tal, foi-se tornando por demais evidente que a minha imaginação deriva imediatamente da vossa magia, da vossa partilha de coração comigo.
Se são meus amigos, se já falaram comigo se leio os vossos blogues, o mais provável é que aqui esteja mais ou menos camuflado um bocadinho de vós. daquilo que de vós me toca.
E se há três anos o dizia com embaraço, porque não queria que se ofendessem comigo nem que achassem que vos roubava a alma com a fotografia que tirava e partilhava com o mundo, percebi mais tarde que esse era um gesto por norma apreciado.
E foi mais ou menos nessa altura que comecei a escrever personagens não apenas "sobre", mas também "para". E se estes "sobre"'s e "para"'s são por vezes partilhados num email em que se diz "para ti", outras vezes as personagens nascem oficialmente para alguém. outras ainda, as personagens esperam pacientemente uma visita da pessoa que as inspirou, num secreto desejo de serem reconhecidas.
O Personificcionar tornou-se assim em mais do que um blog e passou a ser para mim quase um super poder; o Personificcionar permite-me abraçar as almas dos meus amigos e dos meus leitores. permite-me contar as minhas e as suas histórias, lembrar-lhes que são importantes - que é uma coisa que por vezes esquecemos. permite-me dizer as coisas que não posso ou que não me atrevo. permite-me contribuir. e permite-me agradecer.
E por isto e por tudo o que não cabe aqui: obrigada a todos.
e vemo-nos no lançamento do livro, boa?
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
quinta-feira, fevereiro 21, 2013
domingo, fevereiro 10, 2013
João Tiago Medeiros
para o Pedro
Einstein foi um dos primeiros físicos que falou na possibilidade de universos infinitos e paralelos. A possibilidade de uma mesma situação ter todos os outcomes possíveis em universos que existem paralelamente.
Há um universo em que todos e cada um de nós seremos astronautas, paralíticos, muito ricos ou muito pobres, nascidos na China, no Nepal, no Quénia, no Brasil, seremos loiros, seremos azuis, seremos aliens, seremos fantasmas, seremos líderes mundiais, seremos apenas um sonho. e por aí adiante.
O mundo em que vivemos é apenas uma das muitas realidades que existem. E se neste mundo somos o que somos, podemos com certeza acreditar que há apenas um fino tecido tempo-espacial a separar-nos de todas as outras realidades alternativas, onde tudo o resto correu de maneira ligeira ou completamente diferente.
E como são as pequenas coisas que fazem as grandes diferenças é mais fácil imaginarmos o universo que temos exatamente igual, mas onde não nos esquecemos da chave de casa, onde não nos distraímos a procurar um cd no tablier e batemos no carro da frente, em que não apanhamos o avião que teve um acidente, em que não fomos sair quando algo de mau aconteceu, do que um universo em que todos respiramos água, todos temos asas ou todos vivemos em planetas distintos e nunca conhecemos nenhuma das pessoas que constituem os nossos universos relacionais.
E esta ideia não é apenas verdade para os universos teóricos. É também verdade para as nossas vidas, vividas paralelamente, mas com pontos de vista individuais muito diferentes. Porque todos somos os atores principais das nossas vidas por muito que sejamos apenas figurantes nas dos outros e nada mais que cenário irrelevante no computo geral. Pó de estrelas.
Mas conhecermos o universo em que estamos traz-nos conforto, o tipo de conforto que têm as crianças quando perguntam "porquês" e obtêm as respostas. Porque precisamos de saber que o mundo é explicável, é compreensível, é amigável. e é uno.
E para nós, os universos multiplicaram-se naquela noite de quarta para quinta, quando o João desapareceu.
Nesse momento, o João deixou de estar numa discoteca a divertir-se com os amigos para estar em todos os lugares que não conhecemos. E à medida que o tempo continua a passar os universos que imaginamos são cada vez menos bons. Os universos em que era razoável o João estar a ressacar em algum sítio ou ter-se interessado por alguém inconsequentemente foram-se afastando e deram espaço para que emergissem os universos em que alguém lhe fez mal, em que algo de negro lhe aconteceu. Em que caiu ao Tejo, por exemplo.
E é o continuarmos sem saber de nada que nos mantem a nós nas arraias do seu universo, e à sua família e amigos mais próximos do epicentro, com muito mais força, em suspenso e sem sabermos bem em que universo estamos.
E quem não sabe o universo em que está, não pode saber o que fazer e como continuar as suas vidas.
Por isso, e porque os astros brilham com a incandescência do pó de estrelas que se move e colide, dêm uma olhada à foto do João, abaixo. Quem sabe se não vivemos num desses universos que nos parecem improváveis em que alguém que olha para uma foto divulgada, de facto pode ajudar de alguma maneira.
Link da Polícia Judiciária - João Tiago Medeiros
Einstein foi um dos primeiros físicos que falou na possibilidade de universos infinitos e paralelos. A possibilidade de uma mesma situação ter todos os outcomes possíveis em universos que existem paralelamente.
Há um universo em que todos e cada um de nós seremos astronautas, paralíticos, muito ricos ou muito pobres, nascidos na China, no Nepal, no Quénia, no Brasil, seremos loiros, seremos azuis, seremos aliens, seremos fantasmas, seremos líderes mundiais, seremos apenas um sonho. e por aí adiante.
O mundo em que vivemos é apenas uma das muitas realidades que existem. E se neste mundo somos o que somos, podemos com certeza acreditar que há apenas um fino tecido tempo-espacial a separar-nos de todas as outras realidades alternativas, onde tudo o resto correu de maneira ligeira ou completamente diferente.
E como são as pequenas coisas que fazem as grandes diferenças é mais fácil imaginarmos o universo que temos exatamente igual, mas onde não nos esquecemos da chave de casa, onde não nos distraímos a procurar um cd no tablier e batemos no carro da frente, em que não apanhamos o avião que teve um acidente, em que não fomos sair quando algo de mau aconteceu, do que um universo em que todos respiramos água, todos temos asas ou todos vivemos em planetas distintos e nunca conhecemos nenhuma das pessoas que constituem os nossos universos relacionais.
E esta ideia não é apenas verdade para os universos teóricos. É também verdade para as nossas vidas, vividas paralelamente, mas com pontos de vista individuais muito diferentes. Porque todos somos os atores principais das nossas vidas por muito que sejamos apenas figurantes nas dos outros e nada mais que cenário irrelevante no computo geral. Pó de estrelas.
Mas conhecermos o universo em que estamos traz-nos conforto, o tipo de conforto que têm as crianças quando perguntam "porquês" e obtêm as respostas. Porque precisamos de saber que o mundo é explicável, é compreensível, é amigável. e é uno.
E para nós, os universos multiplicaram-se naquela noite de quarta para quinta, quando o João desapareceu.
Nesse momento, o João deixou de estar numa discoteca a divertir-se com os amigos para estar em todos os lugares que não conhecemos. E à medida que o tempo continua a passar os universos que imaginamos são cada vez menos bons. Os universos em que era razoável o João estar a ressacar em algum sítio ou ter-se interessado por alguém inconsequentemente foram-se afastando e deram espaço para que emergissem os universos em que alguém lhe fez mal, em que algo de negro lhe aconteceu. Em que caiu ao Tejo, por exemplo.
E é o continuarmos sem saber de nada que nos mantem a nós nas arraias do seu universo, e à sua família e amigos mais próximos do epicentro, com muito mais força, em suspenso e sem sabermos bem em que universo estamos.
E quem não sabe o universo em que está, não pode saber o que fazer e como continuar as suas vidas.
Por isso, e porque os astros brilham com a incandescência do pó de estrelas que se move e colide, dêm uma olhada à foto do João, abaixo. Quem sabe se não vivemos num desses universos que nos parecem improváveis em que alguém que olha para uma foto divulgada, de facto pode ajudar de alguma maneira.
Um obrigada sentido.
Carolina
Carolina senta-se num banco alto no bar do hotel, senhora dos seus saltos muito altos e do seu vestido justo que deixa entrever um bocadinho pequeno daquilo que parece ser um soutein rendado e bonito.
Carolina está nos seus trintas, está em boa forma, e sobretudo tem um charme muito grande, com o seu perfume ligeiramente doce, olhos esfumados e forma de estar provocadora que já lhe é intrinseca e natural.
Cruza as pernas, pede um gin tónico com duas cerejas e começa lenta e determinada a varrer o salão com os olhos em busca de uma aventura, enquanto vai molhando os lábios com a bebida e brinca mais ou menos distraidamente com as cerejas, perfeitamente alinhadas num palito, com a boca.
Carolina sabe que tudo começa com uma troca de olhares, um olhar que se cruza e se fixa. Gosta especialmente deste jogo de sedução e de olhar descaradamente para homens que lhe agradam, esperando que sejam eles a desviar o olhar. Não lhe importa se estão acompanhados ou não: pelo contrário, isso apimenta o jogo e dá-lhe um gozo extra. Frequentemente, são eles que desviam o olhar apenas para logo a seguir retomarem o contacto, como que tomados de uma surpresa boa que querem confirmar se é mesmo verdade.
Carolina é uma provocadora nata. Sabe o que dizer e como, sabe o que fazer e tem gosto pelo risco.
A sedutora sabe provocar e esperar; fazer uma inocente deslocação à casa de banho ou à varanda - ou simplesmente pedir lume - para que o seu alvo a possa mais facilmente abordar; sabe que metade do caminho tem de ser percorrido pelo outro - embora esse caminho possa ser encurtado.
Para Carolina, metade da coisa está em fazer perceber que quer, fazer o outro tomar consciência desse desejo, depois dar-lhe a entender sem o dizer que está ao seu alcance; a outra metade, a de de facto querer, a de tomar a iniciativa de a abordar, a de se arriscar, depende apenas do outro e é a parte que ela não controla.
Depois desta barreira quebrada, o jogo continua: Carolina gosta de esticar a corda até ao limite, de ver até onde os homens são capazes de ir por ela.
Às vezes ganha, às vezes perde. Tudo faz parte deste jogo que Carolina gosta de jogar e que joga com mestria. Mas apenas quando está bem longe de casa.
Porque em Lisboa, onde vive, Carolina é uma respeitável e muito bem sucedida advogada de direito internacional, esposa dedicada e mãe babada de dois filhos pequenos.
Carolina é casada com Jorge, um pacato e confiável contabilista que a adora e lhe dá toda a segurança e afeto que ela pode desejar. É um marido exemplar, um pai extremoso e é o seu melhor amigo. Carolina não quereria estar casada com mais ninguém, nem confiaria em mais ninguém para criar os seus filhos com ela e tomar decisões conjuntas.
O amor que Carolina tem por Jorge é incomensurável e estaria perdida sem ele. Ele é indubitavelmente o seu companheiro de vida, a sua família.
Mas isso não é tudo na vida de Carolina. Porque a Carolina-esposa-e-mãe não matou a Carolina-sedutora-e-aventureira.
E por isso, quando sente a segurança de quem está bem longe de casa (geralmente em viagens de negócios), Carolina liberta a mulher fogosa e aventureira que não pode ser na casa segura, quentinha e de pantufas onde habita. e é lá fora que vive as aventuras mais incríveis que não pode contar a ninguém: a noite em que disse ao barman que para ir para a cama com ela eram mil euros e ele queria na mesma; a noite em que acabou num hotel e quando fez check out não sabia dizer nem o número do quarto, nem o nome da pessoa que o tinha pago; aquela vez em que se veio com os dedos mágicos de um italiano no quarto de banho de uma discoteca em Bordeaux; a aventura em Boston, com um estudante universitário australiano 12 anos mais novo.
As loucuras que comete são aliciantes e trazem-lhe muita satisfação imediata, mas são invariavelmente seguidas de periodos de remorso e culpabilização, o que faz com que ela seja ainda mais dedicada e atenciosa com o marido e a família quando volta. Faz com que redobre as suas atenções e mimos, com que traga sempre prendas e lembranças e tenha sempre mais paciência e tolerância com as coisas que a irritam. E faz com que consiga manter um casamento onde já existe muito pouca cama - que é agora apenas morna - com a mesma convicção há anos, reforçando de forma quase paradoxal a relação feliz que mantém volvida mais de uma década.
"A mãe vem sempre mais bem disposta das viagens", dizem com frequência. E quando passa dias ou fases mais irritadiça e rabugenta, chegam mesmo a dizer-lhe meio a brincar meio a sério que está a precisar de fazer uma viagem de negócios, "que é para sentir a falta deles e voltar com saudades".
Carolina está nos seus trintas, está em boa forma, e sobretudo tem um charme muito grande, com o seu perfume ligeiramente doce, olhos esfumados e forma de estar provocadora que já lhe é intrinseca e natural.
Cruza as pernas, pede um gin tónico com duas cerejas e começa lenta e determinada a varrer o salão com os olhos em busca de uma aventura, enquanto vai molhando os lábios com a bebida e brinca mais ou menos distraidamente com as cerejas, perfeitamente alinhadas num palito, com a boca.
Carolina sabe que tudo começa com uma troca de olhares, um olhar que se cruza e se fixa. Gosta especialmente deste jogo de sedução e de olhar descaradamente para homens que lhe agradam, esperando que sejam eles a desviar o olhar. Não lhe importa se estão acompanhados ou não: pelo contrário, isso apimenta o jogo e dá-lhe um gozo extra. Frequentemente, são eles que desviam o olhar apenas para logo a seguir retomarem o contacto, como que tomados de uma surpresa boa que querem confirmar se é mesmo verdade.
Carolina é uma provocadora nata. Sabe o que dizer e como, sabe o que fazer e tem gosto pelo risco.
A sedutora sabe provocar e esperar; fazer uma inocente deslocação à casa de banho ou à varanda - ou simplesmente pedir lume - para que o seu alvo a possa mais facilmente abordar; sabe que metade do caminho tem de ser percorrido pelo outro - embora esse caminho possa ser encurtado.
Para Carolina, metade da coisa está em fazer perceber que quer, fazer o outro tomar consciência desse desejo, depois dar-lhe a entender sem o dizer que está ao seu alcance; a outra metade, a de de facto querer, a de tomar a iniciativa de a abordar, a de se arriscar, depende apenas do outro e é a parte que ela não controla.
Depois desta barreira quebrada, o jogo continua: Carolina gosta de esticar a corda até ao limite, de ver até onde os homens são capazes de ir por ela.
Às vezes ganha, às vezes perde. Tudo faz parte deste jogo que Carolina gosta de jogar e que joga com mestria. Mas apenas quando está bem longe de casa.
Porque em Lisboa, onde vive, Carolina é uma respeitável e muito bem sucedida advogada de direito internacional, esposa dedicada e mãe babada de dois filhos pequenos.
Carolina é casada com Jorge, um pacato e confiável contabilista que a adora e lhe dá toda a segurança e afeto que ela pode desejar. É um marido exemplar, um pai extremoso e é o seu melhor amigo. Carolina não quereria estar casada com mais ninguém, nem confiaria em mais ninguém para criar os seus filhos com ela e tomar decisões conjuntas.
O amor que Carolina tem por Jorge é incomensurável e estaria perdida sem ele. Ele é indubitavelmente o seu companheiro de vida, a sua família.
Mas isso não é tudo na vida de Carolina. Porque a Carolina-esposa-e-mãe não matou a Carolina-sedutora-e-aventureira.
E por isso, quando sente a segurança de quem está bem longe de casa (geralmente em viagens de negócios), Carolina liberta a mulher fogosa e aventureira que não pode ser na casa segura, quentinha e de pantufas onde habita. e é lá fora que vive as aventuras mais incríveis que não pode contar a ninguém: a noite em que disse ao barman que para ir para a cama com ela eram mil euros e ele queria na mesma; a noite em que acabou num hotel e quando fez check out não sabia dizer nem o número do quarto, nem o nome da pessoa que o tinha pago; aquela vez em que se veio com os dedos mágicos de um italiano no quarto de banho de uma discoteca em Bordeaux; a aventura em Boston, com um estudante universitário australiano 12 anos mais novo.
As loucuras que comete são aliciantes e trazem-lhe muita satisfação imediata, mas são invariavelmente seguidas de periodos de remorso e culpabilização, o que faz com que ela seja ainda mais dedicada e atenciosa com o marido e a família quando volta. Faz com que redobre as suas atenções e mimos, com que traga sempre prendas e lembranças e tenha sempre mais paciência e tolerância com as coisas que a irritam. E faz com que consiga manter um casamento onde já existe muito pouca cama - que é agora apenas morna - com a mesma convicção há anos, reforçando de forma quase paradoxal a relação feliz que mantém volvida mais de uma década.
"A mãe vem sempre mais bem disposta das viagens", dizem com frequência. E quando passa dias ou fases mais irritadiça e rabugenta, chegam mesmo a dizer-lhe meio a brincar meio a sério que está a precisar de fazer uma viagem de negócios, "que é para sentir a falta deles e voltar com saudades".
quarta-feira, fevereiro 06, 2013
Maria Albertina
A avó da noiva manteve o semblante pesado e recusou-se a comer uma fatia de bolo.
A filha virou-se para ela e tentou trazê-la daquele sítio cheio de eletricidade estática para onde também vão os miudos birrentos quando não querem comer a sopa.
"Então, mãezinha? Não faça desfeita à miuda que ela fica triste."
"Não gosto desta gente", disse Maria Albertina como se falasse de um pedaço de couve. Disse "não gosto desta gente" como se a gente se pudesse dividir em grandes blocos e formasse em conjunto uma unidade indivisível, como um pedaço de outra matéria qualquer, um queijo. Se Maria Albertina tivesse dito "Não gosto deste queijo" o drama não existia e a filha dedicada dar-lhe-ia uma alternativa de queijo ou mandava-a comer pão com marmelada em vez disso.
No dia do casamento da neta Joana, Maria Albertina demorou-se a sair de casa e tentou por todos os meios não estar presente. Que lhe doía a cabeça, as costas, o peito. Que estava indisposta. Que não queria sair.
A filha, doutorada em todas as birras que a mãe fazia quando a queriam contrariar, estava precavida e tinha solução pronta para cada uma: comprimido para a dor de cabeça, a possibilidade de andar sempre de carro e uma cadeira especial durante a cerimónia, por causa das dores de costas, a presença de um primo do noivo, médico, para qualquer problema de coração que pudesse surgir. Não ia ficar a fazer nada em casa, e era mais seguro estar acompanhada, se ainda por cima não se sentia bem.
E a velha, vencida e contrariada lá foi ao dia mais feliz da vida da neta com a disposição de quem se dirige ao veterinário para mandar abater o cão.
"Não gosto desta gente." - disse novamente Maria Albertina, desta vez um pouco mais alto.
Joaquina, a filha, corou muito e apertou o braço da mãe, encostou a cara na sua, olhou-a nos olhos com ar de leoa e disse-lhe séria e quase ameaçadora para parar com aquilo e que nem pensasse em fazer uma cena e estragar o dia à Joaninha.
Maria Albertina encheu os olhos de lágrimas e deixou-os vazar pela cara abaixo silenciosa e engasgada.
Joaquina estava cada vez mais com um menino nos braços. Entre o embaraço de parecer má filha por ter a mãe quase a fazer beicinho e a chorar aparentemente por algo que ela lhe disse de forma ríspida, a vergonha de ter a mãe a começar aos impropérios a dizer que não gostava "daquela gente" e a deixar ficar mal a família toda, e a preocupação de ter a mãe naquele estado mal disposto e frágil, não sabia bem para que lado se virar.
"Então, mãezinha?" disse depois de uma pausa segurando-lhe o braço com a mesma mão, mas agora sem o apertar, afagando-o como se segurasse nela por inteiro naquele simples gesto e a embalasse.
Maria Albertina tirou um lenço bordado da carteira preta das festas, enxugou as lágrimas e fungou o mais silenciosamente que pode. Lembrou-se que era uma senhora e que ainda não estava senil. Endireitou-se na cadeira. Disse um "deixa estar" reconfortante à filha, como se a Maria Albertina de outrora viesse tomar o seu lugar à mesa em vez da velha mimada e birrenta dos últimos tempos.
Maria Albertina recusou com firmeza o bolo na mesma, mas jurou a si mesma que não ia estragar o dia à neta.
A verdade é que já não era de agora que Maria Albertia sentia a Morte rondar-lhe a porta. Alfredo já tinha falecido havia mais de 10 anos, as meninas estavam quase todas casadas, ela já não vivia na sua casa, já era um parasita noutra casa onde as regras eram as que lhe impunham e onde a sua vontade só se fazia valer como nos garoticos - com pedinchice, ronha, birras ou chantagem.
Sentia a Morte rondar-lhe a porta e queria ter a certeza que partia com a missão cumprida e tudo bem entregue.
Já tinha começado a fazer partilhas em vida, embora soubesse muito bem o que pensavam os filhos desta sua subita vontade de dar coisas: que estava senil, que desistia de viver. E pelas suas costas desfaziam o que ela tinha feito, lamuriavam as coisas que ela dava e agradeciam quando vinha alguém devolver algo de valor que ela lhes havia ofertado. Não interessava. Os seus dias estavam contados e ela não queria partir sem acertar as suas contas.
Maria Albertina sentia saudades do tempo em que tinha uma casa para fazer o que bem lhe apetecesse, dos dias em que não tinha de ter uma ama seca permanentemente atenta aos seus movimentos, não fosse ela fazer algum disparate no meio das tropelias que às vezes magicava no seu novo papel de criança travessa.
Mas o que ela sentia mais falta de tudo era de Alfredo, o marido. o companheiro. o amigo. De beber leite morno com ele à noite antes de irem para a cama. de fazer as palavras cruzadas com ele aos domingos, nas manhãs de preguiça na cama. dos extras que ele trazia de vez em quando com o pão que ia buscar nas caminhadas depois de almoço: flores silvestres, amoras, camarinhas, folhas bonitas de outono. uma vez chegou mesmo a trazer um cachorro pequeno muito esfomeado e assustado que provavelmente se teria perdido da mãe. de lhe abrir a cama e de por lá um saco de água quente para ele não se arrepiar nos dias de inverno. de o chamar para a mesa depois de por o lanche. de fazer cozinhados enquanto ele, sentado na mesa da cozinha folheava os "Doze Meses de Cozinha" e lhe lia as receitas.
No dia em que deu a Joana o seu livro de cozinha predileto, depois de ser anunciada a boda, fê-lo propositadamente em frente ao noivo. Ofereceu a sua preciosidade com uma casualidade ensaiada, como se fosse apenas mais um capricho de velha semi senil e entregou-o, na esperança secreta de vislumbrar uma vez mais a cumplicidade que tinha com o seu Alfredo numa troca de olhares de Joana e Marco, num afagar da mão de um deles, num comentário entusiasmado, numa qualquer expressão daquela marca de afeto específica e indisfarçável que é incondicional, incontestável e cúmplice.
Entregou o livro e os olhos de Joana brilharam emocionados. O livro largo e pesado transportou-a para um tempo que nunca iria voltar e deu-lhe a imagem exata dos dias de festa em que a avó era nova, ela era pequena e, de baixo para cima, via maravilhada bolos a serem feitos num processo mágico qualquer, com um feitiço que o avô lançava e que a avó concretizava entre os balcões da cozinha e o forno. Os balcões acima do seu campo de visão, o bolo que crescia misteriosamente no forno, ao seu nível, mesmo à sua frente:
"- não te encostes ao forno que te queimas, Joaninha, sai daí".
Transportou-a para cima de um banco de cozinha alto e sem ninguém a segurá-la, a decorar bolos com chantilly e bolinhas prateadas com a ajuda da avó e da sua manga de pasteleiro que fazia rosáceas e flores magníficas com os mais variados sabores, texturas e cores.
Olhou para Marco e ele já estava de saída para ir ter com o sogro e discutir o jogo de futebol. Joana chamou-o para lhe explicar o que é que aquele livro era, mas ele encolheu os ombros e reduziu-lhe a significância no mesmo instante.
E nesse momento, Maria Albertina, desfeiteada pelo desprezo do genro-neto que a tomava por uma velha esquecida e pouco importante, e que nem depois de a neta se sentar ao seu lado e mostrar entusiasmada o tesouro que tinha nas mãos deixou de olhar para a televisão, concluiu que aquele moço não merecia a sua Joaninha. Não era digno daquele pedaço de si e que a sua parte daí, ela não lha cedia. E nunca mais conseguiu encará-lo nem gostar dele. Achou que ele nunca faria companhia à neta nos momentos menos bons, tornando-os especiais, que ele não lhe dava o valor que ela merecia, que ele era um egoísta e um diabo.
E nunca mais gostou dele. E quanto mais não gostava dele, mais implicava com tudo o que ele fazia, tudo o que ele dizia, tudo o que ela percebia da relação deles. Que era podre. que era ele que mandava na relação. que a neta não tinha uma palavra a dizer. que ela ia ser uma pobre infeliz.
E isso era algo que Maria Albertina, agora que sentia a Morte tão perto não conseguia suportar e que na sua veste de criança mimada expelia sem pensar nas consequências como se cuspisse a sopa passada que não quer comer. Sem reparar que a sujeira que fazia eram outros que a tinham de limpar e que ninguém queria estar por perto de uma bomba-relógio daquelas.
Mas no dia do casamento da neta, e depois de se ver refletida nos olhos de leoa da filha e de se ouvir a começar uma birra com "não gosto desta gente", Maria Albertina foi-se buscar ao fundo da gaveta mais funda da sua alma na sua forma mais senhoril e educada.
Mordeu o lábio e engoliu o orgulho e as certezas. O seu lugar era de convidada, apenas e só - e era assim que se ia comportar: como se deve. Cumprimentou os noivos e brindou com a família. Não foi hipócrita e celebrou a felicidade da neta, que estava radiosa e deslumbrante.
E aquele acabou por ser um dia muito bom para todos.
Já mesmo no fim da festa, fosse pelo esforço férreo de controlar a vontade para não dizer à neta que ela merecia melhor e que se podia sempre separar, talvez pela epifania de que a alegria daqueles que amamos é mais importante do que as certezas que achamos que temos sobre a vida ou por se permitir pensar que estava errada e que a neta até podia ser muito feliz e ela ter visto mal a situação - que já sabia como era quando tomava alguém de ponta. se calhar, pela descoberta daquele momento como uma das raras e últimas ocasiões em que tinha a família toda junta; talvez fosse da muita felicidade que sentiu quando abriu o semblante e permitiu que outros a viessem cumprimentar e que pouco a pouco e um de cada vez os diferentes familiares viessem conversar um pouco consigo; pode ter sido pela montanha russa de emoções que viveu, ou ainda - porque não - porque simplesmente chegara a sua hora, Maria Albertina fechou os olhos num súbito e irresistível cansaço. E enquanto esperava que a filha fosse buscar o carro, morreu feliz, cheia do mimo que lhe davam e a pensar no seu Alfredo, algures à sua espera.
A filha virou-se para ela e tentou trazê-la daquele sítio cheio de eletricidade estática para onde também vão os miudos birrentos quando não querem comer a sopa.
"Então, mãezinha? Não faça desfeita à miuda que ela fica triste."
"Não gosto desta gente", disse Maria Albertina como se falasse de um pedaço de couve. Disse "não gosto desta gente" como se a gente se pudesse dividir em grandes blocos e formasse em conjunto uma unidade indivisível, como um pedaço de outra matéria qualquer, um queijo. Se Maria Albertina tivesse dito "Não gosto deste queijo" o drama não existia e a filha dedicada dar-lhe-ia uma alternativa de queijo ou mandava-a comer pão com marmelada em vez disso.
No dia do casamento da neta Joana, Maria Albertina demorou-se a sair de casa e tentou por todos os meios não estar presente. Que lhe doía a cabeça, as costas, o peito. Que estava indisposta. Que não queria sair.
A filha, doutorada em todas as birras que a mãe fazia quando a queriam contrariar, estava precavida e tinha solução pronta para cada uma: comprimido para a dor de cabeça, a possibilidade de andar sempre de carro e uma cadeira especial durante a cerimónia, por causa das dores de costas, a presença de um primo do noivo, médico, para qualquer problema de coração que pudesse surgir. Não ia ficar a fazer nada em casa, e era mais seguro estar acompanhada, se ainda por cima não se sentia bem.
E a velha, vencida e contrariada lá foi ao dia mais feliz da vida da neta com a disposição de quem se dirige ao veterinário para mandar abater o cão.
"Não gosto desta gente." - disse novamente Maria Albertina, desta vez um pouco mais alto.
Joaquina, a filha, corou muito e apertou o braço da mãe, encostou a cara na sua, olhou-a nos olhos com ar de leoa e disse-lhe séria e quase ameaçadora para parar com aquilo e que nem pensasse em fazer uma cena e estragar o dia à Joaninha.
Maria Albertina encheu os olhos de lágrimas e deixou-os vazar pela cara abaixo silenciosa e engasgada.
Joaquina estava cada vez mais com um menino nos braços. Entre o embaraço de parecer má filha por ter a mãe quase a fazer beicinho e a chorar aparentemente por algo que ela lhe disse de forma ríspida, a vergonha de ter a mãe a começar aos impropérios a dizer que não gostava "daquela gente" e a deixar ficar mal a família toda, e a preocupação de ter a mãe naquele estado mal disposto e frágil, não sabia bem para que lado se virar.
"Então, mãezinha?" disse depois de uma pausa segurando-lhe o braço com a mesma mão, mas agora sem o apertar, afagando-o como se segurasse nela por inteiro naquele simples gesto e a embalasse.
Maria Albertina tirou um lenço bordado da carteira preta das festas, enxugou as lágrimas e fungou o mais silenciosamente que pode. Lembrou-se que era uma senhora e que ainda não estava senil. Endireitou-se na cadeira. Disse um "deixa estar" reconfortante à filha, como se a Maria Albertina de outrora viesse tomar o seu lugar à mesa em vez da velha mimada e birrenta dos últimos tempos.
Maria Albertina recusou com firmeza o bolo na mesma, mas jurou a si mesma que não ia estragar o dia à neta.
A verdade é que já não era de agora que Maria Albertia sentia a Morte rondar-lhe a porta. Alfredo já tinha falecido havia mais de 10 anos, as meninas estavam quase todas casadas, ela já não vivia na sua casa, já era um parasita noutra casa onde as regras eram as que lhe impunham e onde a sua vontade só se fazia valer como nos garoticos - com pedinchice, ronha, birras ou chantagem.
Sentia a Morte rondar-lhe a porta e queria ter a certeza que partia com a missão cumprida e tudo bem entregue.
Já tinha começado a fazer partilhas em vida, embora soubesse muito bem o que pensavam os filhos desta sua subita vontade de dar coisas: que estava senil, que desistia de viver. E pelas suas costas desfaziam o que ela tinha feito, lamuriavam as coisas que ela dava e agradeciam quando vinha alguém devolver algo de valor que ela lhes havia ofertado. Não interessava. Os seus dias estavam contados e ela não queria partir sem acertar as suas contas.
Maria Albertina sentia saudades do tempo em que tinha uma casa para fazer o que bem lhe apetecesse, dos dias em que não tinha de ter uma ama seca permanentemente atenta aos seus movimentos, não fosse ela fazer algum disparate no meio das tropelias que às vezes magicava no seu novo papel de criança travessa.
Mas o que ela sentia mais falta de tudo era de Alfredo, o marido. o companheiro. o amigo. De beber leite morno com ele à noite antes de irem para a cama. de fazer as palavras cruzadas com ele aos domingos, nas manhãs de preguiça na cama. dos extras que ele trazia de vez em quando com o pão que ia buscar nas caminhadas depois de almoço: flores silvestres, amoras, camarinhas, folhas bonitas de outono. uma vez chegou mesmo a trazer um cachorro pequeno muito esfomeado e assustado que provavelmente se teria perdido da mãe. de lhe abrir a cama e de por lá um saco de água quente para ele não se arrepiar nos dias de inverno. de o chamar para a mesa depois de por o lanche. de fazer cozinhados enquanto ele, sentado na mesa da cozinha folheava os "Doze Meses de Cozinha" e lhe lia as receitas.
No dia em que deu a Joana o seu livro de cozinha predileto, depois de ser anunciada a boda, fê-lo propositadamente em frente ao noivo. Ofereceu a sua preciosidade com uma casualidade ensaiada, como se fosse apenas mais um capricho de velha semi senil e entregou-o, na esperança secreta de vislumbrar uma vez mais a cumplicidade que tinha com o seu Alfredo numa troca de olhares de Joana e Marco, num afagar da mão de um deles, num comentário entusiasmado, numa qualquer expressão daquela marca de afeto específica e indisfarçável que é incondicional, incontestável e cúmplice.
Entregou o livro e os olhos de Joana brilharam emocionados. O livro largo e pesado transportou-a para um tempo que nunca iria voltar e deu-lhe a imagem exata dos dias de festa em que a avó era nova, ela era pequena e, de baixo para cima, via maravilhada bolos a serem feitos num processo mágico qualquer, com um feitiço que o avô lançava e que a avó concretizava entre os balcões da cozinha e o forno. Os balcões acima do seu campo de visão, o bolo que crescia misteriosamente no forno, ao seu nível, mesmo à sua frente:
"- não te encostes ao forno que te queimas, Joaninha, sai daí".
Transportou-a para cima de um banco de cozinha alto e sem ninguém a segurá-la, a decorar bolos com chantilly e bolinhas prateadas com a ajuda da avó e da sua manga de pasteleiro que fazia rosáceas e flores magníficas com os mais variados sabores, texturas e cores.
Olhou para Marco e ele já estava de saída para ir ter com o sogro e discutir o jogo de futebol. Joana chamou-o para lhe explicar o que é que aquele livro era, mas ele encolheu os ombros e reduziu-lhe a significância no mesmo instante.
E nesse momento, Maria Albertina, desfeiteada pelo desprezo do genro-neto que a tomava por uma velha esquecida e pouco importante, e que nem depois de a neta se sentar ao seu lado e mostrar entusiasmada o tesouro que tinha nas mãos deixou de olhar para a televisão, concluiu que aquele moço não merecia a sua Joaninha. Não era digno daquele pedaço de si e que a sua parte daí, ela não lha cedia. E nunca mais conseguiu encará-lo nem gostar dele. Achou que ele nunca faria companhia à neta nos momentos menos bons, tornando-os especiais, que ele não lhe dava o valor que ela merecia, que ele era um egoísta e um diabo.
E nunca mais gostou dele. E quanto mais não gostava dele, mais implicava com tudo o que ele fazia, tudo o que ele dizia, tudo o que ela percebia da relação deles. Que era podre. que era ele que mandava na relação. que a neta não tinha uma palavra a dizer. que ela ia ser uma pobre infeliz.
E isso era algo que Maria Albertina, agora que sentia a Morte tão perto não conseguia suportar e que na sua veste de criança mimada expelia sem pensar nas consequências como se cuspisse a sopa passada que não quer comer. Sem reparar que a sujeira que fazia eram outros que a tinham de limpar e que ninguém queria estar por perto de uma bomba-relógio daquelas.
Mas no dia do casamento da neta, e depois de se ver refletida nos olhos de leoa da filha e de se ouvir a começar uma birra com "não gosto desta gente", Maria Albertina foi-se buscar ao fundo da gaveta mais funda da sua alma na sua forma mais senhoril e educada.
Mordeu o lábio e engoliu o orgulho e as certezas. O seu lugar era de convidada, apenas e só - e era assim que se ia comportar: como se deve. Cumprimentou os noivos e brindou com a família. Não foi hipócrita e celebrou a felicidade da neta, que estava radiosa e deslumbrante.
E aquele acabou por ser um dia muito bom para todos.
Já mesmo no fim da festa, fosse pelo esforço férreo de controlar a vontade para não dizer à neta que ela merecia melhor e que se podia sempre separar, talvez pela epifania de que a alegria daqueles que amamos é mais importante do que as certezas que achamos que temos sobre a vida ou por se permitir pensar que estava errada e que a neta até podia ser muito feliz e ela ter visto mal a situação - que já sabia como era quando tomava alguém de ponta. se calhar, pela descoberta daquele momento como uma das raras e últimas ocasiões em que tinha a família toda junta; talvez fosse da muita felicidade que sentiu quando abriu o semblante e permitiu que outros a viessem cumprimentar e que pouco a pouco e um de cada vez os diferentes familiares viessem conversar um pouco consigo; pode ter sido pela montanha russa de emoções que viveu, ou ainda - porque não - porque simplesmente chegara a sua hora, Maria Albertina fechou os olhos num súbito e irresistível cansaço. E enquanto esperava que a filha fosse buscar o carro, morreu feliz, cheia do mimo que lhe davam e a pensar no seu Alfredo, algures à sua espera.
sexta-feira, fevereiro 01, 2013
Verdade ou consequência?
Lá fora o temporal parece o lobo mau da história dos três porquinhos, a soprar e a soprar a ver se deita as casas abaixo.
Verdade.
Já começou a trovejar embora não se vejam relâmpagos. E está a ficar escuro.
Daqui a mais ou menos duas horas tenho de sair daqui e pegar no carro para subir a montanha mal iluminada em direção a casa.
Verdade.
Não gosto de conduzir assim. Quer dizer, eu gosto do mau tempo, e até gosto do mau tempo quando estou a conduzir, como se o deus das tempestades ele mesmo fosse a fazer-me companhia no caminho.
Até gosto de atravessar nevoeiros.
Antigamente não gostava, mas depois li num livro sobre cerâmica chinesa que os dragões são criaturas mágicas cujas manifestações corpóreas são as neblinas. Temos um dragão de montanha quando é uma neblina na montanha, um dragão de rio, quando é uma neblina num rio... e por aí adiante. Os dragões de cidade devem ser os mais tristes, coitados, sem espaço para espraiarem as suas escamas e as suas pernas, sem poderem voar baixinho à vontade e em sossego.
Gosto de atravessar dragões e faço-o sempre com a mesma solenidade respeitosa e uma espécie de carinho que é o mesmo que eu dirijo ao meu amigo, o deus das tempestades.
Verdade.
Mas hoje há um conjunto de circunstânicas de que eu não gosto. Além do mau tempo que eu gosto de ver, mas cujas palavras são sempre demasiado ásperas e desajeitas, sempre um bocado a puxar ao melodramático, está muito escuro. E a estrada por onde eu vou quase não é iluminada em lado nenhum. Não gosto de conduzir assim, na escuridão total; parece que vem o escuro comer-me o carro, parece que a traseira do carro está a ser abocanhada pela noite ou um fantasma negro e eu não gosto.
Verdade.
Mas tenho andado distraída e por isso o trabalho hoje alonga-se até às horas que ele decidir, até ele dizer que está feito e que eu posso ir para casa.
Consequência .
Na verdade, não me importo muito de ficar até mais tarde no trabalho, hoje. Não sei se hoje conseguia encará-lo com as suas mazelas, a sua tentativa bem disposta de disfarçar a indisposição e as naúseas, as aftas que tem na boca, o cansaço e as dores constantes que nega e mente e não engana ninguém.
Verdade.
Não sei se conseguia mais um serão de fazer de conta que estou bem disposta e ótimista. Não sei se conseguia mais uma conversa à lareira com a minha mãe, a descansá-la que vai correr tudo bem.
Não sei se me custa mais o cansaço físico de estar sempre a correr para o Porto para o levar aos tratamentos e exames, se o cansaço existencial de imaginar que existir pode ser sem ele.
O cansaço mental de me preparar para uma perda que pode não acontecer - e que não pode acontecer.
O desgaste psicológico de negar que tudo pode correr mal e o cançaso de estar sempre a torcer muito para que tudo corra bem.
Verdade.
E este cansaço, que me acossa e que me culpa a cada passo, - porque eu não tenho o direito de estar cansada, porque eu não estou doente, porque eu é que sou a rocha e é preciso agora que alguém o seja, porque eles precisam de quem lhes dê força e essa pessoa sou eu, tenho de ser eu - não me deixa dormir. Não me deixa comer. Não me deixa distrair. Esta mistura tóxica de medo, cansaço e uma culpa que eu não sei de onde vem - dos momentos em que não estive? Do que podia ter feito e não fiz? De não poder fazer mais? Do quê? - deixam-me acordada mas não desperta.
Consequência.
E com isso o trabalho vai-se arrastando numa mistura de lentidão de exaustão e procrastinação por ter medo de ficar sem nada que fazer, sem nada mais que ocupar a minha mente do que os fantasmas da doença dele e da possibilidade de ele não existir mais. De ele sofrer e eu não poder fazer nada senão assistir impotente.
Consequência.
Estas são as coisas que eu não posso contar a ninguém, e que conto apenas ao deus das tempestades em dias como hoje, quando choro no seu ombro. E ele - amigo de velha data - chora comigo e urra tudo o que eu não ouso, tudo o que eu não posso. E faz as tempestades que sopram e chovem como se quisessem deitar tudo abaixo.
Simpático, ele. Um bocado extravagante, mas querido.
Não se pode dizer o mesmo do meu outro companheiro de viagem de hoje, o negrume silencioso que me esconde o caminho que eu já fiz e que me impede de olhar para trás, para onde eu já estive. Que me esconde o passado bom e em segurança de que eu tanto preciso. Que me abocanha o carro sem me deixar ver o que o consome e sem que eu possa fazer nada para o impedir.
Verdade ou consequência?
Verdade.
Já começou a trovejar embora não se vejam relâmpagos. E está a ficar escuro.
Daqui a mais ou menos duas horas tenho de sair daqui e pegar no carro para subir a montanha mal iluminada em direção a casa.
Verdade.
Não gosto de conduzir assim. Quer dizer, eu gosto do mau tempo, e até gosto do mau tempo quando estou a conduzir, como se o deus das tempestades ele mesmo fosse a fazer-me companhia no caminho.
Até gosto de atravessar nevoeiros.
Antigamente não gostava, mas depois li num livro sobre cerâmica chinesa que os dragões são criaturas mágicas cujas manifestações corpóreas são as neblinas. Temos um dragão de montanha quando é uma neblina na montanha, um dragão de rio, quando é uma neblina num rio... e por aí adiante. Os dragões de cidade devem ser os mais tristes, coitados, sem espaço para espraiarem as suas escamas e as suas pernas, sem poderem voar baixinho à vontade e em sossego.
Gosto de atravessar dragões e faço-o sempre com a mesma solenidade respeitosa e uma espécie de carinho que é o mesmo que eu dirijo ao meu amigo, o deus das tempestades.
Verdade.
Mas hoje há um conjunto de circunstânicas de que eu não gosto. Além do mau tempo que eu gosto de ver, mas cujas palavras são sempre demasiado ásperas e desajeitas, sempre um bocado a puxar ao melodramático, está muito escuro. E a estrada por onde eu vou quase não é iluminada em lado nenhum. Não gosto de conduzir assim, na escuridão total; parece que vem o escuro comer-me o carro, parece que a traseira do carro está a ser abocanhada pela noite ou um fantasma negro e eu não gosto.
Verdade.
Mas tenho andado distraída e por isso o trabalho hoje alonga-se até às horas que ele decidir, até ele dizer que está feito e que eu posso ir para casa.
Consequência .
Na verdade, não me importo muito de ficar até mais tarde no trabalho, hoje. Não sei se hoje conseguia encará-lo com as suas mazelas, a sua tentativa bem disposta de disfarçar a indisposição e as naúseas, as aftas que tem na boca, o cansaço e as dores constantes que nega e mente e não engana ninguém.
Verdade.
Não sei se conseguia mais um serão de fazer de conta que estou bem disposta e ótimista. Não sei se conseguia mais uma conversa à lareira com a minha mãe, a descansá-la que vai correr tudo bem.
Não sei se me custa mais o cansaço físico de estar sempre a correr para o Porto para o levar aos tratamentos e exames, se o cansaço existencial de imaginar que existir pode ser sem ele.
O cansaço mental de me preparar para uma perda que pode não acontecer - e que não pode acontecer.
O desgaste psicológico de negar que tudo pode correr mal e o cançaso de estar sempre a torcer muito para que tudo corra bem.
Verdade.
E este cansaço, que me acossa e que me culpa a cada passo, - porque eu não tenho o direito de estar cansada, porque eu não estou doente, porque eu é que sou a rocha e é preciso agora que alguém o seja, porque eles precisam de quem lhes dê força e essa pessoa sou eu, tenho de ser eu - não me deixa dormir. Não me deixa comer. Não me deixa distrair. Esta mistura tóxica de medo, cansaço e uma culpa que eu não sei de onde vem - dos momentos em que não estive? Do que podia ter feito e não fiz? De não poder fazer mais? Do quê? - deixam-me acordada mas não desperta.
Consequência.
E com isso o trabalho vai-se arrastando numa mistura de lentidão de exaustão e procrastinação por ter medo de ficar sem nada que fazer, sem nada mais que ocupar a minha mente do que os fantasmas da doença dele e da possibilidade de ele não existir mais. De ele sofrer e eu não poder fazer nada senão assistir impotente.
Consequência.
Estas são as coisas que eu não posso contar a ninguém, e que conto apenas ao deus das tempestades em dias como hoje, quando choro no seu ombro. E ele - amigo de velha data - chora comigo e urra tudo o que eu não ouso, tudo o que eu não posso. E faz as tempestades que sopram e chovem como se quisessem deitar tudo abaixo.
Simpático, ele. Um bocado extravagante, mas querido.
Não se pode dizer o mesmo do meu outro companheiro de viagem de hoje, o negrume silencioso que me esconde o caminho que eu já fiz e que me impede de olhar para trás, para onde eu já estive. Que me esconde o passado bom e em segurança de que eu tanto preciso. Que me abocanha o carro sem me deixar ver o que o consome e sem que eu possa fazer nada para o impedir.
Verdade ou consequência?
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