Tinha apenas 5 anos quando aprendi uma verdade incontornável.
Nós éramos pobres e eu gostava muito de brinquedos. A minha mãe saía do trabalho e vinha-me buscar ao infantário. Levava-me depois pela mão pelas ruas do Porto, onde ia fazer alguns recados antes de ir para casa: pagar contas, ir ao correio, compras de última hora para o jantar...
Naquela altura, o Porto tinha muitas lojas de rua e muitas lojas tinham brinquedos nas montras. Eu obrigava a minha mãe a parar em cada montra ficando a observar os brinquedos coloridos de olhos grandes. Inevitavelmente, acabava sempre por pedinchar todos os brinquedos, um a um.
"Mãe, dás-me aquele brinquedo?"
"Não, filha" - respondia com alguma consternação
"Porquê?"
"É muito caro, a mãe não tem dinheiro"
"Porquê?"
"Porque o brinquedo é caro."
"Há algum brinquedo barato?"
"Não."
E eu seguia-a triste, de olhos rasos de água porque eu queria tanto um brinquedo. Na montra seguinte, alguns metros à frente, eu repetia o ritual: estancava, obrigando-a a parar, para contemplar em adoração todos os brinquedos. e pedia "Mãe, dás-me aquele brinquedo?"...
A minha mãe tinha muita pena de não me poder dar nenhum brinquedo, mas não me queria fazer chorar, por isso todos os dias suportava o ritual em que eu adorava as vitrines fazendo-a demorar-se. E deixava-me contemplar as coisas que eu não podia ter porque, já que não me podia dar o objeto, não queria privar-me de sonhar um pouco com ele - mesmo que depois eu tivesse de encarar a realidade de que não ia poder obter o que desejava.
Mas de cada vez que me dizia "não", ela sentia o coração apertar.
Um dia de outono, a minha mãe foi-me buscar ao infantário. Era daqueles dias em que o tempo estava esquisito e ela não trouxe guarda-chuva. Começou a chover muito.
E nós tivemos de entrar numa loja para nos abrigarmos.
Era uma loja de brinquedos.
A minha mãe ensinou-me que não se mexe em nada nas lojas. E ensinou-me que não se interrompem os adultos. por isso eu estive um bom bocado até ao aguaceiro passar a ver os brinquedos todos e a morder a língua para não pedinchar todos como de costume.
Ela percebeu. Quando se baixou para me vestir o casaco novamente e sairmos para a rua eu disse-lhe ao ouvido, baixinho: "Mãe, dás-me um brinquedo pequenino?"
Era um pedido doce, sussurrado e muito razoável para uma menina de 5 anos. Se ela pudesse, dar-me-ia o mundo, mesmo sem eu pedir. Mas não podia.
Abotoando o meu casaco, ela estava ao meu nível. Olhou-me diretamente nos olhos e disse com a seriedade de quem faz uma promessa solene:
"Não te posso dar nada agora, filha; mas se me sair a lotaria, dou-te todos os brinquedos que tu quiseres."
Os meus olhos brilharam incrédulos.
"Todos, mãe?" - perguntei testando a realidade.
"Todos." - respondeu com honesta seriedade - "Mas temos de passar no quiosque antes que ele feche para comprarmos um bilhete."
Segurei-lhe a mão e arrastei-a eu para fora da loja, deixando-a seguir com os seus recados porque eu não sabia o que era um quiosque ou um bilhete.
A partir daí, as saídas do infantário que eram uma série de desilusões seguidas, passaram a ser os sonhos todos que eu quisesse.
"Mãe, se te sair a lotaria, dás-me aquele brinquedo?"
"Sim, filha" - e eu ficava feliz.
"E aquele?"
"Sim." - dizia sorrindo
E de cada vez que me dizia "sim", ficávamos as duas muito felizes. E eu deixei de perguntar a medo, porque já sabia a resposta, e comecei a perguntar feliz, porque já sabia a resposta.
E quando já estávamos a ficar com pouco tempo, ela dizia: "anda, que temos de chegar antes de fechar o quiosque."
Tinha apenas 5 anos quando aprendi uma verdade incontornável; bom, na realidade, duas verdades incontornáveis:
(1) a felicidade é muito mais uma questão de perspetiva do que de facto (porque imaginar, sonhar, projetar é muitas vezes melhor que possuir de imediato) e (2) a minha mãe será sempre mais esperta que eu.
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
sexta-feira, setembro 28, 2012
sábado, setembro 15, 2012
Isabel
Isabel é perfeita. Talvez não seja perfeita. Mas é perfeita.
Isabel estica o cabelo todas as manhãs depois de um bom banho com esfoliante de algas e de pôr creme reafirmante em todo o corpo. Quando está em frente ao espelho a esticar o cabelo, Isabel já pôs creme na cara e pintou as unhas dos pés.
O cabelo de Isabel é longo e lustroso e dança-lhe nos ombros solidamente esculpidos em 2 horas de ginásio que faz todos os dias úteis da semana.
Isabel veste-se impecavelmente e pinta-se na medida certa. tem um aspeto cuidado sem ser postiço.
Quem olha para Isabel acha que ela é o máximo. Bonita e exótica, com o contraste do seu cabelo preto-carvão e os seus olhos cinzentos claros, a sua figura perfeita e escultural.
Isabel acumula ainda o facto de ser muito bem sucedida, de ter um trabalho prestigiante e bem pago que lhe permite fazer muitos spas e boas férias. Frequenta um healthclub muito caro, para onde vai impecavelmente vestida e arranjada.
Mas Isabel não é feliz.
Isabel tem tudo, menos um namorado. Na verdade, Isabel, aos 28 anos, nunca teve um namorado e nunca foi para a cama com ninguém.
O facto parece obtuso às pessoas que o conhecem, porque lhes parece absurdo que isso possa ser sequer possível.
Porque, para quem vê de fora, Isabel é perfeita.
Para Isabel a situação é desesperante. As pessoas falam com ela e perguntam-lhe amiudadas vezes pela sua vida amorosa, mas ela não tem uma resposta para dar. Sente-se pressionada por uma sociedade que vê aos pares e acha que se passa alguma coisa consigo, que deve ter algum problema.
Isabel sai muitas vezes à noite. Vai a discotecas bem frequentadas, vai a bares in e a locais cool. Vai ao ginásio, pergunta aos amigos se conhecem alguém solteiro e bem apanhado.
Às vezes questiona-se se o problema será do facto de ser virgem. Se levasse um gajo qualquer para a cama, só para se livrar da sua inexperiência, se isso lhe resolveria o problema.
Naturalmente, com alguma regularidade surgem homens interessados em Isabel, mas raramente esta lhes presta alguma atenção. Assim que um qualquer homem se aproxima dela, Isabel passa a ver-lhe apenas os defeitos e sente uma certa repulsa; adquiriu o hábito de apenas se interessar por homens-impossíveis, que não estão interessados ou que então são canalhas.
Mas como nunca deixa ninguém realmente aproximar-se, acaba por estar sempre sozinha.
E apesar de tudo, Isabel duvida muito de si mesma. Se será bonita, apesar das suas feições impossíveis. Se será atraente, apesar de tudo o que trabalha no ginásio. Se será interessante, não obstante tudo o que faz, tudo o que sabe, tudo o que gosta.
Questiona-se se está amaldiçoada, condenada a viver sozinha para todo o sempre.
Não percebe que o amor não se idealiza, aproveita-se. Não percebe que o amor não é lógico.
E em todo este tempo em que esteve à espera, a idealizar o homem perfeito e todas as coisas incríveis que ele fará por ela (dedicar-lhe músicas na rádio, enviar-lhe flores, oferecer-lhe jóias...) esteve também a construir um muro entre si e os homens reais que surgem na sua vida, porque nenhum pode competir com esta imagem e muito rapidamente Isabel percebe isso mesmo em todos eles.
Nenhum é "the one", logo à partida.
Mas o que não é óbvio e que talvez o que Isabel não perceba é que nenhum homem poderá entrar na sua vida, porque ela já está apaixonada pela imagem de perfeição que construiu. Ela no fundo tem namorado.
E enquanto não romper com ele, nunca terá espaço na sua vida para mais ninguém.
Isabel estica o cabelo todas as manhãs depois de um bom banho com esfoliante de algas e de pôr creme reafirmante em todo o corpo. Quando está em frente ao espelho a esticar o cabelo, Isabel já pôs creme na cara e pintou as unhas dos pés.
O cabelo de Isabel é longo e lustroso e dança-lhe nos ombros solidamente esculpidos em 2 horas de ginásio que faz todos os dias úteis da semana.
Isabel veste-se impecavelmente e pinta-se na medida certa. tem um aspeto cuidado sem ser postiço.
Quem olha para Isabel acha que ela é o máximo. Bonita e exótica, com o contraste do seu cabelo preto-carvão e os seus olhos cinzentos claros, a sua figura perfeita e escultural.
Isabel acumula ainda o facto de ser muito bem sucedida, de ter um trabalho prestigiante e bem pago que lhe permite fazer muitos spas e boas férias. Frequenta um healthclub muito caro, para onde vai impecavelmente vestida e arranjada.
Mas Isabel não é feliz.
Isabel tem tudo, menos um namorado. Na verdade, Isabel, aos 28 anos, nunca teve um namorado e nunca foi para a cama com ninguém.
O facto parece obtuso às pessoas que o conhecem, porque lhes parece absurdo que isso possa ser sequer possível.
Porque, para quem vê de fora, Isabel é perfeita.
Para Isabel a situação é desesperante. As pessoas falam com ela e perguntam-lhe amiudadas vezes pela sua vida amorosa, mas ela não tem uma resposta para dar. Sente-se pressionada por uma sociedade que vê aos pares e acha que se passa alguma coisa consigo, que deve ter algum problema.
Isabel sai muitas vezes à noite. Vai a discotecas bem frequentadas, vai a bares in e a locais cool. Vai ao ginásio, pergunta aos amigos se conhecem alguém solteiro e bem apanhado.
Às vezes questiona-se se o problema será do facto de ser virgem. Se levasse um gajo qualquer para a cama, só para se livrar da sua inexperiência, se isso lhe resolveria o problema.
Naturalmente, com alguma regularidade surgem homens interessados em Isabel, mas raramente esta lhes presta alguma atenção. Assim que um qualquer homem se aproxima dela, Isabel passa a ver-lhe apenas os defeitos e sente uma certa repulsa; adquiriu o hábito de apenas se interessar por homens-impossíveis, que não estão interessados ou que então são canalhas.
Mas como nunca deixa ninguém realmente aproximar-se, acaba por estar sempre sozinha.
E apesar de tudo, Isabel duvida muito de si mesma. Se será bonita, apesar das suas feições impossíveis. Se será atraente, apesar de tudo o que trabalha no ginásio. Se será interessante, não obstante tudo o que faz, tudo o que sabe, tudo o que gosta.
Questiona-se se está amaldiçoada, condenada a viver sozinha para todo o sempre.
Não percebe que o amor não se idealiza, aproveita-se. Não percebe que o amor não é lógico.
E em todo este tempo em que esteve à espera, a idealizar o homem perfeito e todas as coisas incríveis que ele fará por ela (dedicar-lhe músicas na rádio, enviar-lhe flores, oferecer-lhe jóias...) esteve também a construir um muro entre si e os homens reais que surgem na sua vida, porque nenhum pode competir com esta imagem e muito rapidamente Isabel percebe isso mesmo em todos eles.
Nenhum é "the one", logo à partida.
Mas o que não é óbvio e que talvez o que Isabel não perceba é que nenhum homem poderá entrar na sua vida, porque ela já está apaixonada pela imagem de perfeição que construiu. Ela no fundo tem namorado.
E enquanto não romper com ele, nunca terá espaço na sua vida para mais ninguém.
domingo, setembro 09, 2012
Clara
Clara era uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
Gostava de estar no meio da multidão, onde somos todos ninguém e somos todos iguais.
A multidão é uma massa de gente anónima, cada uma protagonista do seu próprio enredo, que se junta num determinado momento do tempo e do espaço e se torna numa só.
A comunhão que se vive numa multidão é uma experiência de que nem sempre nos apercebemos. A multidão tem correntes e força e ânimo. Não há nada mais perigoso que uma multidão em pânico e nada mais inconsciente que uma multidão absorta.
Cada pessoa na multidão pode estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo. Apesar de nos sabermos rodeados de pessoas, no meio de uma multidão podemos ter a sensação - que pode ser enganadora - de que temos privacidade. Uma pessoa provavelmente não contará os segredos da sua vida íntima a outra num elevador onde mais duas pessoas estão presentes, mas facilmente revela detalhes embaraçosos no caminho para algum sítio no meio da rua. As mesmas duas pessoas que estavam no elevador podem estar a ouvir. Mas a multidão torna-as invisíveis e torna-as anónimas.
E por isso nos sentimos tão surpreendidos quando estamos no meio de uma multidão e encontramos alguém conhecido. Como se fosse improvável, perguntamos: "olha, tu aqui! que andas por aqui a fazer?". Como se fosse inverosímil encontrar alguém que conheçamos no meio de muita gente.
Clara tinha decidido que queria ser feliz, só não sabia como. Era uma mulher bonita, inteligente, sonhadora e invulgar. Um pássaro. Indisponível para sacrificar as suas asas por qualquer convenção social ou desejabilidade familiar. De olhos abertos. Com vontade de viver. Por vezes perdida. Por vezes partida. Por vezes com força. sempre capaz de se refazer. sempre capaz de voar. mesmo que baixinho.
E gostava da multidão. De estar no meio da mole humana. De ver as pessoas que caminham depressa para os empregos, para os encontros, para o autocarro. As pessoas que caminham devagar de câmara fotográfica em punho, numa conversa gostosa, de mão dada, de olhos no chão.
Gostava de se lembrar que era pequena perante a multidão. Que na vida da senhora que ralhava ao filho por não lhe dar a mão ao atravessar a rua, Clara era uma figurante. Na vida da senhora da sua padaria diária, uma atriz muito secundária. Fazia-lhe bem lembrar-se que era pequena para se lembrar que os seus problemas eram também pequenos.
Na vida de Clara, a multidão não era um mero cenário, era uma atriz secundária importante.
E a multidão, sempre boa conselheira, permitia-a ver o miolo da vida dos outros. lembrava-a que, no fundo, somos todos iguais, temos todos problemas, inseguranças, dores, aspirações, sonhos, vontades. Que até podem ter configurações diferentes mas que no fim redundam na mesma essência.
Que não é apenas como mero conceito abstrato. ou só por pertencermos à mesma espécie animal. Fazemos mesmo, de forma quase palpável, parte da mesma vida, da mesma humanidade. somos únicos mas nunca estamos sós.
Compreender a multidão, escutar a sua respiração, abraçar a batida do seu coração, sentir-lhe o pulso, ajudava-a manter-se fiel a sim mesma, a não comprometer os seus princípios, a encontrar o norte da sua vida.
A multidão, sempre diferente e sempre igual, lembrava-a que na sua condição humana não devia nada a ninguém, a não ser uma predisposição de boa-vontade e compaixão. Que não era obrigada a tomar decisões que iam contra si mesma. Porque tudo passa e a multidão que é sempre a mesma, é sempre diferente. e quando uma pessoa sai, entra outra. ou outras. ou não entra ninguém. e não faz mal.
Que o que faz mal é a infelicidade que nos infligimos quando vamos contra nós mesmos porque nos esquecemos que estamos todos no meio da mesma massa e que o nosso impacto no mundo é limitado. que a nossa vida, mais que nada é nossa. independentemente de tudo o que nos queiram impingir. Que as nossas escolhas não servem para ir ao encontro das vontades dos outros, expressas por eles ou imaginadas por nós, mas para ir ao encontro daquilo que nos dá sentido. daquilo que nós somos. Porque somos nós e não os outros que vivemos com elas todos os dias.
A multidão lembrava-a que ela podia ser quem queria, porque nunca ia ficar sozinha. A multidão ia sempre continuar ali. E o mundo continuaria a girar, sempre com coisas para serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas. para onde quer que ela olhasse. Talvez melhores, talvez piores. Mas sempre dignas de serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas.
E por isso, independentemente da forma como ela sentisse a realidade, que por vezes era dura, por vezes a fazia sofrer e nem sempre fazia justiça aos desejos de felicidade constante que lhe direcionavam algumas pessoas, a multidão lembrava a Clara que ela era quem era. E que era imune ao medo da solidão: a multidão nunca ia deixar de existir, e de a incluir sempre que ela desejasse.
E isso fazia em grande parte com que Clara fosse uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
Gostava de estar no meio da multidão, onde somos todos ninguém e somos todos iguais.
A multidão é uma massa de gente anónima, cada uma protagonista do seu próprio enredo, que se junta num determinado momento do tempo e do espaço e se torna numa só.
A comunhão que se vive numa multidão é uma experiência de que nem sempre nos apercebemos. A multidão tem correntes e força e ânimo. Não há nada mais perigoso que uma multidão em pânico e nada mais inconsciente que uma multidão absorta.
Cada pessoa na multidão pode estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo. Apesar de nos sabermos rodeados de pessoas, no meio de uma multidão podemos ter a sensação - que pode ser enganadora - de que temos privacidade. Uma pessoa provavelmente não contará os segredos da sua vida íntima a outra num elevador onde mais duas pessoas estão presentes, mas facilmente revela detalhes embaraçosos no caminho para algum sítio no meio da rua. As mesmas duas pessoas que estavam no elevador podem estar a ouvir. Mas a multidão torna-as invisíveis e torna-as anónimas.
E por isso nos sentimos tão surpreendidos quando estamos no meio de uma multidão e encontramos alguém conhecido. Como se fosse improvável, perguntamos: "olha, tu aqui! que andas por aqui a fazer?". Como se fosse inverosímil encontrar alguém que conheçamos no meio de muita gente.
Clara tinha decidido que queria ser feliz, só não sabia como. Era uma mulher bonita, inteligente, sonhadora e invulgar. Um pássaro. Indisponível para sacrificar as suas asas por qualquer convenção social ou desejabilidade familiar. De olhos abertos. Com vontade de viver. Por vezes perdida. Por vezes partida. Por vezes com força. sempre capaz de se refazer. sempre capaz de voar. mesmo que baixinho.
E gostava da multidão. De estar no meio da mole humana. De ver as pessoas que caminham depressa para os empregos, para os encontros, para o autocarro. As pessoas que caminham devagar de câmara fotográfica em punho, numa conversa gostosa, de mão dada, de olhos no chão.
Gostava de se lembrar que era pequena perante a multidão. Que na vida da senhora que ralhava ao filho por não lhe dar a mão ao atravessar a rua, Clara era uma figurante. Na vida da senhora da sua padaria diária, uma atriz muito secundária. Fazia-lhe bem lembrar-se que era pequena para se lembrar que os seus problemas eram também pequenos.
Na vida de Clara, a multidão não era um mero cenário, era uma atriz secundária importante.
E a multidão, sempre boa conselheira, permitia-a ver o miolo da vida dos outros. lembrava-a que, no fundo, somos todos iguais, temos todos problemas, inseguranças, dores, aspirações, sonhos, vontades. Que até podem ter configurações diferentes mas que no fim redundam na mesma essência.
Que não é apenas como mero conceito abstrato. ou só por pertencermos à mesma espécie animal. Fazemos mesmo, de forma quase palpável, parte da mesma vida, da mesma humanidade. somos únicos mas nunca estamos sós.
Compreender a multidão, escutar a sua respiração, abraçar a batida do seu coração, sentir-lhe o pulso, ajudava-a manter-se fiel a sim mesma, a não comprometer os seus princípios, a encontrar o norte da sua vida.
A multidão, sempre diferente e sempre igual, lembrava-a que na sua condição humana não devia nada a ninguém, a não ser uma predisposição de boa-vontade e compaixão. Que não era obrigada a tomar decisões que iam contra si mesma. Porque tudo passa e a multidão que é sempre a mesma, é sempre diferente. e quando uma pessoa sai, entra outra. ou outras. ou não entra ninguém. e não faz mal.
Que o que faz mal é a infelicidade que nos infligimos quando vamos contra nós mesmos porque nos esquecemos que estamos todos no meio da mesma massa e que o nosso impacto no mundo é limitado. que a nossa vida, mais que nada é nossa. independentemente de tudo o que nos queiram impingir. Que as nossas escolhas não servem para ir ao encontro das vontades dos outros, expressas por eles ou imaginadas por nós, mas para ir ao encontro daquilo que nos dá sentido. daquilo que nós somos. Porque somos nós e não os outros que vivemos com elas todos os dias.
A multidão lembrava-a que ela podia ser quem queria, porque nunca ia ficar sozinha. A multidão ia sempre continuar ali. E o mundo continuaria a girar, sempre com coisas para serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas. para onde quer que ela olhasse. Talvez melhores, talvez piores. Mas sempre dignas de serem vistas, conhecidas, experimentadas, vividas.
E por isso, independentemente da forma como ela sentisse a realidade, que por vezes era dura, por vezes a fazia sofrer e nem sempre fazia justiça aos desejos de felicidade constante que lhe direcionavam algumas pessoas, a multidão lembrava a Clara que ela era quem era. E que era imune ao medo da solidão: a multidão nunca ia deixar de existir, e de a incluir sempre que ela desejasse.
E isso fazia em grande parte com que Clara fosse uma daquelas poucas pessoas que são verdadeiramente livres.
segunda-feira, setembro 03, 2012
Cá te espero
Para a Cá, a Larita, e o Paulinho. E as suas famílias.
A luz de Cá brilhava de forma quase palpável.
Os miúdos no Instituto Português de Oncologia têm frequentemente este tipo de brilho, uma luz que é deles por serem quem são, crianças, e uma luz que é deles porque a conquistaram, porque com frequência já olharam nos olhos a dor, o horror, o medo - deles e dos pais - e até a morte, e, apesar de tudo, não perderam a sua condição e inocência de crianças, e a sua capacidade de se maravilharem com o mundo todo.
Aos adultos, por vezes, o enfrentar a dor, o medo, a morte, marca de tal forma que se tornam incapazes de seguir vivendo, como se tivessem comido um prato muito condimentado e tivessem ficado sem sensibilidade nas papilas gustativas para mais nada. As crianças, com frequência, depois de encararem esses fantasmas, estão prontas para ir brincar com os legos, as bonecas, o puzzles, os desenhos.
Porque na sua infinita sabedoria, sabem que o mundo é muito grande, muito maior que elas, e que há muito para viver. Então, que sentido faz sofrer continuamente, depois de a dor ter passado? Depois de se ter olhado para o medo? De se ter tocado a morte e fugido, como se se tratasse de uma campaínha?
E a luz de Cá, a menina frágil e aventureira, capaz de sorrir nas condições mais adversas, brilhava de uma forma quase palpável.
Tinha cabelos compridos e sorria muito, quando começou os tratamentos no IPO. Era uma menina esperta e doce, com uma alegria genuína que contagiava as pessoas com quem lidava. Muito bonita.
Os tratamentos eram agrestes, mas Cá nunca perdeu o ânimo e nunca perdeu a doçura ou a luz com que brilhava de direito próprio. Pelo contrário, à medida que as suas pessoas (porque há pessoas que são nossas, como os pais, ou os irmãos, ou os amigos muito amigos) esmoreciam, Cá brilhava para lhes lembrar que valia a pena continuar, acreditar, viver, ter esperança.
E nunca deixou de brilhar.
Nem quando a doença ou os tratamentos lhe incharam a cara, lhe deram febre, a fizeram ficar mal-disposta, com dores em todo o lado, como que de castigo em isolamento, longe de casa, longe dos amigos, sem forças.
É difícil descrever a Cá-criança sem descrever a Cá-lutadora, guerreira. Porque todos os meninos do IPO são pequenos heróis. E às vezes a doença-guerra leva-os para longe, para um sítio de onde não regressam fisicamente.
E depois fica o vazio, um buraco impossível de preencher.
Mas isso não significa que a doença tenha vencido.
Porque há um segredo mágico que apenas os que lidam estas crianças sabem.
É que elas continuam vivas na luz com que nos impregnaram na sua passagem. E o sofrimento da perda é no fundo um preço pequeno a pagar, quando comparado com o privilégio imenso de se ter sido tocado por elas.
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