Era como se tivesse dois corações.
O de aqui e agora e o das coisas que já não eram.
Era isso, Vitória tinha dois corações.
E os corações eram como se fossem salas que precisam de ser habitadas, ou plantas que precisam de ser regadas, ou animais de estimação que precisam de alimento e atenção.
E quanto mais atenção dava a um coração, menos atenção podia prestar ao outro.
No dia em que soube da morte da prima, ainda não tinha recuperado a perda do filho, mas tinha sido logo a manhã em que vira alguma esperança surgir no horizonte, em que achara que estava na altura de se levantar, de se erguer, de continuar com a vida, que já chegava de depressão.
A notícia da morte da prima idosa, porém, atirou-a de volta para o ponto de partida e fez com que as saudades do seu pequeno David aumentassem novamente, com que novamente ressacasse como uma viciada o seu cheirinho, o aconchego do seu abraço. E tudo o que precisava, negociava com os deuses, como se fosse perfeitamente razoável, tudo o que queria naquele dia era apenas um abraço para a ajudar a passar o dia, era só isso, só um abraço pequenino, não era pedir assim tanto.
A morte da prima, o passar da prima do coração-do-agora para o coração-do-que-já-não-é aumentava este último, e como a maior parte do coração-do-que-já-não-é de Vitória era ocupada por David, esta perda deixava-a triste por si só, mas sobretudo lembrava-a da falta que lhe fazia o seu menino.
Como se ao aumentar o coração-do-que-já-não-é, aumentasse o quanto vivia a saudade de tudo que já não exstia, de tudo quanto já não tinha. De todos os momentos perdidos, de todos os locais que nunca mais visitara, de todas as experiências que nunca podeira repetir, de todos os momentos que não foram vividos na sua plenitude. De tudo que em tempos fora e que agora, bem, agora já não era. e que engrandecia esse coração.
E como nem nos corações temos o dom da ubiquidade, nestas estadias de longa duração no seu coração de estimação, Vitória ia descurando o coração vital do agora, desleixando-o e deixando-o cada vez mais vazio, abandonado, com ervas daninhas.
E nem se dava conta, porque no seu coração-do-que-já-não-é as paredes não tinham uma racha sequer, tudo estava perfeitamente tratado e era um sítio tão melhor de se estar.
Mas se a vida se vive no sítio onde se tem o coração, Vitória tinha vindo a deixar de estar no aqui e agora para estar numa terra de nenhures, que já não é, e ia falando com os seus mortos, os seus amigos distantes, aqueles que a habitavam de forma tão clara, mas que às pessoas aqui e agora eram invisíveis.
E isto era um verdadeiro problema para as muitas pessoas que aqui e agora a amavam e a sentiam cada vez mais distante, por muito que a tentassem agarrar.
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
terça-feira, novembro 19, 2013
segunda-feira, novembro 11, 2013
Cecília
Eram livros velhos o que lhe restava. Eram o que ninguém tinha querido.
Tinham levado o relógio bonito do avô que ela tinha cuidado e tentado que arranjassem, que era a única que lhe dava corda. Tinham levado as colchas de linho, as rendas da avó, os bordados da mãe, as malhas da madrinha.
Tinham levado o ouro da família - esse fora o primeiro a ir. Tinham levado a mobília, aos poucos, peça por peça, escolhendo as coisas boas, deixando-lhe os monos.
Tinham levado o serviço de cozinha, as tigelas de marmelada (parece que as tigelas que há mais de 30 anos tratavam com tão pouca atenção eram "louça de Sacavém, muito valiosa").
Tinham levado o faqueiro - os faqueiros: o bom, que estava numa mala, mas também, o que estava a uso na cozinha. Os copos de cristal - mas ela sempre contara com isso e não eram estas coisas que a incomodavam que não fizessem parte da sua vista, que não lhe estivesse mais à mão.
Mas deixaram os livros velhos. Os bons, de capa dura com ilustrações a cores, levaram - ela não sabia bem porquê, porque sabia que eles iam permanecer fechados e empoeirados numa qualquer prateleira esquecida.
O que lhe deixaram foi os livros amarelos de papel fraco e mal cortado, aqueles que não ficavam bem nas estantes, que estavam manchados na capa e nas folhas com humidade, que tinham sido rasgados ou riscados por alguém, talvez por uma criança mal mandada.
Deixaram-lhe os podres e estragados - os livros e os monos. Tudo o que não queriam. Os sofás velhos e os móveis carunchosos. e foram-se embora para as suas casas boas com promessas de que haviam de ligar e aparecer muitas vezes. às vezes. de vez em quando. bem, que não a haviam de esquecer. e que qualquer coisa, também, era só ligar, já sabia.
e ela ficou-se no seu canto sem voz, com o que lhe restava e que agora era seu: os monos e os livros amarelos e velhos. e as revistas passadas.
Primeiro entristecida e depois sem mais para onde se virar, decidiu-se a arranjar os livros velhos. Antologias literárias de currículos escolares do tempo do estado novo, com anotações infantis da mãe e das tias; fasciculos de cozinha de onde saiam os desenhos que as crianças dedicavam às matriarcas com carinho e amor; atlas desatualizados onde se tinham deixado esquecidas fotografias de família; um molho de cartas de amor por entre romances de cordel com manchas de humidade; receitas culinárias escritas em folhas em branco de livros avulsos e até uma ou outra revista marota do século passado...
E aos poucos, a filha "que ficou para tia", a que cuidou de toda a geração e que havia de não ter direito a quase herança nenhuma, foi percebendo que afinal, afinal, a sorte até tinha estado do seu lado.
Consigo tinham permanecido as coisas que ninguém queria, como toda a vida. Também a ela lhe tinham entregue os pais e tios quando já não "podiam tratar deles" - e ela com todo o amor que tinha em si foi cuidando deles com afã, amando-os com todos os cantinhos do seu coração.
E o que lhe deixavam, a coberto do pó e do amarelo dos livros era nada mais, nada menos que o maior dos tesouros, eram os melhores bocadinhos da alma dos seus velhinhos queridos, as suas preferências culinárias, os seus comentários, as listas de compras, as suas preocupações, o seu dia a dia, como se os pudesse ter consigo mais um pouco nos bocadinhos que descobria por entre a tralha.
Os segredos de cozinha da avó, acabaria por descobrir aí. Bem como, aos poucos, mais uma série de segredos de família. e eventualmente, por entre um caderno de recortes, até uma coleção muito antiga e valiosa de selos que o tio Arnaldo, um famosíssimo colecionador, já senil deve ter confundido e tirou do sítio onde guardava essas preciosidades.
E que, depois de muito se debater, concluiu que era sua, sem qualquer dúvida, estava no lote de coisas que os filhos do tio Arnaldo teriam deitado ao lixo não fosse ela estar ali para lhes poupar até mesmo essa viagem. E seriam esses selos que lhe haviam de valer o suficiente para se livrar dos monos e da casa com humidade, para se mudar para um sítio com sol e viver a vida que teriam querido os pais e os tios, longe da família que a usava e cuidando finalmente de si, numa casa junto ao mar, com uma estante grande de livros velhos e estragados, onde revisitava os "seus velhinhos".
Tinham levado o relógio bonito do avô que ela tinha cuidado e tentado que arranjassem, que era a única que lhe dava corda. Tinham levado as colchas de linho, as rendas da avó, os bordados da mãe, as malhas da madrinha.
Tinham levado o ouro da família - esse fora o primeiro a ir. Tinham levado a mobília, aos poucos, peça por peça, escolhendo as coisas boas, deixando-lhe os monos.
Tinham levado o serviço de cozinha, as tigelas de marmelada (parece que as tigelas que há mais de 30 anos tratavam com tão pouca atenção eram "louça de Sacavém, muito valiosa").
Tinham levado o faqueiro - os faqueiros: o bom, que estava numa mala, mas também, o que estava a uso na cozinha. Os copos de cristal - mas ela sempre contara com isso e não eram estas coisas que a incomodavam que não fizessem parte da sua vista, que não lhe estivesse mais à mão.
Mas deixaram os livros velhos. Os bons, de capa dura com ilustrações a cores, levaram - ela não sabia bem porquê, porque sabia que eles iam permanecer fechados e empoeirados numa qualquer prateleira esquecida.
O que lhe deixaram foi os livros amarelos de papel fraco e mal cortado, aqueles que não ficavam bem nas estantes, que estavam manchados na capa e nas folhas com humidade, que tinham sido rasgados ou riscados por alguém, talvez por uma criança mal mandada.
Deixaram-lhe os podres e estragados - os livros e os monos. Tudo o que não queriam. Os sofás velhos e os móveis carunchosos. e foram-se embora para as suas casas boas com promessas de que haviam de ligar e aparecer muitas vezes. às vezes. de vez em quando. bem, que não a haviam de esquecer. e que qualquer coisa, também, era só ligar, já sabia.
e ela ficou-se no seu canto sem voz, com o que lhe restava e que agora era seu: os monos e os livros amarelos e velhos. e as revistas passadas.
Primeiro entristecida e depois sem mais para onde se virar, decidiu-se a arranjar os livros velhos. Antologias literárias de currículos escolares do tempo do estado novo, com anotações infantis da mãe e das tias; fasciculos de cozinha de onde saiam os desenhos que as crianças dedicavam às matriarcas com carinho e amor; atlas desatualizados onde se tinham deixado esquecidas fotografias de família; um molho de cartas de amor por entre romances de cordel com manchas de humidade; receitas culinárias escritas em folhas em branco de livros avulsos e até uma ou outra revista marota do século passado...
E aos poucos, a filha "que ficou para tia", a que cuidou de toda a geração e que havia de não ter direito a quase herança nenhuma, foi percebendo que afinal, afinal, a sorte até tinha estado do seu lado.
Consigo tinham permanecido as coisas que ninguém queria, como toda a vida. Também a ela lhe tinham entregue os pais e tios quando já não "podiam tratar deles" - e ela com todo o amor que tinha em si foi cuidando deles com afã, amando-os com todos os cantinhos do seu coração.
E o que lhe deixavam, a coberto do pó e do amarelo dos livros era nada mais, nada menos que o maior dos tesouros, eram os melhores bocadinhos da alma dos seus velhinhos queridos, as suas preferências culinárias, os seus comentários, as listas de compras, as suas preocupações, o seu dia a dia, como se os pudesse ter consigo mais um pouco nos bocadinhos que descobria por entre a tralha.
Os segredos de cozinha da avó, acabaria por descobrir aí. Bem como, aos poucos, mais uma série de segredos de família. e eventualmente, por entre um caderno de recortes, até uma coleção muito antiga e valiosa de selos que o tio Arnaldo, um famosíssimo colecionador, já senil deve ter confundido e tirou do sítio onde guardava essas preciosidades.
E que, depois de muito se debater, concluiu que era sua, sem qualquer dúvida, estava no lote de coisas que os filhos do tio Arnaldo teriam deitado ao lixo não fosse ela estar ali para lhes poupar até mesmo essa viagem. E seriam esses selos que lhe haviam de valer o suficiente para se livrar dos monos e da casa com humidade, para se mudar para um sítio com sol e viver a vida que teriam querido os pais e os tios, longe da família que a usava e cuidando finalmente de si, numa casa junto ao mar, com uma estante grande de livros velhos e estragados, onde revisitava os "seus velhinhos".
domingo, novembro 03, 2013
César e o Sr. Sá
Ela falou dele e tratou-o pelo segundo nome.
E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).
E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.
O mundo de César parou nesse momento.
Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.
Foram meros instantes no tempo mundano, mas na sua cabeça, foi o processo lento de uma faísca se formar de uma chispa na pedra que se roçava havia algum tempo, tocar em algo inflamável e se espalhar pela floresta de pensamentos na ordem certa.E estes pensamentos já se alinhavam em desconfiança abafada, havia algum tempo.
Ela tratou-o pelo segundo nome com a naturalidade de quem o
faz com frequência; disse Filipe em vez de Herculano e continuou a falar
normalmente, sem interromper a linha de raciocínio.
E César, que se preparava para entrar no carro ficou parado
no seu incêndio mental, na inflexão momentânea que estas coisas demoram aos
olhos dos outros.
César sempre fora um homem de detalhes. Acreditava piamente
no credo que diz que Deus (ou o Diabo!) está nos detalhes e era meticuloso no
que fazia. Aliás gabava-se de preferir ter pouco e fazer pouco e fazê-lo bem,
do que o contrário.
Não gostava de tralha.
Não gostava de tralha.
Fazia-o não porque fosse uma pessoa vazia, mas porque pelo
contrário, tinha tantas ideias, tanto que passava na sua cabeça, que este
minimalismo o ajudava a lidar com a muita informação que ia armazenando – nem
sempre por vontade sua.
César era uma daquelas pessoas que vive no momento e é
incapaz de esquecer uma conversa, uma história, um detalhe. Não era uma
habilidade treinada, era algo que lhe acontecia naturalmente.
Não era raro surpreender as pessoas que encontrava na rua, a
meio da conversa de circunstância perguntando como estava a mãe, que tinha sido
“operada, não era? Como correu? Ela sempre se deu lá com o médico?”. As pessoas,
que estão pouco habituadas a ser lembradas nos pequenos detalhes – que no fundo
revelam as grandes coisas - por quem não lhes é íntimo, desenvolviam por ele um
carinho fácil e a crença de que era “muito inteligente”.
O que se passava na sua cabeça não tinha grande mistério. Estava a pensar noutra coisa e depois aparecia a Tânia. A cabeça dele fazia: – “Eu
conheço esta pessoa… Quem é esta pessoa? ah! Lembro-me dela, conheci-a na rua
Miguel Bombarda, ela estava com o Herculano e estivemos um pedaço a falar de
operações porque a mãe dela ia ser operada e estava com medo porque não gostava
do cirurgião. Não me lembro do nome dela.”
O passo seguinte, naturalmente, era perguntar pela mãe da
rapariga a meio da conversa. A rapariga que vinha distraída pela rua
provavelmente estava nesse momento a olhar para ele e fazer um enorme esforço
para tentar lembrar-se do nome dele. Era o tipo que conhecera quando estava com
o Filipe e estiveram montes de tempo à conversa, “como é que era o nome dele,
como é que era? Ai.. não me lembro!... Não me lembro… Não me lembro…”
Conclusão, Tânia ficava com a sensação de que realmente não
tinha sido muito fixe, como é que podia não se lembrar de nada daquele moço tão
simpático, que ainda por cima lhe perguntava pela mãe – como é que ele se
lembrava daquela conversa? Que coisa incrível!" – e o facto de ele ter pedido
desculpa que não se lembrava do nome dela, passava completamente ao lado.
Um processo simples. E que ia ainda mais construindo a
“biblioteca de factos do quotidiano das pessoas à minha volta, próximas ou
não”, bem como “a pilha de conhecimento dos factos mais inúteis do mundo” (que
era como César chamava carinhosamente aos infofacts
que lá ia coleccionando da mesma forma) e que lhe rendiam a tal fama de
inteligente.
“Acho uma estupidez os meses não serem só o número, nunca me
lembro do número que corresponde a cada mês, pá. E que lógica tem chamares a um
mês setembro, se depois lhe dás um número que não é o sete?” queixou-se ela,
certa vez. César respondia distraído a estas coisas, sem parar de lavar a loiça
“originalmente o ano tinha dez meses, mas depois Júlio César quis ter o seu
próprio mês e criou Julio - julho, o imperador Augusto que se seguiu quis fazer
o mesmo e criou agosto, e é por isso que setembro não é o mês sete, mas nove,
outubro não é oito, novembro não é nove… e dezembro não é dez.”
Ou seja, no fundo, César sabia que não era tão inteligente
ou atencioso como os outros pensavam, tinha era a sua mente era habitada por um
bibliotecário particularmente meticuloso, a que ele se referia carinhosamente
por Sr. Sá (por ser a primeira parte da palavra Sábio, a quem faltava a
segunda, “bio”, a vida, porque a ninguém adianta ter um "Sr. Sá" se não viver
verdadeiramente… Permanece tudo como facto, conhecimento nunca passa a
sabedoria!).
No momento em que Joana Amélia tratou o amigo comum por Filipe e não por Herculano, o Sr. Sá puxou o arquivo e mostrou-lhe o dia de aniversário
e a conversa que tinham tido no carro sobre a forma como Joana tinha ficado a
falar com Herculano. Lembrou-lhe que ele não estava inquisitivo nem ciumento e
ela reagiu de forma intempestiva e defensiva, que disse a palavra (sublinhada
pelo Sr. Sá) Herculano de uma forma muito pronunciada, ainda a mastigar cada
sílaba, como se estivesse a adaptar o aparelho fonador a uma palavra
estrangeira. Lembrou-se na altura de pensar que o facto de ela estar um pouco
bêbada se calhar também não a ajudava.
Depois, o Sr. Sá, pegou noutro arquivo que tinha já em cima
da mesa, como se já o tivesse tentado mostrar várias vezes, da conversa do dia
em que César conhecera Tânia e como tinham brincado com o facto de ela tratar
Herculano por Filipe – na altura ele tinha feito uma piada com qualquer coisa
do género “rápido, disfarça, pode ser que ele não repare que te enganaste no
nome”. E de como tinha ficado subentendido que esse tratamento derivava de uma
intimidade de cama.
O Sr. Sá depois continuou com os ficheiros que já estavam
abertos em cima da mesa grande em mogno e mostrou-lhe a conversa que Joana
Amélia tinha puxado cerca de um mês antes da noite de aniversário, sobre um
amigo que contara que não-sei-quem do seu passado (os nomes sempre ilegíveis na letra
do Sr. Sá) andava a espalhar rumores sobre ela e que ela só queria esclarecer tudo e preparar César se "coisas absurdas sobre a sua pessoa chegassem aos seus ouvidos" ou se alguém fosse falar com ele, porque havia uma história qualquer com um ex esquisita. César não tinha ligado muito à conversa, porque percebera que Joana estava a preocupar-se demasiado com a influencia que outras pessoas poderiam ter sobre a opinião dele e ele era uma pessoa leal, isso não lhe interessava nada. Mas esta incapacidade, este handicap, esta
deficiência enfurecedora de não conseguir esquecer detalhes, reavivava-lhe
todos pormenores que tornavam cada vez mais implausível que Joana não se estivesse a
referir a Herculano naquele rosário desfiado - e que talvez ela não fosse assim tão inocente e aquela fosse apenas uma manobra.
E esta era sempre a parte de juntar as peças de um puzzle de
factos do Sr. Sá em que César dizia a si mesmo que, realmente, lá muito esperto
não era, porque aquela realidade incontornável e óbvia tinha demorado meses a fazer
faísca.
E o Sr. Sá, a verdade é que realmente fazia jus ao seu nome,
dava-lhe os factos, mas nunca lhe dizia o que fazer depois.
César parou-se antes de entrar para o carro. Ainda com os
ficheiros do Sr. Sá abertos e sem conseguir acreditar no que o puzzle parecia
querer dizer. Como de costume pensou “Se calhar, estou a ver mal. Isto não pode
estar certo.”
Arranjou uma desculpa para não ir com ela no carro, que a
ele lhe pareceu plausível e despediu-se como de costume. Pôs o corpo em piloto
automático: “para casa a pé”, enquanto se sentava à mesa calmamente com o Sr.
Sá a ir buscar-lhe todos os ficheiros que ele pedia e mais alguns que ele já
tinha de reserva para aquela situação.
Chegou a casa e foi consultar o Sr. Sá da internet: o Facebook.
Joana Amélia era amiga de Herculano Filipe – tudo certo, eles conheciam-se de
vista havia imenso tempo e tinham-se tornado amigos no seu aniversário. O Sr.
Sá pigarreou. César foi ver a semana da conversa manhosa. Um discreto
comentário jocoso de Herculano numa fotografia dela, mencionando um vinho -
“Papa-figos” - pelo qual Joana andara obcecada naquela altura e que depois lhe
passou.
O Sr. Sá olhou por cima dos óculos para César, como quem
pergunta se já pode arrumar a meia biblioteca que este lhe desarrumou à procura
da prova de inocência de Joana, encontrando a cada passo mais uma prova da implausibilidade
da mesma.
Com os olhos molhados, cabisbaixo, César acedeu, agradecendo o trabalho e paciência do funcionário.
E sentou-se na soleira da porta de casa sem saber bem o que fazer nessa situação, em que não tinha encontrado Joana em flagrante e não
tinha nada em concreto para sustentar o que sabia, tantos meses depois.
E o entanto, o que sabia era completamente incontornável:
Joana mentia e o Sr. Sá iria sempre apanhá-la, mas nunca "com a boca na botija".
E este facto incontornável, de que havia algo que Joana lhe escondia, lhe mentia, apesar de tudo o que já sabia sobre si e sobre o bibliotecário implacável que o habitava, denotava não só uma enorme falta de respeito pela relação que tinham, mas uma falta de consideração total pela sua pessoa e pelos desgostos a longo prazo que lhe haveria sempre de proporcionar com as suas mentiras (piedosas ou não).
E foi nesse mesmo momento que César percebeu que, se não tinha como confrontar Joana, ia mesmo ter de sair daquela relação, da qual jamais se poderia esquecer.
quinta-feira, setembro 26, 2013
Francisca
(Para a Francisca e o miúdo)
“Fránscisca! Ánda verr como eu me porrto bém!” – o miúdo agarrava
na mão dela como se lhe pertencesse a ele e levava-a sem cerimónias e sem lhe
perguntar se se importava para a sala dos mielogramas, com a sua alegria e o
seu sotaque angolano.
Deitava-se de lado enquanto lhe faziam a punção lombar,
fugia-lhe uma lágrima (bandida! E ele que queria ser tão corajoso que nem uma
gota lhe saísse!) e ele apertava a sua mão.
“Viste, viste como eu me portei bem?” – sem se incomodar com
o facto de o procedimento médico ser chocante para qualquer pessoa fora da área
da saúde. Provavelmente, sem sequer pensar nisso.
O miúdo adotou-a, pegou na alma dela e colou-a na dele com
um adesivo mais forte que super cola 3 e com a sua inocência de criança juntou
as suas vidas e os seus destinos de uma forma mais profunda do que ela alguma
vez imaginou.
Era ela que o visitava, mas era ele que lhe soprava uma
brisa suave de cada vez que sorria, e lhe engrandecia o coração com a sua
gargalhada aberta.
E se era ela que lhe segurava na mão, era ele que a
apertava.
O miúdo era isso mesmo, um miúdo. Puro, inocente, vivo.
Esperto e engraçado. E bonito, com a sua pele cor de chocolate quente e o seu
cabelo de carapinha, olhos negros e voz rasgada.
Daquela maneira pura e desabrida, amava as pessoas que se
cruzavam no seu caminho, mas especialmente a sua Francisca. A Francisca, por seu turno, como dizê-lo de outra forma? Era dele.
A sua relação inesperada, simbiótica e tão bonita, de miúdo que,
com a mãe a milhares de quilómetros, quase sozinho e muito doente, sabiamente
escolhe alguém com o coração do tamanho de uma casa para o acompanhar na
esperança (e depois na ausência dela) só pôde acontecer porque claramente ambos se
reconheceram como iguais.
Dois corações grandes como duas casas, dispostos a partilharem
alegrias e tristezas e a partirem, quando enfrentassem a inevitável despedida.
O miúdo partiu, com a sua Francisca a acompanhá-lo até ao
fim. A sua Francisca ficou.
No coração-casa da Francisca há para sempre um quarto com o
nome do miúdo. E eu desconfio, que no coração-casa do miúdo, também há para
sempre um lugar muito especial para a sua Francisca.
sábado, maio 11, 2013
Estrela (2)
Chamaram-lhe Estrela sem outro motivo que a sua raça ser Serra da Estrela.
Estrela era um cachorrinho bonito e ainda muito pequeno quando foi roubada a uma mãe com a resignação triste de quem já pariu muitas ninhadas para humanos que colecionam "raças puras".
O dono queria-a para cão de guarda da Quinta que tinha na "província". O Dr. Rui, um médico cirurgião ("operador", como lhe chamavam os locais) do Porto era dono da Quinta da Igreja, entre a Quinta dos Sousas e da Quinta do Moínho.
Estrela foi escolhida com gosto pela esposa do Dr. Rui e deixada aos cuidados do caseiro, um homem simples que lhes tratava da casa, da horta e dos pomares e que agora ficava também encarregue de cuidar da Estrela.
Como sucede com frequência às gentes simples de vidas muito ásperas, o sentido de poesia e o lado franciscano do caseiro não era especialmente forte, e a perspetiva de ter na propriedade um animal que não produzia riqueza nem alimento, parecia-lhe uma chinesice, apesar de compreender o conceito de cão de guarda.
Assim, Estrela - que entendia o caseiro tinha de ser um cão feroz para assustar os potenciais intrusos - nunca foi uma cadela acarinhada nem mimada em cachorra. Era mantida numa jaula durante o dia, solta à noite e alimentada com as sobras de todas as sobras (as escolhas dos restos dos humanos, filtradas pelas necessidades de outros animais que dessem leite, ovos, ou carne). E era açorreada com frequência, para lhe manter o rosnar fresco.
Ao fim de um ano, Estrela era o cão mais conhecido da população, chamada o "Cão da Igreja" e conhecida por ser um cão mau, feroz e incerto. Ninguém se atrevia a chegar perto da cadela, mesmo para lhe dar de comer.
A sua fama era tal, que o "Cão da Igreja" era usado para assustar as crianças, induzindo-as a portarem-se bem ou a comerem a sopa.
Aos olhos do caseiro, a cadela cumpria a sua função, e a Quinta da Igreja era a propriedade mais bem guardada de toda a região. Nada mais se podia pedir dela, nem dele.
Mas quase um ano após comprar a cadela, quando o Dr. Rui foi à terra ver a quinta e trazer fruta e carne "caseira", a opinião do patrão foi diferente.
Desolado ao ver a cadela que tinha escolhido com brio, infeliz e escanzelada, transformada num mito urbano e geradora de várias lendas sobre o seu mau feitio e força, o Dr. Rui decidiu que a pobre bicha merecia outros donos.
Pensou arduamente nos seus conhecidos, fazendo contas de cabeça à qualidade humana mas também moleza de coração dos vizinhos. Cogitou durante os dois dias em que esteve na herdade como iria formular o pedido e ganhou coragem antes de ligar para o vizinho da Quinta do Moínho, um homem conhecido pela sua bondade e paciência, casado com a professora primária da terra e pai de uma bebé de um ano.
Joaquim recebeu a chamada do Dr. Rui por quem tinha grande estima com surpresa e reservas. O Dr. Rui teve o cuidado de tratar a cadela pelo seu nome verdadeiro, pedindo-lhe se ele poderia ficar com a sua cadela "Estrela" que estava vacinada e saudável, porém muito carente - mas Joaquim percebeu que o amigo lhe falava mansamente do "Cão da Igreja", a pior e mais ruim fera das redondezas. Lembrou-o que tinha uma filha pequena, que não podia arriscar-se com um cão mau e recusou-se.
Mas Rui tinha tanto de inteligente como de casmurro, e tanto lhe apelou ao sentimento, tanto o convenceu de que a ruindade não era genética e que são os donos que fazem os cães, que ao fim de duas ou três chamadas, Joaquim lá aceitou, para gáudio e gratidão do Dr. Rui.
Estrela foi para a nova casa com o açaime posto, furiosa com uma troca que não compreendia.
E Joaquim, que fazia jus à sua boa fama, recebeu-a com o afeto e autoridade. Arranjou forma de a cadela poder andar à volta da casa, através de um sistema que engendrara em que a cadela ficava presa com uma trela ligada a um arame que dava a volta à cerca, permitindo ao animal ver a rua e andar bastante, sem nunca perigar a vida e o bem estar de habitantes e visitantes da casa.
Invariavelmente, a cadela era reconhecida como o "Cão da Igreja", causando pânico aos transeuntes e visitantes apesar da trela e do tempo decorrido. E apesar destes elementos, e de efetivamente já não ser o "Cão da Igreja" (quando muito, o "Cão do Moínho", porque era o nome da sua nova quinta) o certo é que Estrela continuava a não ser muito de fiar; não fazia mal aos de casa, mas ninguém se arriscava a deixá-la chegar aos restantes.
Um dia, Joaquim que gostava da cadela e a tratava com a esperança de quem cuida de um pássaro com a asa ferida, decidiu levá-la a passear para uma das suas eiras, para a cadela mudar de ares e caminhar um bocadinho. Levava-a pela trela, não fosse o diabo tecê-las - mas o diabo teceu-as e a cadela soltou-se dele com um puxão, desaparecendo da sua vista.
Resignado e convencido que a cadela teria voltado para a Quinta da Igreja, Joaquim procurou a cadela sem sucesso, voltando a casa resignado e com uma enorme sensação de derrota.
Quando chegou, a cadela esperava pelos donos deitada na relva à frente do portão, ofegante e feliz.
Depois desse dia, nunca mais se prendeu a Estrela.
Com o acesso às pessoas facilitado e bem vindo, Estrela pode demonstrar toda a doçura que lhe haviam reprimido nos primeiros tempos de vida. Era um cão manso e dócil de uma dedicação inabalável aos donos - sobretudo ao dono.
Estrela gostava de acompanhar a dona até à escola, indo à sua frente, qual estrela-guia. Para as crianças da escola, Estrela era uma extensão da professora, que sabiam que estava a chegar quando viam a cadela. E Estrela gostava de ficar na sala de aula, ao lado da secretária da professora a ouvir as aulas e a ver as crianças. Os alunos esqueciam-se que ela estava por ali e tropeçavam nela, pisavam-lhe a cauda, iam contra ela. E Estrela, outrora o "Cão da Igreja", limitava-se a levantar a cabeça e a voltar a pousá-la, na atitude pachorrenta dos cães muito habituados a gente boa.
Estrela vivia feliz e mimada pelos donos e os filhos dos donos que a tinham quase como se fosse uma irmã peluda e muito amada. Levavam-na para todo o lado e Estrela seguia-os, como uma alma que viveu um inferno e reconhecia com gratidão quem a tinha salvado.
De uma forma que os seus donos não poderiam perceber, Estrela compreendia que esta era uma segunda oportunidade, reconhecia os seus erros num passado mais profundo, e agradecia com amor incondicional cada bocadinho de carinho e atenção.
E num dia de festa, com direito a foguetes, Estrela já muito velhinha e debilitada morreu como se apagam as estrelas, afogada no tanque que ficava por baixo da mina onde se escondia quando tinha medo de alguma coisa - como trovoadas... ou foguetes.
E nesta repetição de destinos, com sofrimentos sarados, Estrela cumpriu e pagou o seu karma, para poder reencarnar depois, numa vida com um princípio melhor.
Estrela era um cachorrinho bonito e ainda muito pequeno quando foi roubada a uma mãe com a resignação triste de quem já pariu muitas ninhadas para humanos que colecionam "raças puras".
O dono queria-a para cão de guarda da Quinta que tinha na "província". O Dr. Rui, um médico cirurgião ("operador", como lhe chamavam os locais) do Porto era dono da Quinta da Igreja, entre a Quinta dos Sousas e da Quinta do Moínho.
Estrela foi escolhida com gosto pela esposa do Dr. Rui e deixada aos cuidados do caseiro, um homem simples que lhes tratava da casa, da horta e dos pomares e que agora ficava também encarregue de cuidar da Estrela.
Como sucede com frequência às gentes simples de vidas muito ásperas, o sentido de poesia e o lado franciscano do caseiro não era especialmente forte, e a perspetiva de ter na propriedade um animal que não produzia riqueza nem alimento, parecia-lhe uma chinesice, apesar de compreender o conceito de cão de guarda.
Assim, Estrela - que entendia o caseiro tinha de ser um cão feroz para assustar os potenciais intrusos - nunca foi uma cadela acarinhada nem mimada em cachorra. Era mantida numa jaula durante o dia, solta à noite e alimentada com as sobras de todas as sobras (as escolhas dos restos dos humanos, filtradas pelas necessidades de outros animais que dessem leite, ovos, ou carne). E era açorreada com frequência, para lhe manter o rosnar fresco.
Ao fim de um ano, Estrela era o cão mais conhecido da população, chamada o "Cão da Igreja" e conhecida por ser um cão mau, feroz e incerto. Ninguém se atrevia a chegar perto da cadela, mesmo para lhe dar de comer.
A sua fama era tal, que o "Cão da Igreja" era usado para assustar as crianças, induzindo-as a portarem-se bem ou a comerem a sopa.
Aos olhos do caseiro, a cadela cumpria a sua função, e a Quinta da Igreja era a propriedade mais bem guardada de toda a região. Nada mais se podia pedir dela, nem dele.
Mas quase um ano após comprar a cadela, quando o Dr. Rui foi à terra ver a quinta e trazer fruta e carne "caseira", a opinião do patrão foi diferente.
Desolado ao ver a cadela que tinha escolhido com brio, infeliz e escanzelada, transformada num mito urbano e geradora de várias lendas sobre o seu mau feitio e força, o Dr. Rui decidiu que a pobre bicha merecia outros donos.
Pensou arduamente nos seus conhecidos, fazendo contas de cabeça à qualidade humana mas também moleza de coração dos vizinhos. Cogitou durante os dois dias em que esteve na herdade como iria formular o pedido e ganhou coragem antes de ligar para o vizinho da Quinta do Moínho, um homem conhecido pela sua bondade e paciência, casado com a professora primária da terra e pai de uma bebé de um ano.
Joaquim recebeu a chamada do Dr. Rui por quem tinha grande estima com surpresa e reservas. O Dr. Rui teve o cuidado de tratar a cadela pelo seu nome verdadeiro, pedindo-lhe se ele poderia ficar com a sua cadela "Estrela" que estava vacinada e saudável, porém muito carente - mas Joaquim percebeu que o amigo lhe falava mansamente do "Cão da Igreja", a pior e mais ruim fera das redondezas. Lembrou-o que tinha uma filha pequena, que não podia arriscar-se com um cão mau e recusou-se.
Mas Rui tinha tanto de inteligente como de casmurro, e tanto lhe apelou ao sentimento, tanto o convenceu de que a ruindade não era genética e que são os donos que fazem os cães, que ao fim de duas ou três chamadas, Joaquim lá aceitou, para gáudio e gratidão do Dr. Rui.
Estrela foi para a nova casa com o açaime posto, furiosa com uma troca que não compreendia.
E Joaquim, que fazia jus à sua boa fama, recebeu-a com o afeto e autoridade. Arranjou forma de a cadela poder andar à volta da casa, através de um sistema que engendrara em que a cadela ficava presa com uma trela ligada a um arame que dava a volta à cerca, permitindo ao animal ver a rua e andar bastante, sem nunca perigar a vida e o bem estar de habitantes e visitantes da casa.
Invariavelmente, a cadela era reconhecida como o "Cão da Igreja", causando pânico aos transeuntes e visitantes apesar da trela e do tempo decorrido. E apesar destes elementos, e de efetivamente já não ser o "Cão da Igreja" (quando muito, o "Cão do Moínho", porque era o nome da sua nova quinta) o certo é que Estrela continuava a não ser muito de fiar; não fazia mal aos de casa, mas ninguém se arriscava a deixá-la chegar aos restantes.
Um dia, Joaquim que gostava da cadela e a tratava com a esperança de quem cuida de um pássaro com a asa ferida, decidiu levá-la a passear para uma das suas eiras, para a cadela mudar de ares e caminhar um bocadinho. Levava-a pela trela, não fosse o diabo tecê-las - mas o diabo teceu-as e a cadela soltou-se dele com um puxão, desaparecendo da sua vista.
Resignado e convencido que a cadela teria voltado para a Quinta da Igreja, Joaquim procurou a cadela sem sucesso, voltando a casa resignado e com uma enorme sensação de derrota.
Quando chegou, a cadela esperava pelos donos deitada na relva à frente do portão, ofegante e feliz.
Depois desse dia, nunca mais se prendeu a Estrela.
Com o acesso às pessoas facilitado e bem vindo, Estrela pode demonstrar toda a doçura que lhe haviam reprimido nos primeiros tempos de vida. Era um cão manso e dócil de uma dedicação inabalável aos donos - sobretudo ao dono.
Estrela gostava de acompanhar a dona até à escola, indo à sua frente, qual estrela-guia. Para as crianças da escola, Estrela era uma extensão da professora, que sabiam que estava a chegar quando viam a cadela. E Estrela gostava de ficar na sala de aula, ao lado da secretária da professora a ouvir as aulas e a ver as crianças. Os alunos esqueciam-se que ela estava por ali e tropeçavam nela, pisavam-lhe a cauda, iam contra ela. E Estrela, outrora o "Cão da Igreja", limitava-se a levantar a cabeça e a voltar a pousá-la, na atitude pachorrenta dos cães muito habituados a gente boa.
Estrela vivia feliz e mimada pelos donos e os filhos dos donos que a tinham quase como se fosse uma irmã peluda e muito amada. Levavam-na para todo o lado e Estrela seguia-os, como uma alma que viveu um inferno e reconhecia com gratidão quem a tinha salvado.
De uma forma que os seus donos não poderiam perceber, Estrela compreendia que esta era uma segunda oportunidade, reconhecia os seus erros num passado mais profundo, e agradecia com amor incondicional cada bocadinho de carinho e atenção.
E num dia de festa, com direito a foguetes, Estrela já muito velhinha e debilitada morreu como se apagam as estrelas, afogada no tanque que ficava por baixo da mina onde se escondia quando tinha medo de alguma coisa - como trovoadas... ou foguetes.
E nesta repetição de destinos, com sofrimentos sarados, Estrela cumpriu e pagou o seu karma, para poder reencarnar depois, numa vida com um princípio melhor.
quarta-feira, maio 01, 2013
Mateus
Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.
Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.
Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
Eugénio de Andrade in «O sal da língua precedido de trinta poemas»
"Uma sombra é o resultado de a luz não conseguir chegar onde pretende." - traduziu Mateus da entrada da wikipedia.
"A Wikipedia sabe lá "o que a luz pretende"!" - respondeu ela muito depressa. "Se calhar a luz pretende desenhar no chão o nosso guarda-sol."
Sorriu.
Sorriram.
De facto. Sabe-se lá o que "a luz quer".
Porque no fundo a sombra não deixa de ser o fruto visível da relação entre a luz - que não se pode tocar - e um objeto tactil qualquer.
A sombra depende da intensidade da luz. da cor da luz. do ângulo da luz. Mas também depende da forma do objeto. Do material que o compõe (se é translúcido ou não, por exemplo). da posição em que ele se encontra.
Esta relação luz-objeto pode ser desejada e até planeada, como quando escolhemos o sítio onde pomos o guarda-sol - ou pode ser desagradável, como quando se atravessa uma sombra no nosso livro.
As sombras podem ser enganadoras, como quando os galhos de uma árvore parecem garras e podem ser os monstros que assustam as crianças. Podem ser reconfortantes, como a sombra da aba do chapéu sobre os olhos.
A sombra da fotografia de Madrid era intencional, por exemplo, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.
Um candeeiro de rua, bonito e alto, desenhava-se no chão como se tivesse quatro braços, que se movimentavam de formas diferentes.
Como se a mesma fonte de luz tivesse dois pares de braços. Quem sabe para dar abraços melhores, fazer as coisas mais depressa ou dançar mais graciosamente.
A figura que a luz desenhava no chão, o contorno de todos os corpos que a luz abraçava, unia-os na mesma massa, juntando os seus dois corpos no mesmo desenho onde podiam identificar pedaços de si, mas que ao mesmo tempo era bem mais alto que ambos os namorados.
O resultado da brincadeira que tinham feito era no fundo uma boa metáfora para a relação de ambos: duas metades da mesma alma luminosa, encontradas, dispostas a juntar todas as suas forças no mesmo corpo, na mesma vida.
E se uma sombra pode não ser mais que a impressão de um instante, uma coisa que até pode ser enganadora, o facto é que também apenas na presença de muita luz se fazem sombras fortes e bem desenhadas. E se tentamos por muitos meios eliminar muitas das sombras das nossas vidas com claraboias e candeeiros (e que mais é a noite se não o período de sombra que nos impõe o movimento da terra), a verdade é também que na presença de muita luz, a sombra de uma árvore, de uma cortina, de uma aba é fundamental.
Na presença de muita luz, uma sombra pode chegar mesmo a ser a diferença entre a vida e a morte, entre ter visão e ficar cegado, mesmo que momentaneamente.
E olhando para esta foto em especial, onde uma sombra une duas pessoas que passam a fazer parte de um candeeiro que ilumina a escuridão, Mateus pensava como as "almas gémeas" podem ser a mesma alma que se divide em diferentes corpos. Pensava na entrada da Wikipedia que dizia que a sombra é a ausência de luz. Sorria com o disparate e dizia à sua amada com doçura ao ouvido:
"a tua sombra é um lugar luminoso"
É, a sombra da fotografia de Madrid era intencional, como se estivessem a fazer sombras chinesas, a contar uma história.
E contavam.
quinta-feira, abril 11, 2013
Alice
( participação de Joana Vilaverde no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)
Respondia às mensagens de aniversário como quem come aos bocadinhos um chocolate muito bom e muito caro. Guardava os emails, mensagens de facebook, mensagens e o que mais pudesse, para mais tarde. Que as coisas boas consumidas todas no mesmo dia enjoam e às tantas já nem lhes sentimos o sabor, só as queremos despachar.
E uma boa conversa, uma boa palavra, era algo que Alice se recusava a despachar, por lhe parecer o pior dos desperdícios.
Então, respondia-lhes com calma e doçura, devagar, a conta gotas nos dias maus, em que tinha mais saudades das pessoas que não via com tanta frequência como gostaria. em que precisava de um abraço.
era um ritual lento e prazeiroso, de luas. Podia estar a responder a mensagens o ano inteiro, porque quem dá coisas boas, recebe coisas boas e era fácil obter respostas que começavam conversas, deixando ainda por responder, guardadas como se estivessem fechadas na embalagem, as mensagens restantes.
porque as pessoas esquecer-se-ão de quão depressa se fizeram as coisas, mas lembrar-se-ão de quão bem feitas foram.
Alice acreditava pouco em convenções sociais. A sua mente estava permanentemente "fora da caixa", como se vivesse sempre do lado de lá do espelho, e conseguia transformar qualquer sítio onde estivesse numa festa, num sofá com lareira à frente. num fim de tarde na praia.
E através dos seus olhos os outros viam-se mais bonitos, mais bondosos, melhores na sua condição humana.
Alice era perita neste jogo que podemos chamar de ilusionismo humano, mas que na verdade podia ser simplesmente a descrição de Thoreau daquilo que é a arte: não importa para onde se olha, o que importa é o que se vê.
E na arte da fotografia humana, Alice via o positivo.
e mostrava-o.
Porque a sua maior qualidade não residia na arte definida por Thoreau, mas por Degas: a arte não é o que se vê, a arte é o que se faz os outros verem.
E Alice conseguia quase sempre fazê-los verem-se pelos seus olhos: numa festa, num sofá confortável. num fim de dia na praia. Bonitos, bondosos, inteligentes e justos - como ela os via.
Do outro lado do espelho.
Porque um espelho tem tantos lados quantos os olhos que o vêem.
Respondia às mensagens de aniversário como quem come aos bocadinhos um chocolate muito bom e muito caro. Guardava os emails, mensagens de facebook, mensagens e o que mais pudesse, para mais tarde. Que as coisas boas consumidas todas no mesmo dia enjoam e às tantas já nem lhes sentimos o sabor, só as queremos despachar.
E uma boa conversa, uma boa palavra, era algo que Alice se recusava a despachar, por lhe parecer o pior dos desperdícios.
Então, respondia-lhes com calma e doçura, devagar, a conta gotas nos dias maus, em que tinha mais saudades das pessoas que não via com tanta frequência como gostaria. em que precisava de um abraço.
era um ritual lento e prazeiroso, de luas. Podia estar a responder a mensagens o ano inteiro, porque quem dá coisas boas, recebe coisas boas e era fácil obter respostas que começavam conversas, deixando ainda por responder, guardadas como se estivessem fechadas na embalagem, as mensagens restantes.
porque as pessoas esquecer-se-ão de quão depressa se fizeram as coisas, mas lembrar-se-ão de quão bem feitas foram.
Alice acreditava pouco em convenções sociais. A sua mente estava permanentemente "fora da caixa", como se vivesse sempre do lado de lá do espelho, e conseguia transformar qualquer sítio onde estivesse numa festa, num sofá com lareira à frente. num fim de tarde na praia.
E através dos seus olhos os outros viam-se mais bonitos, mais bondosos, melhores na sua condição humana.
Alice era perita neste jogo que podemos chamar de ilusionismo humano, mas que na verdade podia ser simplesmente a descrição de Thoreau daquilo que é a arte: não importa para onde se olha, o que importa é o que se vê.
E na arte da fotografia humana, Alice via o positivo.
e mostrava-o.
Porque a sua maior qualidade não residia na arte definida por Thoreau, mas por Degas: a arte não é o que se vê, a arte é o que se faz os outros verem.
E Alice conseguia quase sempre fazê-los verem-se pelos seus olhos: numa festa, num sofá confortável. num fim de dia na praia. Bonitos, bondosos, inteligentes e justos - como ela os via.
Do outro lado do espelho.
Porque um espelho tem tantos lados quantos os olhos que o vêem.
quarta-feira, abril 03, 2013
Estrela
( participação de Sophie Lucha no concurso do mês de março da página de facebook do Personificcionar)
Estrela era uma mulher bonita e tinha bom gosto. Era alegre e bem disposta. Amada por todos os que a rodeavam, era mãe de duas crianças pequenas e bonitas. Tinha uma casa bonita no meio do campo e um trabalho bom com horários flexíveis. Tinha uma família bonita e carinhosa.
Estrela era conhecida por sorrir sempre, por ter sempre uma boa palavra para quem se cruzava com ela.
E tinha sempre paciência. E parecia ter tudo mais que uma pessoa possa querer na vida.
Um dia encontraram o carro dela com uma carta despedida dentro.
As estrelas - sóis - são corpos celestes, não são da terra. E Estrela, que sentia que tinha de iluminar as vidas dos outros, não permitia que a vissem com menos luz. Escondia o negrume dentro de si. Guardava-o tão bem guardado no centro secreto de si que começou a colapsar de dentro para fora, como se tivesse dentro de si um buraco negro.
Quando percebeu o que lhe acontecera, Estrela achou que se poderia estar a tornar ela mesma num buraco negro e temeu em breve começar não só a desintegrar-se, mas também a atrair para si toda a matéria circundante que assim se colapsaria também. O seu negrume mentiu-lhe que corria o risco de ser a destruição dos colegas, dos amigos, da família. Dos filhos.
E achou que o negrume que a devorava secretamente poderia em breve começar a devorar os outros, a começar pelos que lhe eram próximos e queridos. e este pensamento era-lhe insuportável.
Não lhe ocorreu que as estrelas não são sem arestas, que brilham apesar do impacto de outros corpos celestes. Esqueceu-se que o seu brilho iluminava e aquecia a vida dos outros, mas que não era o único, que havia outras estrelas na mesma constelação e que o seu negrume era apenas seu, e que os outros à sua volta eram também corpos celestes (cometas, planetas e outros astros). e que também tinham força para a ajudar. que podia ser vulnerável e ter escuridão.
Perante a perspetiva aterradora de poder prejudicar as pessoas que tanto amava com o negrume que não suportava mostrar nem partilhar, e sobre o qual não sentia qualquer controlo, Estrela decidiu apagar o seu fogo nas águas do rio grande que atravessava todos os dias.
Como-se ao se apagar nas águas do rio, pudesse impedir o negrume de se alastrar.
E num dia triste de chuva, despediu-se da vida terrestre atirando-se de uma ponte alta para as águas fundas e conturbadas daquele rio. E o céu ganhou uma estrelinha nova que se vê ao longe, e que ao contrário dos seus receios mais íntimos, inconfessados, nunca estivera destinada a ser um buraco negro mas cujo brilho e calor se sentiriam para sempre.
sexta-feira, março 29, 2013
Julião
Julião era uma pessoa de mal consigo mesma.
Artista plástico, desde cedo demonstrara grande domínio das mais diversas técnicas expressivas e desde sempre ouvira fartos elogios ao seu trabalho, ao seu potencial e como eram esperadas de si coisas grandiosas.
Munido desta confiança que tinha algo de muito excecional para oferecer ao mundo, Julião estudou nas melhores academias de arte dentro e fora do país e investiu todo o tempo e todo o dinheiro ao seu alcance para ser o melhor possível.
E não se saía mal; era um aluno sempre no top três das turmas que frequentava. E assim, o artista confirmava a cada dia que passava que era muito bom e que tinha potencial para fazer coisas muito boas, quiçá para revolucionar o mundo da arte por inteiro.
Mas à medida que aumentava o nível de conhecimentos, aumentava também a expectativa que o jovem tinha sobre si mesmo, o quão exigente era para consigo próprio. E paralelamente, também o quanto se gabava.
Ao mesmo tempo que estes dois fenómenos aumentavam - a expectativa esmagadora de si sobre si mesmo e a forma empolgada e exagerada com que falava do que estava a fazer - crescia também o medo inconfessável de Julião de ser um fracasso, um falhado. De investir a sua vida toda para depois a montanha parir um rato.
Julião sentia que a na sua vida sempre tinha conseguido superar as provas a que se submetia, e estava habituado a ser testado. Mas não sabia o que fazer nem o que esperar do "mundo real" onde as regras nem sempre são explícitas - sobretudo no que toca à arte - e onde nem sempre é a qualidade artística pura e simples a determinar as oportunidades oferecidas.
Num exercício de procrastinação refinada e muito bem camuflada, refugiava-se na necessidade de se refinar para continuar sem apresentar uma exposição só sua. Participava em exposições coletivas ocasionalmente com boas críticas, mas dizia que queria "quando saísse para o mundo", sair logo a deslumbrar, a vencer, a não falhar.
Falhar, para si, não era admissível, simplesmente. Sempre fora o melhor, e a sua carreira profssional não tinha qualquer motivo para ficar atrás disso.
Assim, de cada vez que empolava mais o seu castelo de ar, mais duro se tornava para consigo, mais dificuldade tinha em trazer à luz do dia as muitas ideias que lhe fervilhavam na cabeça. Mais medo tinha de não conseguir, mais intolerante se tornava à crítica, mais impossível era olhar de frente para si mesmo.
E esta dualidade daquilo que não se faz e daquilo que já se devia estar a fazer, dividia-o e punha-o num conflito interno muito grande.
Julião vivia atormentado entre a pequenez que sentia de si nos momentos de introspeção e a megalomania que passava aos outros quando falava do seu percurso, fazendo sempre com que tudo parecesse muito melhor e maior do que era na realidade.
Não vivia em paz consigo mesmo porque tinha medo que as pessoas descobrissem que ele não era tão bom como dizia, que não tinha o sucesso que apregoava, que ele era mais um a lutar por um lugar ao sol, embora se recusasse a aceitar este facto tão vulgar, comum e... normal - todos os adjetivos com que não suportava identificar-se.
No encarnar desta personagem fabulosa e cheia de uma vida que ele não tinha e que se tornava mais e mais evidente à medida que o tempo passava para quem estava atento, Julião ia-se convencendo temporariamente da sua invulnerabilidade e ia sendo progressivamente mais desagradável com as pessoas que conhecia e as que lhe eram apresentadas sempre que estas estivessem frágeis ou demonstrassem insegurança.
Neste contexto, Julião oferecia com prontidão pérolas de sabedoria, receitas escrupulosas do que as pessoas deviam estar a fazer com as suas vidas e não estavam a cumprir, entre comentários que podiam ser trocistas e que eram sempre de superioridade. Julião acreditava verdadeiramente que sabia muito da vida e que a sua visão do mundo era a mais correta e mais límpida e dizia tudo o que pensava com grande eloquência e convicção. E desta forma, fazia-as sentir-se pequenas e por vezes chegava mesmo a humilhá-las.
Não é que Julião fosse má pessoa, no fundo; simplesmente, as pessoas que têm egos muito grandes e obras muito pequenas precisam de diminuir os outros a fim de conseguirem resolver a sua angústia de poderem ser muito e não serem ninguém.
Artista plástico, desde cedo demonstrara grande domínio das mais diversas técnicas expressivas e desde sempre ouvira fartos elogios ao seu trabalho, ao seu potencial e como eram esperadas de si coisas grandiosas.
Munido desta confiança que tinha algo de muito excecional para oferecer ao mundo, Julião estudou nas melhores academias de arte dentro e fora do país e investiu todo o tempo e todo o dinheiro ao seu alcance para ser o melhor possível.
E não se saía mal; era um aluno sempre no top três das turmas que frequentava. E assim, o artista confirmava a cada dia que passava que era muito bom e que tinha potencial para fazer coisas muito boas, quiçá para revolucionar o mundo da arte por inteiro.
Mas à medida que aumentava o nível de conhecimentos, aumentava também a expectativa que o jovem tinha sobre si mesmo, o quão exigente era para consigo próprio. E paralelamente, também o quanto se gabava.
Ao mesmo tempo que estes dois fenómenos aumentavam - a expectativa esmagadora de si sobre si mesmo e a forma empolgada e exagerada com que falava do que estava a fazer - crescia também o medo inconfessável de Julião de ser um fracasso, um falhado. De investir a sua vida toda para depois a montanha parir um rato.
Julião sentia que a na sua vida sempre tinha conseguido superar as provas a que se submetia, e estava habituado a ser testado. Mas não sabia o que fazer nem o que esperar do "mundo real" onde as regras nem sempre são explícitas - sobretudo no que toca à arte - e onde nem sempre é a qualidade artística pura e simples a determinar as oportunidades oferecidas.
Num exercício de procrastinação refinada e muito bem camuflada, refugiava-se na necessidade de se refinar para continuar sem apresentar uma exposição só sua. Participava em exposições coletivas ocasionalmente com boas críticas, mas dizia que queria "quando saísse para o mundo", sair logo a deslumbrar, a vencer, a não falhar.
Falhar, para si, não era admissível, simplesmente. Sempre fora o melhor, e a sua carreira profssional não tinha qualquer motivo para ficar atrás disso.
Assim, de cada vez que empolava mais o seu castelo de ar, mais duro se tornava para consigo, mais dificuldade tinha em trazer à luz do dia as muitas ideias que lhe fervilhavam na cabeça. Mais medo tinha de não conseguir, mais intolerante se tornava à crítica, mais impossível era olhar de frente para si mesmo.
E esta dualidade daquilo que não se faz e daquilo que já se devia estar a fazer, dividia-o e punha-o num conflito interno muito grande.
Julião vivia atormentado entre a pequenez que sentia de si nos momentos de introspeção e a megalomania que passava aos outros quando falava do seu percurso, fazendo sempre com que tudo parecesse muito melhor e maior do que era na realidade.
Não vivia em paz consigo mesmo porque tinha medo que as pessoas descobrissem que ele não era tão bom como dizia, que não tinha o sucesso que apregoava, que ele era mais um a lutar por um lugar ao sol, embora se recusasse a aceitar este facto tão vulgar, comum e... normal - todos os adjetivos com que não suportava identificar-se.
No encarnar desta personagem fabulosa e cheia de uma vida que ele não tinha e que se tornava mais e mais evidente à medida que o tempo passava para quem estava atento, Julião ia-se convencendo temporariamente da sua invulnerabilidade e ia sendo progressivamente mais desagradável com as pessoas que conhecia e as que lhe eram apresentadas sempre que estas estivessem frágeis ou demonstrassem insegurança.
Neste contexto, Julião oferecia com prontidão pérolas de sabedoria, receitas escrupulosas do que as pessoas deviam estar a fazer com as suas vidas e não estavam a cumprir, entre comentários que podiam ser trocistas e que eram sempre de superioridade. Julião acreditava verdadeiramente que sabia muito da vida e que a sua visão do mundo era a mais correta e mais límpida e dizia tudo o que pensava com grande eloquência e convicção. E desta forma, fazia-as sentir-se pequenas e por vezes chegava mesmo a humilhá-las.
Não é que Julião fosse má pessoa, no fundo; simplesmente, as pessoas que têm egos muito grandes e obras muito pequenas precisam de diminuir os outros a fim de conseguirem resolver a sua angústia de poderem ser muito e não serem ninguém.
quarta-feira, março 20, 2013
Felicidade
"Felicidade sou eu." era a piada que Felicidade Graça, professora de
Filosofia, gostava de dizer quando debatia o tema nas aulas.
E por egocentrismo ou afinidade de nomes, este era também o seu conceito preferido e a coisa que mais gostava de abordar nas aulas e até nas conversas em geral.
Gostava que a busca da Felicidade fosse o primeiro direito defendido pela Carta Universal dos Direitos do Homem. Gostava que a Felicidade fosse o bem mais precioso que qualquer pessoa pudesse almejar, sem que pudesse jamais ser comprada. E gostava de debater o conceito com as mais variadas pessoas - embora os amigos já a conhecessem de gingeira e por vezes virassem o bico ao prego, dizendo "para mim, a Felicidade és tu!" - e até tinha um amigo que acrescentava a graçola na mesma onda dizendo "e eu nunca hei de ficar sem mãe, porque a minha mãe chama-se Esperança e toda a gente sabe que a esperança é a última a morrer!"
Felicidade levava a felicidade tão a sério que as suas angústias existenciais tinham sempre a ver com se ela estava a dar o seu máximo, se estava a contribuir o suficiente para a felicidade alheia (sim, esquecendo muitas vezes a sua própria) - porque Felicidade acreditava que a felicidade suprema era fazer os outros felizes.
E perguntava-se muitas vezes se estava a dar o melhor de si, o seu máximo. E sabia que não - porque ninguém nunca atinge o máximo das suas potencialidades.
E preocupava-se.
Ao mesmo tempo, sabia-se insignificante, um grão de areia. E pensava: o que acontecerá quando eu morrer? Quem se lembrará de mim? Será que eu contribuí de alguma forma para fazer deste um mundo melhor?
Acalmava a sua angústia existencial dizendo que a vida se vive no presente, no aqui e agora.
No pretérito presente e no gerundio. No momento e no lugar em que se está e que se vai estando.
E que isso representa uma escolha. aliás várias escolhas, porque cada opção representa uma infinidade de outras opções que não se selecionou. É o que se chama em Economia o "custo de oportunidade".
Por exemplo, não adianta esperar que os outros se lembrem de nós quando nós desaparecemos por completo ou até quando simplesmente não aparecemos com regularidade. Não significa que tenham deixado de gostar de nós ou que a sua opinião acerca da nossa pessoa tenha mudado; significa sim, que não estamos à mão de semear e que eventualmente deixaremos de ser lembrados.
E inevitavelmente, com o girar do mundo, vamos deixando de estar e de ter "à mão de semear" pessoas que são importantes para nós, seja porque motivo for. E que à medida que o mundo vai girando, vamos percebendo que a "importância para os outros" é uma coisa apenas circunstancial; acontece em dados momentos da nossa vida que depois passam.
Mas que há pessoas que nos marcam tanto que mesmo tendo deixado de ser importantes para nós no nosso quotidiano presente, mantêm um lugar cativo nos nossos corações, por aquilo que connosco viveram ou viviam. E nós nos dos outros.
Porque o passado pouco importa. É o presente, o presente gerúndio que conta. Não é o que se fez. É o que se faz - e mais importante ainda, o que se vai fazendo.
Porque insignificante não é o mesmo que zero.
E por isso, Felicidade tinha momentos em que se contentava com a sua pequenez e a forma como estava sujeita à completa aleatoriedade da vida.
E então, percebia que felicidade é o cheiro do pão quente, é a sombra da árvore no jardim da biblioteca, é ver a ponte bonita de manhã, é fazer festas aos cães, é ver o sorriso dos sobrinhos e responder às suas perguntas, é dançar. é estar aqui, existir e ser grata.
"Felicidade sou eu."
E por egocentrismo ou afinidade de nomes, este era também o seu conceito preferido e a coisa que mais gostava de abordar nas aulas e até nas conversas em geral.
Gostava que a busca da Felicidade fosse o primeiro direito defendido pela Carta Universal dos Direitos do Homem. Gostava que a Felicidade fosse o bem mais precioso que qualquer pessoa pudesse almejar, sem que pudesse jamais ser comprada. E gostava de debater o conceito com as mais variadas pessoas - embora os amigos já a conhecessem de gingeira e por vezes virassem o bico ao prego, dizendo "para mim, a Felicidade és tu!" - e até tinha um amigo que acrescentava a graçola na mesma onda dizendo "e eu nunca hei de ficar sem mãe, porque a minha mãe chama-se Esperança e toda a gente sabe que a esperança é a última a morrer!"
Felicidade levava a felicidade tão a sério que as suas angústias existenciais tinham sempre a ver com se ela estava a dar o seu máximo, se estava a contribuir o suficiente para a felicidade alheia (sim, esquecendo muitas vezes a sua própria) - porque Felicidade acreditava que a felicidade suprema era fazer os outros felizes.
E perguntava-se muitas vezes se estava a dar o melhor de si, o seu máximo. E sabia que não - porque ninguém nunca atinge o máximo das suas potencialidades.
E preocupava-se.
Ao mesmo tempo, sabia-se insignificante, um grão de areia. E pensava: o que acontecerá quando eu morrer? Quem se lembrará de mim? Será que eu contribuí de alguma forma para fazer deste um mundo melhor?
Acalmava a sua angústia existencial dizendo que a vida se vive no presente, no aqui e agora.
No pretérito presente e no gerundio. No momento e no lugar em que se está e que se vai estando.
E que isso representa uma escolha. aliás várias escolhas, porque cada opção representa uma infinidade de outras opções que não se selecionou. É o que se chama em Economia o "custo de oportunidade".
Por exemplo, não adianta esperar que os outros se lembrem de nós quando nós desaparecemos por completo ou até quando simplesmente não aparecemos com regularidade. Não significa que tenham deixado de gostar de nós ou que a sua opinião acerca da nossa pessoa tenha mudado; significa sim, que não estamos à mão de semear e que eventualmente deixaremos de ser lembrados.
E inevitavelmente, com o girar do mundo, vamos deixando de estar e de ter "à mão de semear" pessoas que são importantes para nós, seja porque motivo for. E que à medida que o mundo vai girando, vamos percebendo que a "importância para os outros" é uma coisa apenas circunstancial; acontece em dados momentos da nossa vida que depois passam.
Mas que há pessoas que nos marcam tanto que mesmo tendo deixado de ser importantes para nós no nosso quotidiano presente, mantêm um lugar cativo nos nossos corações, por aquilo que connosco viveram ou viviam. E nós nos dos outros.
Porque o passado pouco importa. É o presente, o presente gerúndio que conta. Não é o que se fez. É o que se faz - e mais importante ainda, o que se vai fazendo.
Porque insignificante não é o mesmo que zero.
E por isso, Felicidade tinha momentos em que se contentava com a sua pequenez e a forma como estava sujeita à completa aleatoriedade da vida.
E então, percebia que felicidade é o cheiro do pão quente, é a sombra da árvore no jardim da biblioteca, é ver a ponte bonita de manhã, é fazer festas aos cães, é ver o sorriso dos sobrinhos e responder às suas perguntas, é dançar. é estar aqui, existir e ser grata.
"Felicidade sou eu."
quinta-feira, fevereiro 21, 2013
Sem Personagens
Chegámos ao número 100.
A centésima personagem, por ser a número 100 e por tudo o que significa (nomeadamente que vou agora tentar editar esta aventura literária em livro) é proposiadamente uma "não personagem".
É um agradecimento.
Ao longo destes três anos as personagens evoluíram mais do que eu imaginava e tornaram-se num hobbie, numa necessidade, num vício.
Venho aqui para escrever, para vos escrever, para imortalizar uma frase bonita ou um dito curioso, para homenagear as pessoas que me tocam, para explicar as situações que eu não percebo, para exorcizar os meus demónios, para dar asas às minhas fantasias, para explicar a mim e ao mundo que a verdade é uma coisa relativa e que a vida é mais que nada uma coisa aleatória em que todos podemos e não podemos fazer o que entendermos.
Repetir o credo que o que importa é viver. sem medo. E tentando não julgar os outros. Flexibilizar as balizas com que imaginamos que a nossa vida existe. E não ver o mundo a preto e branco porque há uma quantidade extravagante de cores que aparecem quando abrimos esta possibilidade.
E as Personagens evoluíram nestes 3 anos e meio. do tímido reconhecer que muitas das minhas personagens têm um pouco das pessoas que eu conheço ou que são o retrato de alguém num dado momento no tempo, à explícita dedicação de personagens que nem se dão ao trabalho de mudar os nomes dos intervenientes.
As personagens são bocadinhos mais ou menos desconexos do meu universo e dos universos que o circundam.
Eao longo destes três anos e tal, foi-se tornando por demais evidente que a minha imaginação deriva imediatamente da vossa magia, da vossa partilha de coração comigo.
Se são meus amigos, se já falaram comigo se leio os vossos blogues, o mais provável é que aqui esteja mais ou menos camuflado um bocadinho de vós. daquilo que de vós me toca.
E se há três anos o dizia com embaraço, porque não queria que se ofendessem comigo nem que achassem que vos roubava a alma com a fotografia que tirava e partilhava com o mundo, percebi mais tarde que esse era um gesto por norma apreciado.
E foi mais ou menos nessa altura que comecei a escrever personagens não apenas "sobre", mas também "para". E se estes "sobre"'s e "para"'s são por vezes partilhados num email em que se diz "para ti", outras vezes as personagens nascem oficialmente para alguém. outras ainda, as personagens esperam pacientemente uma visita da pessoa que as inspirou, num secreto desejo de serem reconhecidas.
O Personificcionar tornou-se assim em mais do que um blog e passou a ser para mim quase um super poder; o Personificcionar permite-me abraçar as almas dos meus amigos e dos meus leitores. permite-me contar as minhas e as suas histórias, lembrar-lhes que são importantes - que é uma coisa que por vezes esquecemos. permite-me dizer as coisas que não posso ou que não me atrevo. permite-me contribuir. e permite-me agradecer.
E por isto e por tudo o que não cabe aqui: obrigada a todos.
e vemo-nos no lançamento do livro, boa?
A centésima personagem, por ser a número 100 e por tudo o que significa (nomeadamente que vou agora tentar editar esta aventura literária em livro) é proposiadamente uma "não personagem".
É um agradecimento.
Ao longo destes três anos as personagens evoluíram mais do que eu imaginava e tornaram-se num hobbie, numa necessidade, num vício.
Venho aqui para escrever, para vos escrever, para imortalizar uma frase bonita ou um dito curioso, para homenagear as pessoas que me tocam, para explicar as situações que eu não percebo, para exorcizar os meus demónios, para dar asas às minhas fantasias, para explicar a mim e ao mundo que a verdade é uma coisa relativa e que a vida é mais que nada uma coisa aleatória em que todos podemos e não podemos fazer o que entendermos.
Repetir o credo que o que importa é viver. sem medo. E tentando não julgar os outros. Flexibilizar as balizas com que imaginamos que a nossa vida existe. E não ver o mundo a preto e branco porque há uma quantidade extravagante de cores que aparecem quando abrimos esta possibilidade.
E as Personagens evoluíram nestes 3 anos e meio. do tímido reconhecer que muitas das minhas personagens têm um pouco das pessoas que eu conheço ou que são o retrato de alguém num dado momento no tempo, à explícita dedicação de personagens que nem se dão ao trabalho de mudar os nomes dos intervenientes.
As personagens são bocadinhos mais ou menos desconexos do meu universo e dos universos que o circundam.
Eao longo destes três anos e tal, foi-se tornando por demais evidente que a minha imaginação deriva imediatamente da vossa magia, da vossa partilha de coração comigo.
Se são meus amigos, se já falaram comigo se leio os vossos blogues, o mais provável é que aqui esteja mais ou menos camuflado um bocadinho de vós. daquilo que de vós me toca.
E se há três anos o dizia com embaraço, porque não queria que se ofendessem comigo nem que achassem que vos roubava a alma com a fotografia que tirava e partilhava com o mundo, percebi mais tarde que esse era um gesto por norma apreciado.
E foi mais ou menos nessa altura que comecei a escrever personagens não apenas "sobre", mas também "para". E se estes "sobre"'s e "para"'s são por vezes partilhados num email em que se diz "para ti", outras vezes as personagens nascem oficialmente para alguém. outras ainda, as personagens esperam pacientemente uma visita da pessoa que as inspirou, num secreto desejo de serem reconhecidas.
O Personificcionar tornou-se assim em mais do que um blog e passou a ser para mim quase um super poder; o Personificcionar permite-me abraçar as almas dos meus amigos e dos meus leitores. permite-me contar as minhas e as suas histórias, lembrar-lhes que são importantes - que é uma coisa que por vezes esquecemos. permite-me dizer as coisas que não posso ou que não me atrevo. permite-me contribuir. e permite-me agradecer.
E por isto e por tudo o que não cabe aqui: obrigada a todos.
e vemo-nos no lançamento do livro, boa?
domingo, fevereiro 10, 2013
João Tiago Medeiros
para o Pedro
Einstein foi um dos primeiros físicos que falou na possibilidade de universos infinitos e paralelos. A possibilidade de uma mesma situação ter todos os outcomes possíveis em universos que existem paralelamente.
Há um universo em que todos e cada um de nós seremos astronautas, paralíticos, muito ricos ou muito pobres, nascidos na China, no Nepal, no Quénia, no Brasil, seremos loiros, seremos azuis, seremos aliens, seremos fantasmas, seremos líderes mundiais, seremos apenas um sonho. e por aí adiante.
O mundo em que vivemos é apenas uma das muitas realidades que existem. E se neste mundo somos o que somos, podemos com certeza acreditar que há apenas um fino tecido tempo-espacial a separar-nos de todas as outras realidades alternativas, onde tudo o resto correu de maneira ligeira ou completamente diferente.
E como são as pequenas coisas que fazem as grandes diferenças é mais fácil imaginarmos o universo que temos exatamente igual, mas onde não nos esquecemos da chave de casa, onde não nos distraímos a procurar um cd no tablier e batemos no carro da frente, em que não apanhamos o avião que teve um acidente, em que não fomos sair quando algo de mau aconteceu, do que um universo em que todos respiramos água, todos temos asas ou todos vivemos em planetas distintos e nunca conhecemos nenhuma das pessoas que constituem os nossos universos relacionais.
E esta ideia não é apenas verdade para os universos teóricos. É também verdade para as nossas vidas, vividas paralelamente, mas com pontos de vista individuais muito diferentes. Porque todos somos os atores principais das nossas vidas por muito que sejamos apenas figurantes nas dos outros e nada mais que cenário irrelevante no computo geral. Pó de estrelas.
Mas conhecermos o universo em que estamos traz-nos conforto, o tipo de conforto que têm as crianças quando perguntam "porquês" e obtêm as respostas. Porque precisamos de saber que o mundo é explicável, é compreensível, é amigável. e é uno.
E para nós, os universos multiplicaram-se naquela noite de quarta para quinta, quando o João desapareceu.
Nesse momento, o João deixou de estar numa discoteca a divertir-se com os amigos para estar em todos os lugares que não conhecemos. E à medida que o tempo continua a passar os universos que imaginamos são cada vez menos bons. Os universos em que era razoável o João estar a ressacar em algum sítio ou ter-se interessado por alguém inconsequentemente foram-se afastando e deram espaço para que emergissem os universos em que alguém lhe fez mal, em que algo de negro lhe aconteceu. Em que caiu ao Tejo, por exemplo.
E é o continuarmos sem saber de nada que nos mantem a nós nas arraias do seu universo, e à sua família e amigos mais próximos do epicentro, com muito mais força, em suspenso e sem sabermos bem em que universo estamos.
E quem não sabe o universo em que está, não pode saber o que fazer e como continuar as suas vidas.
Por isso, e porque os astros brilham com a incandescência do pó de estrelas que se move e colide, dêm uma olhada à foto do João, abaixo. Quem sabe se não vivemos num desses universos que nos parecem improváveis em que alguém que olha para uma foto divulgada, de facto pode ajudar de alguma maneira.
Link da Polícia Judiciária - João Tiago Medeiros
Einstein foi um dos primeiros físicos que falou na possibilidade de universos infinitos e paralelos. A possibilidade de uma mesma situação ter todos os outcomes possíveis em universos que existem paralelamente.
Há um universo em que todos e cada um de nós seremos astronautas, paralíticos, muito ricos ou muito pobres, nascidos na China, no Nepal, no Quénia, no Brasil, seremos loiros, seremos azuis, seremos aliens, seremos fantasmas, seremos líderes mundiais, seremos apenas um sonho. e por aí adiante.
O mundo em que vivemos é apenas uma das muitas realidades que existem. E se neste mundo somos o que somos, podemos com certeza acreditar que há apenas um fino tecido tempo-espacial a separar-nos de todas as outras realidades alternativas, onde tudo o resto correu de maneira ligeira ou completamente diferente.
E como são as pequenas coisas que fazem as grandes diferenças é mais fácil imaginarmos o universo que temos exatamente igual, mas onde não nos esquecemos da chave de casa, onde não nos distraímos a procurar um cd no tablier e batemos no carro da frente, em que não apanhamos o avião que teve um acidente, em que não fomos sair quando algo de mau aconteceu, do que um universo em que todos respiramos água, todos temos asas ou todos vivemos em planetas distintos e nunca conhecemos nenhuma das pessoas que constituem os nossos universos relacionais.
E esta ideia não é apenas verdade para os universos teóricos. É também verdade para as nossas vidas, vividas paralelamente, mas com pontos de vista individuais muito diferentes. Porque todos somos os atores principais das nossas vidas por muito que sejamos apenas figurantes nas dos outros e nada mais que cenário irrelevante no computo geral. Pó de estrelas.
Mas conhecermos o universo em que estamos traz-nos conforto, o tipo de conforto que têm as crianças quando perguntam "porquês" e obtêm as respostas. Porque precisamos de saber que o mundo é explicável, é compreensível, é amigável. e é uno.
E para nós, os universos multiplicaram-se naquela noite de quarta para quinta, quando o João desapareceu.
Nesse momento, o João deixou de estar numa discoteca a divertir-se com os amigos para estar em todos os lugares que não conhecemos. E à medida que o tempo continua a passar os universos que imaginamos são cada vez menos bons. Os universos em que era razoável o João estar a ressacar em algum sítio ou ter-se interessado por alguém inconsequentemente foram-se afastando e deram espaço para que emergissem os universos em que alguém lhe fez mal, em que algo de negro lhe aconteceu. Em que caiu ao Tejo, por exemplo.
E é o continuarmos sem saber de nada que nos mantem a nós nas arraias do seu universo, e à sua família e amigos mais próximos do epicentro, com muito mais força, em suspenso e sem sabermos bem em que universo estamos.
E quem não sabe o universo em que está, não pode saber o que fazer e como continuar as suas vidas.
Por isso, e porque os astros brilham com a incandescência do pó de estrelas que se move e colide, dêm uma olhada à foto do João, abaixo. Quem sabe se não vivemos num desses universos que nos parecem improváveis em que alguém que olha para uma foto divulgada, de facto pode ajudar de alguma maneira.
Um obrigada sentido.
Carolina
Carolina senta-se num banco alto no bar do hotel, senhora dos seus saltos muito altos e do seu vestido justo que deixa entrever um bocadinho pequeno daquilo que parece ser um soutein rendado e bonito.
Carolina está nos seus trintas, está em boa forma, e sobretudo tem um charme muito grande, com o seu perfume ligeiramente doce, olhos esfumados e forma de estar provocadora que já lhe é intrinseca e natural.
Cruza as pernas, pede um gin tónico com duas cerejas e começa lenta e determinada a varrer o salão com os olhos em busca de uma aventura, enquanto vai molhando os lábios com a bebida e brinca mais ou menos distraidamente com as cerejas, perfeitamente alinhadas num palito, com a boca.
Carolina sabe que tudo começa com uma troca de olhares, um olhar que se cruza e se fixa. Gosta especialmente deste jogo de sedução e de olhar descaradamente para homens que lhe agradam, esperando que sejam eles a desviar o olhar. Não lhe importa se estão acompanhados ou não: pelo contrário, isso apimenta o jogo e dá-lhe um gozo extra. Frequentemente, são eles que desviam o olhar apenas para logo a seguir retomarem o contacto, como que tomados de uma surpresa boa que querem confirmar se é mesmo verdade.
Carolina é uma provocadora nata. Sabe o que dizer e como, sabe o que fazer e tem gosto pelo risco.
A sedutora sabe provocar e esperar; fazer uma inocente deslocação à casa de banho ou à varanda - ou simplesmente pedir lume - para que o seu alvo a possa mais facilmente abordar; sabe que metade do caminho tem de ser percorrido pelo outro - embora esse caminho possa ser encurtado.
Para Carolina, metade da coisa está em fazer perceber que quer, fazer o outro tomar consciência desse desejo, depois dar-lhe a entender sem o dizer que está ao seu alcance; a outra metade, a de de facto querer, a de tomar a iniciativa de a abordar, a de se arriscar, depende apenas do outro e é a parte que ela não controla.
Depois desta barreira quebrada, o jogo continua: Carolina gosta de esticar a corda até ao limite, de ver até onde os homens são capazes de ir por ela.
Às vezes ganha, às vezes perde. Tudo faz parte deste jogo que Carolina gosta de jogar e que joga com mestria. Mas apenas quando está bem longe de casa.
Porque em Lisboa, onde vive, Carolina é uma respeitável e muito bem sucedida advogada de direito internacional, esposa dedicada e mãe babada de dois filhos pequenos.
Carolina é casada com Jorge, um pacato e confiável contabilista que a adora e lhe dá toda a segurança e afeto que ela pode desejar. É um marido exemplar, um pai extremoso e é o seu melhor amigo. Carolina não quereria estar casada com mais ninguém, nem confiaria em mais ninguém para criar os seus filhos com ela e tomar decisões conjuntas.
O amor que Carolina tem por Jorge é incomensurável e estaria perdida sem ele. Ele é indubitavelmente o seu companheiro de vida, a sua família.
Mas isso não é tudo na vida de Carolina. Porque a Carolina-esposa-e-mãe não matou a Carolina-sedutora-e-aventureira.
E por isso, quando sente a segurança de quem está bem longe de casa (geralmente em viagens de negócios), Carolina liberta a mulher fogosa e aventureira que não pode ser na casa segura, quentinha e de pantufas onde habita. e é lá fora que vive as aventuras mais incríveis que não pode contar a ninguém: a noite em que disse ao barman que para ir para a cama com ela eram mil euros e ele queria na mesma; a noite em que acabou num hotel e quando fez check out não sabia dizer nem o número do quarto, nem o nome da pessoa que o tinha pago; aquela vez em que se veio com os dedos mágicos de um italiano no quarto de banho de uma discoteca em Bordeaux; a aventura em Boston, com um estudante universitário australiano 12 anos mais novo.
As loucuras que comete são aliciantes e trazem-lhe muita satisfação imediata, mas são invariavelmente seguidas de periodos de remorso e culpabilização, o que faz com que ela seja ainda mais dedicada e atenciosa com o marido e a família quando volta. Faz com que redobre as suas atenções e mimos, com que traga sempre prendas e lembranças e tenha sempre mais paciência e tolerância com as coisas que a irritam. E faz com que consiga manter um casamento onde já existe muito pouca cama - que é agora apenas morna - com a mesma convicção há anos, reforçando de forma quase paradoxal a relação feliz que mantém volvida mais de uma década.
"A mãe vem sempre mais bem disposta das viagens", dizem com frequência. E quando passa dias ou fases mais irritadiça e rabugenta, chegam mesmo a dizer-lhe meio a brincar meio a sério que está a precisar de fazer uma viagem de negócios, "que é para sentir a falta deles e voltar com saudades".
Carolina está nos seus trintas, está em boa forma, e sobretudo tem um charme muito grande, com o seu perfume ligeiramente doce, olhos esfumados e forma de estar provocadora que já lhe é intrinseca e natural.
Cruza as pernas, pede um gin tónico com duas cerejas e começa lenta e determinada a varrer o salão com os olhos em busca de uma aventura, enquanto vai molhando os lábios com a bebida e brinca mais ou menos distraidamente com as cerejas, perfeitamente alinhadas num palito, com a boca.
Carolina sabe que tudo começa com uma troca de olhares, um olhar que se cruza e se fixa. Gosta especialmente deste jogo de sedução e de olhar descaradamente para homens que lhe agradam, esperando que sejam eles a desviar o olhar. Não lhe importa se estão acompanhados ou não: pelo contrário, isso apimenta o jogo e dá-lhe um gozo extra. Frequentemente, são eles que desviam o olhar apenas para logo a seguir retomarem o contacto, como que tomados de uma surpresa boa que querem confirmar se é mesmo verdade.
Carolina é uma provocadora nata. Sabe o que dizer e como, sabe o que fazer e tem gosto pelo risco.
A sedutora sabe provocar e esperar; fazer uma inocente deslocação à casa de banho ou à varanda - ou simplesmente pedir lume - para que o seu alvo a possa mais facilmente abordar; sabe que metade do caminho tem de ser percorrido pelo outro - embora esse caminho possa ser encurtado.
Para Carolina, metade da coisa está em fazer perceber que quer, fazer o outro tomar consciência desse desejo, depois dar-lhe a entender sem o dizer que está ao seu alcance; a outra metade, a de de facto querer, a de tomar a iniciativa de a abordar, a de se arriscar, depende apenas do outro e é a parte que ela não controla.
Depois desta barreira quebrada, o jogo continua: Carolina gosta de esticar a corda até ao limite, de ver até onde os homens são capazes de ir por ela.
Às vezes ganha, às vezes perde. Tudo faz parte deste jogo que Carolina gosta de jogar e que joga com mestria. Mas apenas quando está bem longe de casa.
Porque em Lisboa, onde vive, Carolina é uma respeitável e muito bem sucedida advogada de direito internacional, esposa dedicada e mãe babada de dois filhos pequenos.
Carolina é casada com Jorge, um pacato e confiável contabilista que a adora e lhe dá toda a segurança e afeto que ela pode desejar. É um marido exemplar, um pai extremoso e é o seu melhor amigo. Carolina não quereria estar casada com mais ninguém, nem confiaria em mais ninguém para criar os seus filhos com ela e tomar decisões conjuntas.
O amor que Carolina tem por Jorge é incomensurável e estaria perdida sem ele. Ele é indubitavelmente o seu companheiro de vida, a sua família.
Mas isso não é tudo na vida de Carolina. Porque a Carolina-esposa-e-mãe não matou a Carolina-sedutora-e-aventureira.
E por isso, quando sente a segurança de quem está bem longe de casa (geralmente em viagens de negócios), Carolina liberta a mulher fogosa e aventureira que não pode ser na casa segura, quentinha e de pantufas onde habita. e é lá fora que vive as aventuras mais incríveis que não pode contar a ninguém: a noite em que disse ao barman que para ir para a cama com ela eram mil euros e ele queria na mesma; a noite em que acabou num hotel e quando fez check out não sabia dizer nem o número do quarto, nem o nome da pessoa que o tinha pago; aquela vez em que se veio com os dedos mágicos de um italiano no quarto de banho de uma discoteca em Bordeaux; a aventura em Boston, com um estudante universitário australiano 12 anos mais novo.
As loucuras que comete são aliciantes e trazem-lhe muita satisfação imediata, mas são invariavelmente seguidas de periodos de remorso e culpabilização, o que faz com que ela seja ainda mais dedicada e atenciosa com o marido e a família quando volta. Faz com que redobre as suas atenções e mimos, com que traga sempre prendas e lembranças e tenha sempre mais paciência e tolerância com as coisas que a irritam. E faz com que consiga manter um casamento onde já existe muito pouca cama - que é agora apenas morna - com a mesma convicção há anos, reforçando de forma quase paradoxal a relação feliz que mantém volvida mais de uma década.
"A mãe vem sempre mais bem disposta das viagens", dizem com frequência. E quando passa dias ou fases mais irritadiça e rabugenta, chegam mesmo a dizer-lhe meio a brincar meio a sério que está a precisar de fazer uma viagem de negócios, "que é para sentir a falta deles e voltar com saudades".
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