Já não gostava da casa.
A casa era pequena. Tinha sido André que a tinha encontrado, quando ambos procuravam apartamento. Ficava numa zona excelente do Porto, central mas recôndita ao mesmo tempo. A renda era uma pechincha.
"Um verdadeiro achado", como gostava Joana de dizer às pessoas a quem contava onde vivia naquela altura.
André ficara com a casa, Joana ficara com as gatas.
Na altura, ainda atordoado com a decisão de separação que lhe era apresentada assim, concluída e em fase de execução, sem espaço para negociações ou discussões concetuais, André achou que estava bem e que era justo. Ela é que queria acabar, ela que saísse de casa.
A verdade é que jamais teria saído da casa se tivessem acordado o oposto, teria protelado a sua saída até vencer Joana pelo cansaço, como fazia sempre.
Se calhar era por isso que a ex-namorada tinha optado por romper com ele daquela forma.
Sentado na poltrona azul da sala, sem ligar a TV, nem o rádio nem o pc, André admirava a casa. O silêncio da casa.
Sempre tinha detestado a mania de Joana de trautear músicas pimba e pouco cool que depois se lhe colavam no ouvido e que por seu turno passava a trautear também, distraidamente.
Mas tinha saudades das gatas, Coco e Rosie, em homenagem a uma das poucas bandas de que ambos gostavam. Coco era tímida e assutadiça, Rosie era uma safada, uma aventureira.
Aos Domingos de manhã, gostavam de preguiçar em casa, e faziam brunch, com ovos mexidos e sumo de laranja natural. Com croissants fresquinhos da confeitaria da esquina e pão da aldeia que tinham sempre, da loja transmontana. Joana tinha uma tia que fazia uns doces excecionalmente bons, com umas receitas secretas que não dava a ninguém, e ambos veneravam esses nectares lambendo os dedos, e poupando a iguaria como se fosse preciosa. às vezes faziam panquecas ou crepes. às vezes tinham convidados para o banquete matinal.
Coco e Rosie pedinchavam-lhe comida discretamente, porque Joana não aprovava que se desse comida "de humanos" às gatas, que lhes fazia mal.
No fim da refeição, completamente cheios e com a gula saciada, muitas vezes até à indisposição, resfastelavam-se no sofá grande, com as gatas no colo a ronronar, a ver "trash TV" e a rirem-se muito dos programas juvenis da MTV "date my mom" ou "made", a criticarem "toddlers and tiaras" e de queixo caído com "big fat gipsy weddings" ou "extreme couponing".
Eram manhãs completamente inúteis, muito melhor dispendidas a passearem ou a irem a museus como sempre combinavam "para a próxima semana", mas eram também alguns dos melhores momentos da sua semana.
Segunda era sempre o dia em que ambos, bastante gordinhos, planeavam começar a fazer dieta.
Agora, André corria aos domingos de manhã, como de resto fazia em todos os momentos de rotina em que lhe faltava a sua "cara metade".
Segurando o gelo no joelho lesionado, André considerava como era curiosa a expressão "cara metade".
Saboreou a expressão: "Cara metade".
Quando era jovem pensava que "cara metade" era como que a dizer que a pessoa era a outra metade da sua face. E gostava do conceito de fazer parte da cara de outra pessoa. Fazia-lhe sentido, porque a cara é a parte mais identificativa de uma pessoa, e, quando se assume uma relação, passa-se a fazer parte da identidade dessa pessoa. Há pessoas que adotam os nomes umas das outras, há pessoas que deixam de se relacionar individualmente com outros e passam a ser uma "entidade" com a outra pessoa, falando sempre de si na primeira pessoa do plural por defeito ("vamos passar férias", "não temos a certeza se podemos ir ao jantar", "estamos a chegar", "Gostamos muito de almoços de família"), mesmo quando uma pergunta lhes é dirigida só a si. Gostava também porque cara metade tinha tinha implícita a ideia que a pessoa veria um dia os seus genes misturados em partes iguais - metade, metade - num outro ser humano e que essa pessoa teria duas metades espelhadas na sua cara. Uma sua, outra da sua cara metade.
Não foi sem desencanto que um dia percebeu que cara metade, significava mais "querida metade" do que "a outra metade da minha face", perante o ar trocista de Joana.
E nessa altura deixou de usar a expressão, porque perdeu o valor para si.
Esticou-se em direção ao sofá e procurou a almofada de caroços de cereja às apalpadelas, entortando-se e ficando sem ângulo de visão para não ter de se levantar e desmontar o aparato da sua lesão: o saco do gelo, o banco para estender a perna, o leite com café e o pão com manteiga na mesa de apoio e o jornal de ontem e mais umas revistas na mesa do outro lado, ao pé do telefone. Não encontrou. Levantou-se. Olhou à volta e ocorreu-lhe, contrariado, que a também a almofada tinha ficado com Joana.
Sentiu uma fúria súbita encher-lhe o peito. Insultou-a com muitos palavrões. E sentou-se novamente, muito irritado.
Colocou o gelo e sentiu falta de correr.
Correr ocupava-o. Era a ocupação perfeita porque era solitária e ele não queria a companhia de ninguém, era saudável e ele era precisava de perder peso, gastava muito tempo e ele tinha muito tempo para preencher.
Mas correr por vício e de forma obsessiva como ele fazia desde a separação tinha o seu quê de negativo e as suas articulações já andavam a queixar-se desde há umas semanas. Agora estava de baixa, nem para o trabalho podia ir, e era obrigado a enfrentar todos os seus fantasmas de uma só vez, confinado ao espaço que partilhara com a mulher de cujas lembranças tentava fugir, sozinho com os seus pensamentos que havia engarrafado sob pressão, no dia da semana em que mais usufria do amor que sentia por ela e da cumplicidade que partilhavam.
E se André havia muito que já não gostava dos domingos, percebia agora que também já não gostava da casa.
A casa enchia-se das coisas que lhe faltavam e que Joana tinha levado, enchia-se da sua ausência e da ausência das gatas. Enchia-se do silêncio de não ouvir o irritante trautear de "Karma chameleon" ou músicas de Bon Jovi e Brian Adams. E as paredes assim, mais à mostra da muita tralha que ela tinha levado - porque Joana colecionava toda a tralha que encontrasse - pareciam mais perto e mais opressoras. A casa tinha ficado mais pequena. As paredes tinham mais rachas. As portas rangiam mais. O chão era mais feio. O sol não batia. A vizinhança era chata. Os móveis estavam mais estragados. Os armários eram mais pequenos e menos jeitosos. Cheiravam a mofo.
André punha defeitos em tudo e culpava os outros, sobretudo Joana. Não deixava que lhe falassem dela, nem dos erros que ele estava a cometer contra a sua própria saúde e reagia de forma quase agressiva quando o tentavam fazer.
Vestia a capa de uma racionalidade fria e calma, abrigada no pressuposto de que ela era uma cabra e toda a sua vida se tinha tornado num inferno por causa dela, que o destruíra afetiva, social e até economicamente. Por culpa dela.
Tinha medo que, se um dia pensasse seriamente sobre o assunto, se um dia se acalmasse e permitisse a possibilidade de outras hipóteses, pudesse descobrir que, afinal, a culpa não só não estava solteira, como nem sequer era monogâmica.
Karma Chameleon - Culture Club
Lemonade - CocoRosie
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
sexta-feira, março 30, 2012
domingo, março 25, 2012
André
Só há uma maneira de amar, que é completamente.
André amara Joana completamente e depois de a relação acabar abrupta, unilateral e definitivamente, restava-lhe apenas a saudade.
A saudade doía-lhe como um punhal entre as costelas. Como um vazio que o comia de dentro para fora. A saudade era uma mão que agarrava o seu coração e o apertava até ele quase deixar de bater, asfixiado, como um pássaro pequeno e assustado, garreado por uma pessoa maldosa.
A saudade comia-lhe o peito. A saudade devorava o seu interior, canibalesca, sedenta, destruídora.
A saudade engolia-o inteiro no seu nada. Esvaziava-o.
A saudade doía-lhe com a força da mão que já não está lá para o amparar, com a comichão do comentário que só ela ia perceber e ele não pode partilhar. Com a noção de que ela não estava bem e ele nada podia fazer, por muito que quisesse.
A saudade esgueirava-se nos seus sonhos, no seu sono, como uma cobra que deslizava pelos enredos do seu subconsciente. Adormecia embalado pelo seu nome que repetia, como se a chamasse; acordava com o seu nome repetido pelas personagens dos seus sonhos que o acordavam a meio da noite. A saudade perturbava o seu trabalho, paralizando-o. A saudade tornava a sua ausência mais visível que o resto das coisas. A saudade saturava a sua existência da presença dela que já lá não estava, da falta que a presença dela lhe fazia. E a ausência dela inundava todo o chão que pisava, ferindo-o como se estivesse descalço e caminhasse entre seixos afiados. Com a noção de que lhe faltava um pedaço e que o pedaço era o seu melhor pedaço, e o pedaço que lhe faltava era ela, que lhe fora retirada rombamente e sem precisão, deixando bocadinhos entranhados que se metastizavam em toda a parte. A sua ausência doía como as dores de um membro fantasma, que dói como se estivesse contraído porque o cérebro não pode ver o que lhe falta. e ela faltava-lhe com os seus problemas, os seus comentários, os seus sonhos e ambições. a sua doçura. o seu sorriso. a sua malícia. e a forma como o preenchia por inteiro.
E sem ela, ele era uma criança perdida no supermercado, engolido por corredores altos e familiares onde não estava a presença protetora da mãe, que procurava correndo sem parar até o coração bater depressa demais e a desesperança lhe transbordar dos olhos e das goelas implorantes.
E sem ela os dias eram iguais e as estradas não tinham direção. Não havia propósito nas coisas.
E sem ela não fazia sentido lutar, sair da cama, acordar.
André corria todos os dias para se cansar e conseguir adormecer, para ter algo que fazer à hora em que a ia buscar ao trabalho. Desistiu de jantar para não ir ao supermercado onde iam os dois comprar ingredientes de última hora às sete da tarde, sozinho, para não por a mesa só para si.
Deitava-se cedo depois dos 15 kms que corria até ele mesmo ser só suor e ofegação, para chegar a casa e cair na cama logo depois do banho.
Sabia - ou pelo menos queria muito acreditar no que diziam os amigos e a sua própria experiência passada - que as coisas haviam de melhorar e que um dia aquela ferida haveria de sarar e ele seria capaz de gostar de outra pessoa. Talvez até de amar novamente.
Sabia que tinha de ter paciência. E escolhia fazê-lo, como se tivesse qualquer outra opção.
André amara Joana completamente e depois de a relação acabar abrupta, unilateral e definitivamente, restava-lhe apenas a saudade.
A saudade doía-lhe como um punhal entre as costelas. Como um vazio que o comia de dentro para fora. A saudade era uma mão que agarrava o seu coração e o apertava até ele quase deixar de bater, asfixiado, como um pássaro pequeno e assustado, garreado por uma pessoa maldosa.
A saudade comia-lhe o peito. A saudade devorava o seu interior, canibalesca, sedenta, destruídora.
A saudade engolia-o inteiro no seu nada. Esvaziava-o.
A saudade doía-lhe com a força da mão que já não está lá para o amparar, com a comichão do comentário que só ela ia perceber e ele não pode partilhar. Com a noção de que ela não estava bem e ele nada podia fazer, por muito que quisesse.
A saudade esgueirava-se nos seus sonhos, no seu sono, como uma cobra que deslizava pelos enredos do seu subconsciente. Adormecia embalado pelo seu nome que repetia, como se a chamasse; acordava com o seu nome repetido pelas personagens dos seus sonhos que o acordavam a meio da noite. A saudade perturbava o seu trabalho, paralizando-o. A saudade tornava a sua ausência mais visível que o resto das coisas. A saudade saturava a sua existência da presença dela que já lá não estava, da falta que a presença dela lhe fazia. E a ausência dela inundava todo o chão que pisava, ferindo-o como se estivesse descalço e caminhasse entre seixos afiados. Com a noção de que lhe faltava um pedaço e que o pedaço era o seu melhor pedaço, e o pedaço que lhe faltava era ela, que lhe fora retirada rombamente e sem precisão, deixando bocadinhos entranhados que se metastizavam em toda a parte. A sua ausência doía como as dores de um membro fantasma, que dói como se estivesse contraído porque o cérebro não pode ver o que lhe falta. e ela faltava-lhe com os seus problemas, os seus comentários, os seus sonhos e ambições. a sua doçura. o seu sorriso. a sua malícia. e a forma como o preenchia por inteiro.
E sem ela, ele era uma criança perdida no supermercado, engolido por corredores altos e familiares onde não estava a presença protetora da mãe, que procurava correndo sem parar até o coração bater depressa demais e a desesperança lhe transbordar dos olhos e das goelas implorantes.
E sem ela os dias eram iguais e as estradas não tinham direção. Não havia propósito nas coisas.
E sem ela não fazia sentido lutar, sair da cama, acordar.
André corria todos os dias para se cansar e conseguir adormecer, para ter algo que fazer à hora em que a ia buscar ao trabalho. Desistiu de jantar para não ir ao supermercado onde iam os dois comprar ingredientes de última hora às sete da tarde, sozinho, para não por a mesa só para si.
Deitava-se cedo depois dos 15 kms que corria até ele mesmo ser só suor e ofegação, para chegar a casa e cair na cama logo depois do banho.
Sabia - ou pelo menos queria muito acreditar no que diziam os amigos e a sua própria experiência passada - que as coisas haviam de melhorar e que um dia aquela ferida haveria de sarar e ele seria capaz de gostar de outra pessoa. Talvez até de amar novamente.
Sabia que tinha de ter paciência. E escolhia fazê-lo, como se tivesse qualquer outra opção.
sexta-feira, março 16, 2012
Edgar
Edgar gostava da palavra foder.
Que prazer lhe dava dizer um sonoro “foda-se” num aperto qualquer, ou no trânsito. Como se a força de ser um palavrão e o facto ter três silabas tivessem o imediato poder de o aliviar num momento de exasperação.
Haver três ou mais sílabas era importante; não era a mesma coisa dizer “puta”, por exemplo. Nesse caso, ou prolongava a primeira sílaba, dizendo a palavra “à norte”: “po-u-ta”, ou tinha de complementar a expressão com “filha da puta” ou “puta do caralho” - uma expressão propriu sensu idiota, porque limita o âmbito da clientela da prostituta a portadores de um pénis; mas lá está, as três sílabas de ca-ra-lho, a compensarem a pequenez do insulto à senhora que não sai da faixa de ultrapassagem, apesar de ir a 70 kms/h.
Da mesma maneira, poderia dizer num impropério “ma-ri-cas” ou em três bocados “pane-lei-ro” (todos eles passíveis – obviamente - de serem complementados com “do caralho” para reforçar ideia de agravamento e a libertação da tensão, não obstante também aqui o acrescento diminuir a lógica do insulto, porque o torna reduntante. Estranho seria chamar a algum homem algo que se traduzisse por "homossexual da vagina").
Edgar gostava de palavrões em geral e gostava de chocar as pessoas com palavrões, usando-os nos momentos mais impróprios pelo simples gozo de ver uma cara de surpresa e indignação. Gostava de dizer em cocktails finos ou no fim de recitais de piano “que concerto do caralho!”, ou então, “este gajo não toca uma piça!”.
Mas nenhum palavrão chegava aos calcanhares da frequência, intensidade e duração com que Edgar podia usar as diferentes formas do verbo foder.
“Foda-se!”, claro, nos tops do uso, podendo ser um “oh foda-se” suspirado; um “FO-DA-SE” com as sílabas encorpadas num desabafo de frustração e raiva, ou ainda um “foda-se, foda-se, foda-se” como se fosse um conjúrio dizendo “isto não pode estar a acontecer”.
Usava ainda com regularidade o “está tudo fodido”, quando as coisas davam para o torto no trabalho ou então, para algum colega “agora é que fodeste tudo”.
Na intimidade, Edgar também apreciava o uso de palavrões. Gostava mais que nada que a namorada, uma jovem muito organizada e muito composta, filha de boas famílias e de insuspeitas boas maneiras lhe dissesse timidamente com a sua postura e ar de bailarina clássica “quero que me fodas agora”.
Embora fosse um bocado javardo, Edgar era um javardo de bom coração, com bonomia e uma lealdade inabalável aos amigos, pelo que o seu fetiche pelo uso de palavrões, era encarado no seu círculo social como mais um fait divers, uma característica peculiar de um amigo que também era peculiar. A sua coprolália suscitava sorrisos, encolher de ombros, revirar de olhos e comentários “não ligues, é o Edgar”, aos novos membros do grupo de convívio.
A perplexidade das pessoas aumentava quando conheciam Joana, impecável e de modos irrepreensíveis que namorava com Edgar, o javardo. Perguntavam-se como era possível a flor de estufa dar-se com o selvagem, que acaso estranho, que caso raro da natureza teria ocorrido para que aqueles dois tão diferentes e aparentemente incompatíveis estivessem juntos e se dessem tão bem.
Que Edgar dissesse vulgaridades e usasse vernáculo era tão normal que se fundia na paisagem. Como se a força das coisas que dizia adviesse da forma como ele, melhor do que ninguém, conseguia modelar a entoação, dicção e momento em que ele dizia as asneiras. Como as conjugava com as expressões faciais e linguagem corporal certa para veicular a ideia exata e o sentimento que a acompanhava.
E por isso mesmo, não deixava de ser curioso o impacto das palavras escritas na caligrafia imaculada de Joana, num pedaço de papel perfeitamente cortado do seu bloco de notas com caneta a condizer. Palavras deixadas ao lado do computador aberto no email de uma amante de Edgar.
Aquela expressão, que lhe era tão familiar, doeu-lhe como se fosse material, como se nunca a tivesse ouvido, como se nunca tivesse sido usada contra si e fosse de repente a coisa mais poderosa e carregada de desprezo que alguma vez escutara. Talvez porque Joana apenas dizia palavrões no contexto da intimidade e a seu pedido, porque era uma coisa tão avessa à sua natureza, era impossível passar-lhe despercebido o ódio que destilavam, o nojo que refletiam, o desprezo e a vontade de se afastar dele que eram incontornáveis:
“Vai-te foder”.
Que prazer lhe dava dizer um sonoro “foda-se” num aperto qualquer, ou no trânsito. Como se a força de ser um palavrão e o facto ter três silabas tivessem o imediato poder de o aliviar num momento de exasperação.
Haver três ou mais sílabas era importante; não era a mesma coisa dizer “puta”, por exemplo. Nesse caso, ou prolongava a primeira sílaba, dizendo a palavra “à norte”: “po-u-ta”, ou tinha de complementar a expressão com “filha da puta” ou “puta do caralho” - uma expressão propriu sensu idiota, porque limita o âmbito da clientela da prostituta a portadores de um pénis; mas lá está, as três sílabas de ca-ra-lho, a compensarem a pequenez do insulto à senhora que não sai da faixa de ultrapassagem, apesar de ir a 70 kms/h.
Da mesma maneira, poderia dizer num impropério “ma-ri-cas” ou em três bocados “pane-lei-ro” (todos eles passíveis – obviamente - de serem complementados com “do caralho” para reforçar ideia de agravamento e a libertação da tensão, não obstante também aqui o acrescento diminuir a lógica do insulto, porque o torna reduntante. Estranho seria chamar a algum homem algo que se traduzisse por "homossexual da vagina").
Edgar gostava de palavrões em geral e gostava de chocar as pessoas com palavrões, usando-os nos momentos mais impróprios pelo simples gozo de ver uma cara de surpresa e indignação. Gostava de dizer em cocktails finos ou no fim de recitais de piano “que concerto do caralho!”, ou então, “este gajo não toca uma piça!”.
Mas nenhum palavrão chegava aos calcanhares da frequência, intensidade e duração com que Edgar podia usar as diferentes formas do verbo foder.
“Foda-se!”, claro, nos tops do uso, podendo ser um “oh foda-se” suspirado; um “FO-DA-SE” com as sílabas encorpadas num desabafo de frustração e raiva, ou ainda um “foda-se, foda-se, foda-se” como se fosse um conjúrio dizendo “isto não pode estar a acontecer”.
Usava ainda com regularidade o “está tudo fodido”, quando as coisas davam para o torto no trabalho ou então, para algum colega “agora é que fodeste tudo”.
Na intimidade, Edgar também apreciava o uso de palavrões. Gostava mais que nada que a namorada, uma jovem muito organizada e muito composta, filha de boas famílias e de insuspeitas boas maneiras lhe dissesse timidamente com a sua postura e ar de bailarina clássica “quero que me fodas agora”.
Embora fosse um bocado javardo, Edgar era um javardo de bom coração, com bonomia e uma lealdade inabalável aos amigos, pelo que o seu fetiche pelo uso de palavrões, era encarado no seu círculo social como mais um fait divers, uma característica peculiar de um amigo que também era peculiar. A sua coprolália suscitava sorrisos, encolher de ombros, revirar de olhos e comentários “não ligues, é o Edgar”, aos novos membros do grupo de convívio.
A perplexidade das pessoas aumentava quando conheciam Joana, impecável e de modos irrepreensíveis que namorava com Edgar, o javardo. Perguntavam-se como era possível a flor de estufa dar-se com o selvagem, que acaso estranho, que caso raro da natureza teria ocorrido para que aqueles dois tão diferentes e aparentemente incompatíveis estivessem juntos e se dessem tão bem.
Que Edgar dissesse vulgaridades e usasse vernáculo era tão normal que se fundia na paisagem. Como se a força das coisas que dizia adviesse da forma como ele, melhor do que ninguém, conseguia modelar a entoação, dicção e momento em que ele dizia as asneiras. Como as conjugava com as expressões faciais e linguagem corporal certa para veicular a ideia exata e o sentimento que a acompanhava.
E por isso mesmo, não deixava de ser curioso o impacto das palavras escritas na caligrafia imaculada de Joana, num pedaço de papel perfeitamente cortado do seu bloco de notas com caneta a condizer. Palavras deixadas ao lado do computador aberto no email de uma amante de Edgar.
Aquela expressão, que lhe era tão familiar, doeu-lhe como se fosse material, como se nunca a tivesse ouvido, como se nunca tivesse sido usada contra si e fosse de repente a coisa mais poderosa e carregada de desprezo que alguma vez escutara. Talvez porque Joana apenas dizia palavrões no contexto da intimidade e a seu pedido, porque era uma coisa tão avessa à sua natureza, era impossível passar-lhe despercebido o ódio que destilavam, o nojo que refletiam, o desprezo e a vontade de se afastar dele que eram incontornáveis:
“Vai-te foder”.
quarta-feira, março 14, 2012
O rio
Quando o rio nasceu, saiu da terra a cantar uma melodia fresca num improviso acidentado.
Desceu a montanha entre pedras, galhos e solo, maravilhado com a terra onde se infiltrava, feliz.
O rio era pequeno e achava que o mundo se limitava ao sítio que o rodeava.
Entranhou-se no chão, seguindo o seu rumo enrolado com a terra. O rio amava a terra da sua nascente e achava que poderia morrer ali de felicidade.
Entrou na terra e a sua água fê-la viver, crescendo e colorindo-se de diferentes tons de verde, castanho, e depois amarelo, vermelho, cor-de-rosa e azul. O rio entrou na terra e os animais celebraram construindo as suas casas perto, brincando nas margens.
Mas a terra da nascente não chegava ao rio que continuava a crescer. E à medida que mais água jorrava da nascente cantante, o rio continuou a espalhar música e vida pelo seu caminho, alcançando mais chão à medida que a saciava.
No seu caminho o rio encontrou outos rios que o acompanharam e se fundiram com ele até serem um só. Queriam fazer parte dele, ir com ele naquela viagem.
E à medida que crescia, a sua voz parecia mais calada, até que o rio já não cantava, murmurava entre as múltiplas vozes dos afluentes que o compunham, em constante espanto com o mundo que abarcava.
Quanto mais crescido, mais encantado com a música e as histórias dos outros. Quanto maior o rio mais silencioso e mais murmurante, mais ávido de outros universos além do seu. O rio percebeu cedo que só através dos outros - dos outros elementos, dos outros afluentes, dos outros seres - é que ele crescia e ganhava significado. E por isso o rio era muito grato e muito dado àqueles que partilhavam a viagem consigo.
Mas vida do rio nem sempre foi fácil.
O rio crescera e não era mais apenas o fruto da fonte selvagem que brotava água do centro da terra. O rio cresceu e começaram a fazer parte de si as águas da chuva e as águas dos outros rios.
Quando não chovia, o rio não tinha água suficiente para continuar o seu caminho, não conseguia continuar e por seu turno a terra amarelecia de saudades e ficava com rugas de velhice antecipada no lugar onde era o seu caudal ressequido.
Mas o rio existia para além daquilo que lhe quisessem dizer e para além dos obstáculos. O rio esperava pela chuva e, mal podia, corria feliz e sôfrego, a inundar as paragens que lhe tinham ficado vedadas, abraçando a terra saudosa que fazia novamente brotar de verde e outras cores.
O rio gostava de correr pela terra, romper as rochas, descer e subir as montanhas, circundar as árvores e os pedaços de terra fazendo ilhas. Rodopiar entre as curvas da montanha, rápido e lento, seguro e violento.
Gostava de transportar os barcos, de ser ele mesmo uma nave que transporta outras naves.
O rio corria feliz e sabia que havia algum propósito na sua existência. O rio corria para correr. Pelo prazer de existir. E a sua vida fazia sentido.
Mas o rio não se esgotava na terra que regava e em que vivia entranhado. E quando já era muito grande, chegou a uma cidade sedenta que vivia triste por não ter um rio.
Quando chegou, o rio inundou a cidade como se a quisesse conhecer, pouco a pouco, fio de água por fio de água.
O rio amava a cidade e gostava de a pintar de dourado nos fins de tarde, de cinzento nos dias de chuva, de prateado nas manhãs de nevoeiro. Prolongava a sua existência colorida, fotocopiando as suas cores numa aguarela profunda todos os dias.
As aves sobrevoavam o rio e alimentavam-se dos peixes que viajavam e viviam nele. Brincavam com ele, fazendo nuvens que se movimentavam em tons de branco ora mais denso, ora mais espaçado na dança que as aves fazem quando estão enamoradas.
Quando o rio chegou à cidade, que tanto o aguardara houve muitos festejos e felicidade. As pessoas fizeram os céus florescer com fogos-de-artifício e tocaram música toda a noite. Assavam sardinhas e fêveras nas ruas que partilhavam com todos os que passavam, enquanto bebiam vinho novo e sangria.
Colocavam colchas nas janelas para embelezarem as casas e as meninas vestiam os seus vestidos melhores, de sair ao domingo.
As pessoas abraçavam-se nas ruas, dançavam e faziam barquinhos de papel colorido que colocavam na água para que o rio pudesse brincar com eles também. Acenderam balões de S. João que desmaiavam e caiam no rio, testemunhas de uma alegria que queria voar e iluminar a noite toda, porque a felicidade traz luz à escuridão mais recôndita.
As pessoas tinham esperado muito pelo rio e ele era exactamente como elas tinham sonhado.
E o rio sentia-se muito amado e feliz.
O rio trouxe muita riqueza à cidade, com os barcos que transportavam pipas de vinho para as caves que se tornaram famosas, com mercadorias, com os desportos de água que as crianças e os jovens imortalizavam no seu leito, brincado consigo, suando e crescendo, aprendendo com rio que a vida é feita de conquistas e que as maiores são as conquistas de nós mesmos connosco próprios.
No verão, as crianças saltavam para a sua água para nadar, improvisando embarcações com bóias coloridas.
E o rio tornou-se também num conselheiro e num patrono. Casais de namorados iam admirá-lo e davam as mãos, entrelaçando os dedos perante a emoção da beleza da paisagem. Mães desesperadas choravam nas suas margens. Pessoas infelizes procuravam consolo nos seus murmúrios, tentando perceber o sentido da sua vida no sentido do rio.
Algumas pessoas tristes queriam tanto ter um sentido como o próprio rio, que se lançavam das pontes para o seu leito, encontrando aí a morte ou a salvação.
O rio amava a cidade e a cidade amava o rio, mas mesmo sem o querer admitir, ele sabia que tinha de continuar a correr, porque era essa a sua natureza, mesmo se já não havia mais terra para onde se estender.
Nem a cidade que o rio amava era suficiente para conter a sua natureza, para suportar toda a sua água.
Um dia, o rio ouviu outras águas cantarem uma música diferente da sua e lembrou-se que quando era muito jovem gostava de cantar e cantava todos os dias como uma menina feliz ao sair da terra. O rio avançou a medo porque não sabia o que era aquela canção, mas não lhe conseguia resistir, como se toda a sua vida tivesse sido uma viagem com um propósito, e o propósito estivesse tão perto.
O rio aproximou-se da outra água e o mar perguntou-lhe se ele queria conhecer o mundo e cantar com ele para sempre.
O rio pensou na cidade e achou que não era capaz de sair daí, ainda que nada mais quisesse na vida do que seguir a sua natureza e tornar-se parte de algo maior, as suas águas misturadas no mar em viagens por paragens distantes.
O mar sorriu perante a nobreza do rio que se dispunha a sacrificar o seu sonho por todos os que tanto o amavam. Baixou a sua voz e contou-lhe um segredo: para chegar ao mar, o rio tinha de passar por todas as paragens de onde era. Para viajar no mar, o rio havia sempre de continuar a ser a fonte, o ribeiro, o rio pequeno e depois o grande rio. Nunca deixamos de ser quem fomos, e nunca deixamos os que amamos. Por muito mar que atravessasse e preenchesse, o rio nunca deixaria de ter sido o rio que fecundou a terra, que rompeu as rochas, que abraçou as ilhas, que regou as uvas, que transportou os barcos e que viveu na cidade mais bonita do mundo.
O rio olhou para o seu percurso e sentiu-se longo, pesado e contido. Tinha medo que o mar o levasse e lhe roubasse a terra que tanto amava, a cidade que preenchia.
Fechou os olhos e respirou fundo, calando toda a terra e o mar com o seu suspiro sentido.
Muito lá ao longe, ouviu-se cantar na sua fonte e percebeu que o mar tinha razão. Ele era quem sempre fora, e se era quem era agora, devia-o ao seu percurso; independentemente dos sonhos que agora tinha.
Lembrou-se dos estendais de roupa e da vida das pessoas que passava nas suas margens, o bebé que a mãe lava no rio que é depois uma menina de vestido branco que é depois uma jovem que aprende a ler perto do rio, que se enamora, que casa, que lava a roupa no rio, que lava os seus bebés que choram no rio, que envelhece à beira do rio, e que se enruga e veste preto ao lado da filha que fora bebé e que lava os seus bebés no rio, no constante ciclo da vida. E o rio sempre constante nas suas vidas e a vida que continua a correr porque a mulher é só uma das muitas criaturas que vivem do rio e que o fazem viver para mais do que correr sem parar e sem fôlego.
Sempre diferente e sempre igual, nas cascatas, nos remoinhos, nos rápidos, nas paisagens imponentes, nas vinhas.
Estendeu uns fios de água ao mar, um pouco a medo, como se lhe desse a mão. O mar segurou-o com delicadeza e abraçou-o como se também ele tivesse esperado muito tempo pelo rio e quisesse mostrar-lhe o mundo de que tanto lhe falara, em todas as vezes que cantara para ele.
Passearam juntos pelo mundo, mudando e mudando-se, sem nunca terem deixado de estar no sítio onde sempre haviam estado, onde se conheceram e se enamoraram.
Desceu a montanha entre pedras, galhos e solo, maravilhado com a terra onde se infiltrava, feliz.
O rio era pequeno e achava que o mundo se limitava ao sítio que o rodeava.
Entranhou-se no chão, seguindo o seu rumo enrolado com a terra. O rio amava a terra da sua nascente e achava que poderia morrer ali de felicidade.
Entrou na terra e a sua água fê-la viver, crescendo e colorindo-se de diferentes tons de verde, castanho, e depois amarelo, vermelho, cor-de-rosa e azul. O rio entrou na terra e os animais celebraram construindo as suas casas perto, brincando nas margens.
Mas a terra da nascente não chegava ao rio que continuava a crescer. E à medida que mais água jorrava da nascente cantante, o rio continuou a espalhar música e vida pelo seu caminho, alcançando mais chão à medida que a saciava.
No seu caminho o rio encontrou outos rios que o acompanharam e se fundiram com ele até serem um só. Queriam fazer parte dele, ir com ele naquela viagem.
E à medida que crescia, a sua voz parecia mais calada, até que o rio já não cantava, murmurava entre as múltiplas vozes dos afluentes que o compunham, em constante espanto com o mundo que abarcava.
Quanto mais crescido, mais encantado com a música e as histórias dos outros. Quanto maior o rio mais silencioso e mais murmurante, mais ávido de outros universos além do seu. O rio percebeu cedo que só através dos outros - dos outros elementos, dos outros afluentes, dos outros seres - é que ele crescia e ganhava significado. E por isso o rio era muito grato e muito dado àqueles que partilhavam a viagem consigo.
Mas vida do rio nem sempre foi fácil.
O rio crescera e não era mais apenas o fruto da fonte selvagem que brotava água do centro da terra. O rio cresceu e começaram a fazer parte de si as águas da chuva e as águas dos outros rios.
Quando não chovia, o rio não tinha água suficiente para continuar o seu caminho, não conseguia continuar e por seu turno a terra amarelecia de saudades e ficava com rugas de velhice antecipada no lugar onde era o seu caudal ressequido.
Mas o rio existia para além daquilo que lhe quisessem dizer e para além dos obstáculos. O rio esperava pela chuva e, mal podia, corria feliz e sôfrego, a inundar as paragens que lhe tinham ficado vedadas, abraçando a terra saudosa que fazia novamente brotar de verde e outras cores.
O rio gostava de correr pela terra, romper as rochas, descer e subir as montanhas, circundar as árvores e os pedaços de terra fazendo ilhas. Rodopiar entre as curvas da montanha, rápido e lento, seguro e violento.
Gostava de transportar os barcos, de ser ele mesmo uma nave que transporta outras naves.
O rio corria feliz e sabia que havia algum propósito na sua existência. O rio corria para correr. Pelo prazer de existir. E a sua vida fazia sentido.
Mas o rio não se esgotava na terra que regava e em que vivia entranhado. E quando já era muito grande, chegou a uma cidade sedenta que vivia triste por não ter um rio.
Quando chegou, o rio inundou a cidade como se a quisesse conhecer, pouco a pouco, fio de água por fio de água.
O rio amava a cidade e gostava de a pintar de dourado nos fins de tarde, de cinzento nos dias de chuva, de prateado nas manhãs de nevoeiro. Prolongava a sua existência colorida, fotocopiando as suas cores numa aguarela profunda todos os dias.
As aves sobrevoavam o rio e alimentavam-se dos peixes que viajavam e viviam nele. Brincavam com ele, fazendo nuvens que se movimentavam em tons de branco ora mais denso, ora mais espaçado na dança que as aves fazem quando estão enamoradas.
Quando o rio chegou à cidade, que tanto o aguardara houve muitos festejos e felicidade. As pessoas fizeram os céus florescer com fogos-de-artifício e tocaram música toda a noite. Assavam sardinhas e fêveras nas ruas que partilhavam com todos os que passavam, enquanto bebiam vinho novo e sangria.
Colocavam colchas nas janelas para embelezarem as casas e as meninas vestiam os seus vestidos melhores, de sair ao domingo.
As pessoas abraçavam-se nas ruas, dançavam e faziam barquinhos de papel colorido que colocavam na água para que o rio pudesse brincar com eles também. Acenderam balões de S. João que desmaiavam e caiam no rio, testemunhas de uma alegria que queria voar e iluminar a noite toda, porque a felicidade traz luz à escuridão mais recôndita.
As pessoas tinham esperado muito pelo rio e ele era exactamente como elas tinham sonhado.
E o rio sentia-se muito amado e feliz.
O rio trouxe muita riqueza à cidade, com os barcos que transportavam pipas de vinho para as caves que se tornaram famosas, com mercadorias, com os desportos de água que as crianças e os jovens imortalizavam no seu leito, brincado consigo, suando e crescendo, aprendendo com rio que a vida é feita de conquistas e que as maiores são as conquistas de nós mesmos connosco próprios.
No verão, as crianças saltavam para a sua água para nadar, improvisando embarcações com bóias coloridas.
E o rio tornou-se também num conselheiro e num patrono. Casais de namorados iam admirá-lo e davam as mãos, entrelaçando os dedos perante a emoção da beleza da paisagem. Mães desesperadas choravam nas suas margens. Pessoas infelizes procuravam consolo nos seus murmúrios, tentando perceber o sentido da sua vida no sentido do rio.
Algumas pessoas tristes queriam tanto ter um sentido como o próprio rio, que se lançavam das pontes para o seu leito, encontrando aí a morte ou a salvação.
O rio amava a cidade e a cidade amava o rio, mas mesmo sem o querer admitir, ele sabia que tinha de continuar a correr, porque era essa a sua natureza, mesmo se já não havia mais terra para onde se estender.
Nem a cidade que o rio amava era suficiente para conter a sua natureza, para suportar toda a sua água.
Um dia, o rio ouviu outras águas cantarem uma música diferente da sua e lembrou-se que quando era muito jovem gostava de cantar e cantava todos os dias como uma menina feliz ao sair da terra. O rio avançou a medo porque não sabia o que era aquela canção, mas não lhe conseguia resistir, como se toda a sua vida tivesse sido uma viagem com um propósito, e o propósito estivesse tão perto.
O rio aproximou-se da outra água e o mar perguntou-lhe se ele queria conhecer o mundo e cantar com ele para sempre.
O rio pensou na cidade e achou que não era capaz de sair daí, ainda que nada mais quisesse na vida do que seguir a sua natureza e tornar-se parte de algo maior, as suas águas misturadas no mar em viagens por paragens distantes.
O mar sorriu perante a nobreza do rio que se dispunha a sacrificar o seu sonho por todos os que tanto o amavam. Baixou a sua voz e contou-lhe um segredo: para chegar ao mar, o rio tinha de passar por todas as paragens de onde era. Para viajar no mar, o rio havia sempre de continuar a ser a fonte, o ribeiro, o rio pequeno e depois o grande rio. Nunca deixamos de ser quem fomos, e nunca deixamos os que amamos. Por muito mar que atravessasse e preenchesse, o rio nunca deixaria de ter sido o rio que fecundou a terra, que rompeu as rochas, que abraçou as ilhas, que regou as uvas, que transportou os barcos e que viveu na cidade mais bonita do mundo.
O rio olhou para o seu percurso e sentiu-se longo, pesado e contido. Tinha medo que o mar o levasse e lhe roubasse a terra que tanto amava, a cidade que preenchia.
Fechou os olhos e respirou fundo, calando toda a terra e o mar com o seu suspiro sentido.
Muito lá ao longe, ouviu-se cantar na sua fonte e percebeu que o mar tinha razão. Ele era quem sempre fora, e se era quem era agora, devia-o ao seu percurso; independentemente dos sonhos que agora tinha.
Lembrou-se dos estendais de roupa e da vida das pessoas que passava nas suas margens, o bebé que a mãe lava no rio que é depois uma menina de vestido branco que é depois uma jovem que aprende a ler perto do rio, que se enamora, que casa, que lava a roupa no rio, que lava os seus bebés que choram no rio, que envelhece à beira do rio, e que se enruga e veste preto ao lado da filha que fora bebé e que lava os seus bebés no rio, no constante ciclo da vida. E o rio sempre constante nas suas vidas e a vida que continua a correr porque a mulher é só uma das muitas criaturas que vivem do rio e que o fazem viver para mais do que correr sem parar e sem fôlego.
Sempre diferente e sempre igual, nas cascatas, nos remoinhos, nos rápidos, nas paisagens imponentes, nas vinhas.
Estendeu uns fios de água ao mar, um pouco a medo, como se lhe desse a mão. O mar segurou-o com delicadeza e abraçou-o como se também ele tivesse esperado muito tempo pelo rio e quisesse mostrar-lhe o mundo de que tanto lhe falara, em todas as vezes que cantara para ele.
Passearam juntos pelo mundo, mudando e mudando-se, sem nunca terem deixado de estar no sítio onde sempre haviam estado, onde se conheceram e se enamoraram.
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