segunda-feira, dezembro 05, 2011

Marcelo

Marcelo era loucamente apaixonado pela mulher.

Lavínia tinha sido um amor à primeira vista completamente desmesurado. Marcelo amou-a mal a viu e independentemente da sua falta de reciprocidade.

E como Marcelo era persistente, teimoso, e além de tudo um péssimo perdedor, não descansou enquanto Lavínia não foi sua. Tanto andou, tanto jogou (dentro e fora dos limites do aceitável) que Lavínia acabou por lhe sucumbir de direito, mas nunca de facto.

Lavínia era sua - sua esposa, sem nunca ter sido completamente sua mulher.

A perceção deste facto deixava Marcelo louco, ciumento e possessivo.

Não tolerava que Lavínia fosse simpática com outros homens ou que tivesse amigos do sexo masculino - apesar de ela fazer sempre o que bem entendia - e punia-a com requintes de malvadez subtil quando ela fazia algo que lhe desagradava.

Mas Marcelo não sentia só ciúmes de outros homens, ele sentia muitos ciumes de tudo. Porque lhe parecia que de tudo Lavínia gostava mais do que dele, que encarava tudo na vida com uma força e entusiasmo admiráveis - uma centelha que ele não possuía e que tão melhor era empregue se ela ao menos a direcionasse para ele.

Marcelo queria a todo o custo dominá-la e Lavínia derrotava-o sempre da mesma maneira inelutável: fazendo de conta que se deixava dominar.

Por perceber isto, Marcelo dispendia uma quantidade de tempo e energia sobreumanos à caça de fantasmas, dos homens que não resistiam à sua mulher (que eram todos, claro, na sua visão profundamente apaixonada) e daqueles com quem ela se andasse às suas escondidas. Porque - claro - uma mulher daquelas não era de se contentar com menos do que a plenitude que ele sabia que não lhe dava.

Marcelo colocava a mulher num pedestal inalcançável. Não percebia que Lavínia via a relação como algo em que podia ser diferente, mais tranquila, mostrar a outra face da moeda. e que lhe estava profundamente comprometida. Mas Marcelo tinha a visão turva das cataratas da insegurança. Não percebia que a mulher apesar de ter mais vida, mais ambições e mais sonhos, lhe era dedicada.

E quanto mais inseguro, mais Marcelo era um cão de guarda feroz contra os outros e menos um amante doce e companheiro para a esposa, que por seu turno ficava menos contente o que por seu turno deixava Marcelo mais inseguro. Um ciclo vicioso aparentemente inquebrável.

Lavínia num pedestal, Marcelo inseguro, Marcelo agressivo, Lavínia descontente, e... Marcelo a colocar Lavínia num pedestal ainda mais alto, por perceber o seu descontentamento, a ser inseguro e agressivo, e a deixar Lavínia mais descontente... etc.

Até que um dia, ocorreu a Marcelo uma ideia tão brilhante quanto simples.

Se Lavínia engravidasse, se tivessem filhos, por muito que a "mulher Lavínia" não fosse completamente sua, a "mãe de família Lavínia" nunca deixaria de o ser.

E a partir do momento em que percebeu que se tivessem uma família, Lavínia nunca o deixaria, porque os seus valores a fariam tolerar quase tudo de forma mais ou menos dócil, Marcelo não descansou enquanto não a engravidou.

O plano era simples e foi posto em marcha. A partir do momento em que "estivessem grávidos", Marcelo seria indispensável a Lavínia, seria o seu grande apoio, a pessoa de quem dependeria, o foco da sua vida, ela seria dócil e entregar-se-ia sem reservas, porque tinham um projeto, uma responsabilidade tão grande em conjunto. E não lhe restariam energias para olhar para outros homens ou para muito mais coisas, porque teria mais do que fazer com a nova família que agora começava. Além do que Marcelo ganhava um novo argumento nas discussões.

A Lavínia não passava despercebido este racional, por muito que fizesse de conta que não. Mas ela tinha vontade de ser mãe e tinha-se casado com Marcelo porque via coisas muito boas nele e porque gostava dele; ela não tinha qualquer intenção de o deixar, nem tão pouco olhava para outros homens como o marido tanto dizia, por isso fez como de costume que se deixara levar na cantiga.

Encarou a gravidez com o entusiasmo e a paixão que empregava em todos os seus projetos e ambições. Sabia que isso por norma deixava o marido louco de ciumes, mas esperava desta vez conseguir contagiá-lo da alegria que sentia, já que era uma coisa de ambos e que ambos tinham querido.

A Marcelo surpreenderia o facto de se sentir ciumento da quantidade de energia que Lavínia tinha e era capaz de dar à preparação para a chegada do filho. Desagradaria perceber que a sua importância parecia diminuida perante a gravidez.

Mas o choque que realmente faria o seu mundo ruir, seria ver a mulher olhar para o filho pela primeira vez, completamente entregue, sem reservas nem condições. Seria perceber que Lavínia fora sua, por muito imerecida que tivesse sido essa benção até então. Mas que dali em diante Lavínia seria de outro com quem não podia competir. E perceber que tudo o que tinha temido até então havia sido completamente estúpido, porque o único grande rival de quem ele tinha de facto alguma coisa a temer acabara de nascer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Totalmente rendido à perspicácia da composição.

Este "andamento", se bem desenvolvido, dava uma sinfonia!

JP
:-))