Flávio tinha um problema. Se há pessoas que de nervosas coram, outras que ficam às manchas, outras que suam ou que ficam com as mãos frias... A Flávio o nervosismo dava "a volta à barriga".
Em periodos de grande tensão dava por si a ter de ir muitas vezes e com muita urgência à casa de banho e - quando conseguia controlar o "ir à casa de banho" propriamente dito - o seu organismo vingava-se dele libertando ventosidades tão silenciosas como letais que o pobre Flávio não conseguia controlar.
Lembrava-se de situações em que lhe sucedera algum flato involuntário publicamente e em que outras pessoas comentavam "eh pá, não sei quem largou isto, mas é melhor ir ao médico, que esta pessoa está podre por dentro! Isto só pode ser alguém muito doente. A morrer, mesmo."
Esta sua característica, embora não fosse especialmente usual porque Flávio era uma pessoa calma que vivia uma vida o mais possível pacata, causava-lhe grandes embaraços e vergonhas e fazia com que ele tivesse grandes problemas no plano romântico, já que nada o deixava tão nervoso como estar perto da pessoa amada.
Por esta mesma situação de há uns tempos para cá, os ensaios do coro tinham-se tornado uma verdadeira tortura. Conhecera Marina havia algumas semanas e já estava caidíssimo pela contralto que por sorte ou por azar ficava muitas vezes à sua beira nos ensaios.
Dada a antiguidade da sua condição, Flávio já dispunha de uma série de técnicas para evitar o embaraço de lhe ser apontado o dedo pelo mau cheiro de uma sala inteira cheia de gente. Contraia os glúteos, sustinha a respiração, apertava a barriga, cruzava as pernas, ou concentrava-se numa coisa completamente diferente - como por exemplo a cadela vadia "Pipoca" que a D. Elisa havia acolhido e que assistia a todos os ensaios do coro com grande atenção no canto da sala. Se a situação fosse completamente impossível de controlar, usava o plano B de ir à casa de banho ou à varanda ou ao pátio, ou a qualquer sítio onde não estivesse mais ninguém. Se isto não fosse possível, tinha ainda a opção de circular tanto quanto pudesse e de forma estratégica de modo a que não se percebesse quem estava na origem do intenso mau cheiro.
Lembrava-se entre o ruborescer e o sorrir de malandro da festa de natal da empresa, no ano em que se apaixonara pela secretária da direção. Teve um ataque incontrolável de gases e não podia sair do recinto porque chovia desalmadamente. Nesse dia deambulou pela festa de forma inteligente de modo que se instalou nos presentes a ideia de que o cheiro fétido que se entranhava na sala só podia ser do próprio edifício. E lembrava-se bem da cara do administrador que se virou para o seu chefe e exclamou "ó engenheiro, então o problema da fossa não tinha ficado resolvido na semana passada??"
Mas neste momento a situação era completamente diferente e muito mais dramática. Não havia engenheiro para lhe arcar com as culpas e Marina estava mesmo ao seu lado enquanto cantavam o Haleluia de Haendel. Como esta nunca levava as partituras para os ensaios, estava a ler ora pela partitura de Flávio, ora pela da colega do lado.
Flávio estava literária e literalmente num aperto. O contacto tão próximo com a amada, que lhe roçava displicentemente o braço e lhe sorria com cumplicidade por este condescender na sua distração e a deixar ler pela sua página, acelarava-lhe o coração e demais processos fisiológicos.
Respirava pausadamete tentando controlar-se. Distraía-se olhando para a cadela que era castanha e patusca. E rezava para que o Haleluia acabasse rapidamente para que ele pudesse ir à casa de banho.
Já quase no final da peça, a mestrina virou-se para eles ordenando "Fortissimo!", e a exigência de forçar os músculos da garganta e peito para cantar mais alto, nos derradeiros "Haleluias" tornaram inevitável a catástrofe.
Todo o esforço foi por água abaixo, à medida que o gás que reprimira desde o início do ensaio, fermetando e ganhando uma potencia verdadeira épica se libertava à sua rebelia, em pleno climax do Haleluia.
A música acabou e começaram os risinhos. Os companheiros de coro entreolhavam-se e sorriam, tentando controlar a gargalhada que queria sair. Olhavam para ele e continham o riso.
Até que o cheiro intenso e nauseabundo chegou a D. Elisa, a mestrina opinativa e sem papas na língua que cada vez mais fazia uso do seus estatuto de septuagenária para dizer o que melhor entendesse a quem quer que fosse.
D. Elisa, que sempre fora muito expressiva, contorceu a cara num esgar de nojo e nausea, olhou para todos com ar de reprovação, e depois virando-se para o filho mais velho, apontou para o canto da sala e disse:
"Pipoca! Ai o raça da cadela! A cadela come-me as cascas do queijo e depois é isto. Um cheiro que não se aguenta! Já lá para fora Pipoca. Ai! A culpa é tua, Filipe - apontando para o filho mais velho - dás as cascas do queijo à cadela e depois é isto. Intervalo para toda a gente a ver se isto areja!"
Marina continuava a sorrir trocista e cumplicemente para Flávio, que se percebeu apanhado em flagrante delito. E achou perdida para todo o sempre qualquer esperança de uma relação com a doce Marina.
No meio da sua vergonha e embaraço, Marina puxa-lhe o braço e com o ar mais trocista e malandro do mundo sussurra-lhe ao ouvido:
"É nestas alturas que eu dou graças ao Senhor pela minha sinusite!! Enquanto que vocês estão para aí todos aflitos com o cheiro da Pipoca eu estou aqui na maior!"
Flávio olhou-a, sorriu rendido e aliviado e percebeu que se calhar, se calhar, Marina era mesmo a mulher da sua vida.
Um catálogo de personagens imaginárias para ficç(aç)ão. um kit de ideias. para pensar, escrever ou sonhar.
sexta-feira, dezembro 30, 2011
quarta-feira, dezembro 21, 2011
Marco
Achava que era mais feliz quando era criança. Que a vida e mundo em geral eram mais simples.
As regras eram claras, as pessoas eram honestas, não havia crises de valores.
Lembrava-se de lhe ensinarem as regras de boa educação, de lhe darem colo quando as coisas corriam mal mas ele tinha feito o que estava certo.
E agora, adulto, parecia que o mundo se tinha virado do avesso.
A bondade ou maldade dos seus atos eram medidas não pelas intenções - de que se diz estar o inferno cheio - mas pelas consequências dos mesmos.
Que as desculpas não se pedem, evitam-se. Que há coisas que não se desculpam. Ou pelo menos que não se esquecem.
Mas se tanto dessas consequências não eram da sua responsabilidade, não estavam no seu poder, ao seu alcance!
Pensava que às vezes mais valia estar quieto. Não fazer nada. Não dizer nada. Não ser nada. Não existir.
"Oh, I am fortune's fool" dizia citando o Romeu e Julieta de Shakespeare, para engolir a angústia de existir e ser uma folha ao vento.
Marco não conseguia deixar de se sentir sempre culpado e sempre desiludido de as coisas não lhe correrem como ele tinha previsto ou da forma como tinha planeado. De estar aquém das suas próprias expectativas. De olhar para a sua vida e sentir que não tinha feito nada, construído nada até então e angustiava-se com o tempo que lhe restava que a cada dia era mais pequeno. E que de certeza já não ia chegar. E será que ele era capaz de chegar onde queria?
A sua liberdade pesava-lhe como uma grilheta de ferro com bola, pelas oportunidades que lhe oferecia e que ele se sentia obrigado a abarcar. O seu talento e a sua visão arrastavam-o pela depressão como os cavalos de um Ferrari que nem para abastecer quer parar, que só contrariado mede a pressão dos pneus e verifica outros sinais vitais menos importantes que andar, andar, andar até ser mais veloz do que o vento.
A liberdade e as possibilidades que procurou como um afogado procura o ar - sofregamente, às goladas, sem deixar que nada se interpusesse na sua procura - oprimiram-no e não deixavam respirar. Não conseguia enfrentar os dias que antevia sempre como demasiado pesados para o seu eu desgastado de se puxar a cada momento além dos limites.
E tinha medo de morrer, não uma morte física, mas de se perder, perder a sua identidade em busca do seu sonho, perder o seu sonho para preservar a identidade que construiu e as coisas que amava, perder tudo por apostar demasiado alto, não apostar alto o suficiente e conformar-se na banalidade.
E tudo era mais difícil porque independentemente das suas intenções, Marco sabia que no balanço final da sua vida o que contava eram os resultados das mesmas.
E esquecia-se que a vida é a viagem, que a árvore que cai com estrondo mas ninguém ouve não fez barulho e que essencialmente é imensa a nossa pequenez.
E que isso não constitui qualquer problema. Que os maus atos ficam com quem os pratica, independentemente das suas consequências benéficas ou nefastas. E que só se vive realmente quando se amam os pequenos momentos, sem a culpa de não atingir os objetivos máximos e irrealistas a que nos propromos por vezes. Sem a culpa de tirar uma manhã para puxar o lustro ao carro. ou para ir passear a pé. ou para ficar sentado na praia. ou para não se fazer mais nada além de inspirar e expirar numa sequência despida de lógica, expectativas ou avaliações.
As regras eram claras, as pessoas eram honestas, não havia crises de valores.
Lembrava-se de lhe ensinarem as regras de boa educação, de lhe darem colo quando as coisas corriam mal mas ele tinha feito o que estava certo.
E agora, adulto, parecia que o mundo se tinha virado do avesso.
A bondade ou maldade dos seus atos eram medidas não pelas intenções - de que se diz estar o inferno cheio - mas pelas consequências dos mesmos.
Que as desculpas não se pedem, evitam-se. Que há coisas que não se desculpam. Ou pelo menos que não se esquecem.
Mas se tanto dessas consequências não eram da sua responsabilidade, não estavam no seu poder, ao seu alcance!
Pensava que às vezes mais valia estar quieto. Não fazer nada. Não dizer nada. Não ser nada. Não existir.
"Oh, I am fortune's fool" dizia citando o Romeu e Julieta de Shakespeare, para engolir a angústia de existir e ser uma folha ao vento.
Marco não conseguia deixar de se sentir sempre culpado e sempre desiludido de as coisas não lhe correrem como ele tinha previsto ou da forma como tinha planeado. De estar aquém das suas próprias expectativas. De olhar para a sua vida e sentir que não tinha feito nada, construído nada até então e angustiava-se com o tempo que lhe restava que a cada dia era mais pequeno. E que de certeza já não ia chegar. E será que ele era capaz de chegar onde queria?
A sua liberdade pesava-lhe como uma grilheta de ferro com bola, pelas oportunidades que lhe oferecia e que ele se sentia obrigado a abarcar. O seu talento e a sua visão arrastavam-o pela depressão como os cavalos de um Ferrari que nem para abastecer quer parar, que só contrariado mede a pressão dos pneus e verifica outros sinais vitais menos importantes que andar, andar, andar até ser mais veloz do que o vento.
A liberdade e as possibilidades que procurou como um afogado procura o ar - sofregamente, às goladas, sem deixar que nada se interpusesse na sua procura - oprimiram-no e não deixavam respirar. Não conseguia enfrentar os dias que antevia sempre como demasiado pesados para o seu eu desgastado de se puxar a cada momento além dos limites.
E tinha medo de morrer, não uma morte física, mas de se perder, perder a sua identidade em busca do seu sonho, perder o seu sonho para preservar a identidade que construiu e as coisas que amava, perder tudo por apostar demasiado alto, não apostar alto o suficiente e conformar-se na banalidade.
E tudo era mais difícil porque independentemente das suas intenções, Marco sabia que no balanço final da sua vida o que contava eram os resultados das mesmas.
E esquecia-se que a vida é a viagem, que a árvore que cai com estrondo mas ninguém ouve não fez barulho e que essencialmente é imensa a nossa pequenez.
E que isso não constitui qualquer problema. Que os maus atos ficam com quem os pratica, independentemente das suas consequências benéficas ou nefastas. E que só se vive realmente quando se amam os pequenos momentos, sem a culpa de não atingir os objetivos máximos e irrealistas a que nos propromos por vezes. Sem a culpa de tirar uma manhã para puxar o lustro ao carro. ou para ir passear a pé. ou para ficar sentado na praia. ou para não se fazer mais nada além de inspirar e expirar numa sequência despida de lógica, expectativas ou avaliações.
domingo, dezembro 11, 2011
Lúcia
Segurando a faca da carne à porta do quarto do filho bebé, como via nos filmes fazer, Lúcia via em flashes o decorrer do serão passado.
Entrar em casa depois da ceia de Natal em casa dos sogros com o bebé ao colo.
Olhar a sala em tons de branco, prata e preto finamente decorada e sentir que a casa inalterada estava diferente.
Afastar essa impressão por achar pateta, reparar que nada estava fora do sítio e sentir-se confortada.
Entrar pelo corredor dos quartos e levar o filho à cama.
Aconchegá-lo e dar-lhe um beijo de boa noite.
Afagar o seu cabelo de arcanjo e dirigir-se ao quarto.
Entrar pela porta do quarto descalçando-se em cima do tapete fofo.
Olhar em frente e ver a cortina desalinhada.
Olhar para a cama e ver o conteúdo de todas as gavetas despejado em cima da colcha de seda. Tudo ao monte, tudo virado do avesso, tudo ao léu.
O que estaria a faltar? Quem faria uma coisa destas na noite de Natal? Será que o seguro cobria os danos?
E estaria ainda alguém em casa?
Sentir o coração bater até quase lhe sair do peito.
Sair do quarto encontrar o marido que fora à cozinha, à porta do corredor, com duas facas grandes.
Perceber por sinais que o marido lhe fazia, que os intrusos poderiam ainda estar em casa.
Correr para a porta do quarto do filho e telefonar à família enquanto o marido percorre a casa.
Não temer nada por si, pensar apenas no filho. Não sentir nenhum medo por si. Sentir-se invulnerável.
Saber que o seu corpo magro tinha 20 metros de altura e a força de um tornado.
Perceber e antecipar que atingirá com a sua fúria invencível e assassina qualquer desconhecido que chegue perto da sua criança.
Compreender que os seus princípios humanistas, de não violência e pacifismo caem abaixo da terra perante uma ameaça ao filho.
À cria.
Sentir o apelo animal que faz desconsiderar qualquer consequência que possa advir para si - agressão, incapacitação, morte, prisão - logo que o seu filho esteja seguro.
E segurar a faca com mais força, na sua atitude de leoa selvagem e protetora.
Os intrusos já não estavam em casa. Fugiram quando ouviram o carro chegar e deixaram o trabalho a meio, embora tivessem levado muita coisa.
Lúcia demorou a largar a faca, como se tivesse medo que a realidade não fosse tão boa como as notícias que acabara de receber. Olhou para o marido, espreitaram o filho e olharam para o quarto revolto.
Choraram muito.
Perceberam logo que os ladrões tinham levado o ouro que Lúcia colecionava havia 35 anos, entre compras, dádivas e heranças. Mas nessa noite, os ladrões roubaram-lhes muito mais do que isso. Roubaram a sensação de segurança e conforto que o seu lar lhes oferecia. Roubaram a sua privacidade. Roubaram o apego à casa que construíram arduamente.
E deram a Lúcia a certeza que o amor que sentia pelo filho era muito maior que a sua vida, era muito mais forte do que qualquer coisa que alguma vez tivesse imaginado e que não se ficava pelo quanto o seu coração batia por ele. Tinha consequências práticas e muito reais.
Lúcia soube de forma muito concreta e mesmo assustadora que pelo filho era capaz de tudo. Até de matar.
Quando a família a quem entretanto tinham telefonado para os acudir e chamar a polícia assomou afogueada, munida das caçadeiras e outras ferramentas capazes de os proteger de um pequeno exército, era já tarde.
Entrar em casa depois da ceia de Natal em casa dos sogros com o bebé ao colo.
Olhar a sala em tons de branco, prata e preto finamente decorada e sentir que a casa inalterada estava diferente.
Afastar essa impressão por achar pateta, reparar que nada estava fora do sítio e sentir-se confortada.
Entrar pelo corredor dos quartos e levar o filho à cama.
Aconchegá-lo e dar-lhe um beijo de boa noite.
Afagar o seu cabelo de arcanjo e dirigir-se ao quarto.
Entrar pela porta do quarto descalçando-se em cima do tapete fofo.
Olhar em frente e ver a cortina desalinhada.
Olhar para a cama e ver o conteúdo de todas as gavetas despejado em cima da colcha de seda. Tudo ao monte, tudo virado do avesso, tudo ao léu.
O que estaria a faltar? Quem faria uma coisa destas na noite de Natal? Será que o seguro cobria os danos?
E estaria ainda alguém em casa?
Sentir o coração bater até quase lhe sair do peito.
Sair do quarto encontrar o marido que fora à cozinha, à porta do corredor, com duas facas grandes.
Perceber por sinais que o marido lhe fazia, que os intrusos poderiam ainda estar em casa.
Correr para a porta do quarto do filho e telefonar à família enquanto o marido percorre a casa.
Não temer nada por si, pensar apenas no filho. Não sentir nenhum medo por si. Sentir-se invulnerável.
Saber que o seu corpo magro tinha 20 metros de altura e a força de um tornado.
Perceber e antecipar que atingirá com a sua fúria invencível e assassina qualquer desconhecido que chegue perto da sua criança.
Compreender que os seus princípios humanistas, de não violência e pacifismo caem abaixo da terra perante uma ameaça ao filho.
À cria.
Sentir o apelo animal que faz desconsiderar qualquer consequência que possa advir para si - agressão, incapacitação, morte, prisão - logo que o seu filho esteja seguro.
E segurar a faca com mais força, na sua atitude de leoa selvagem e protetora.
Os intrusos já não estavam em casa. Fugiram quando ouviram o carro chegar e deixaram o trabalho a meio, embora tivessem levado muita coisa.
Lúcia demorou a largar a faca, como se tivesse medo que a realidade não fosse tão boa como as notícias que acabara de receber. Olhou para o marido, espreitaram o filho e olharam para o quarto revolto.
Choraram muito.
Perceberam logo que os ladrões tinham levado o ouro que Lúcia colecionava havia 35 anos, entre compras, dádivas e heranças. Mas nessa noite, os ladrões roubaram-lhes muito mais do que isso. Roubaram a sensação de segurança e conforto que o seu lar lhes oferecia. Roubaram a sua privacidade. Roubaram o apego à casa que construíram arduamente.
E deram a Lúcia a certeza que o amor que sentia pelo filho era muito maior que a sua vida, era muito mais forte do que qualquer coisa que alguma vez tivesse imaginado e que não se ficava pelo quanto o seu coração batia por ele. Tinha consequências práticas e muito reais.
Lúcia soube de forma muito concreta e mesmo assustadora que pelo filho era capaz de tudo. Até de matar.
Quando a família a quem entretanto tinham telefonado para os acudir e chamar a polícia assomou afogueada, munida das caçadeiras e outras ferramentas capazes de os proteger de um pequeno exército, era já tarde.
segunda-feira, dezembro 05, 2011
Marcelo
Marcelo era loucamente apaixonado pela mulher.
Lavínia tinha sido um amor à primeira vista completamente desmesurado. Marcelo amou-a mal a viu e independentemente da sua falta de reciprocidade.
E como Marcelo era persistente, teimoso, e além de tudo um péssimo perdedor, não descansou enquanto Lavínia não foi sua. Tanto andou, tanto jogou (dentro e fora dos limites do aceitável) que Lavínia acabou por lhe sucumbir de direito, mas nunca de facto.
Lavínia era sua - sua esposa, sem nunca ter sido completamente sua mulher.
A perceção deste facto deixava Marcelo louco, ciumento e possessivo.
Não tolerava que Lavínia fosse simpática com outros homens ou que tivesse amigos do sexo masculino - apesar de ela fazer sempre o que bem entendia - e punia-a com requintes de malvadez subtil quando ela fazia algo que lhe desagradava.
Mas Marcelo não sentia só ciúmes de outros homens, ele sentia muitos ciumes de tudo. Porque lhe parecia que de tudo Lavínia gostava mais do que dele, que encarava tudo na vida com uma força e entusiasmo admiráveis - uma centelha que ele não possuía e que tão melhor era empregue se ela ao menos a direcionasse para ele.
Marcelo queria a todo o custo dominá-la e Lavínia derrotava-o sempre da mesma maneira inelutável: fazendo de conta que se deixava dominar.
Por perceber isto, Marcelo dispendia uma quantidade de tempo e energia sobreumanos à caça de fantasmas, dos homens que não resistiam à sua mulher (que eram todos, claro, na sua visão profundamente apaixonada) e daqueles com quem ela se andasse às suas escondidas. Porque - claro - uma mulher daquelas não era de se contentar com menos do que a plenitude que ele sabia que não lhe dava.
Marcelo colocava a mulher num pedestal inalcançável. Não percebia que Lavínia via a relação como algo em que podia ser diferente, mais tranquila, mostrar a outra face da moeda. e que lhe estava profundamente comprometida. Mas Marcelo tinha a visão turva das cataratas da insegurança. Não percebia que a mulher apesar de ter mais vida, mais ambições e mais sonhos, lhe era dedicada.
E quanto mais inseguro, mais Marcelo era um cão de guarda feroz contra os outros e menos um amante doce e companheiro para a esposa, que por seu turno ficava menos contente o que por seu turno deixava Marcelo mais inseguro. Um ciclo vicioso aparentemente inquebrável.
Lavínia num pedestal, Marcelo inseguro, Marcelo agressivo, Lavínia descontente, e... Marcelo a colocar Lavínia num pedestal ainda mais alto, por perceber o seu descontentamento, a ser inseguro e agressivo, e a deixar Lavínia mais descontente... etc.
Até que um dia, ocorreu a Marcelo uma ideia tão brilhante quanto simples.
Se Lavínia engravidasse, se tivessem filhos, por muito que a "mulher Lavínia" não fosse completamente sua, a "mãe de família Lavínia" nunca deixaria de o ser.
E a partir do momento em que percebeu que se tivessem uma família, Lavínia nunca o deixaria, porque os seus valores a fariam tolerar quase tudo de forma mais ou menos dócil, Marcelo não descansou enquanto não a engravidou.
O plano era simples e foi posto em marcha. A partir do momento em que "estivessem grávidos", Marcelo seria indispensável a Lavínia, seria o seu grande apoio, a pessoa de quem dependeria, o foco da sua vida, ela seria dócil e entregar-se-ia sem reservas, porque tinham um projeto, uma responsabilidade tão grande em conjunto. E não lhe restariam energias para olhar para outros homens ou para muito mais coisas, porque teria mais do que fazer com a nova família que agora começava. Além do que Marcelo ganhava um novo argumento nas discussões.
A Lavínia não passava despercebido este racional, por muito que fizesse de conta que não. Mas ela tinha vontade de ser mãe e tinha-se casado com Marcelo porque via coisas muito boas nele e porque gostava dele; ela não tinha qualquer intenção de o deixar, nem tão pouco olhava para outros homens como o marido tanto dizia, por isso fez como de costume que se deixara levar na cantiga.
Encarou a gravidez com o entusiasmo e a paixão que empregava em todos os seus projetos e ambições. Sabia que isso por norma deixava o marido louco de ciumes, mas esperava desta vez conseguir contagiá-lo da alegria que sentia, já que era uma coisa de ambos e que ambos tinham querido.
A Marcelo surpreenderia o facto de se sentir ciumento da quantidade de energia que Lavínia tinha e era capaz de dar à preparação para a chegada do filho. Desagradaria perceber que a sua importância parecia diminuida perante a gravidez.
Mas o choque que realmente faria o seu mundo ruir, seria ver a mulher olhar para o filho pela primeira vez, completamente entregue, sem reservas nem condições. Seria perceber que Lavínia fora sua, por muito imerecida que tivesse sido essa benção até então. Mas que dali em diante Lavínia seria de outro com quem não podia competir. E perceber que tudo o que tinha temido até então havia sido completamente estúpido, porque o único grande rival de quem ele tinha de facto alguma coisa a temer acabara de nascer.
Lavínia tinha sido um amor à primeira vista completamente desmesurado. Marcelo amou-a mal a viu e independentemente da sua falta de reciprocidade.
E como Marcelo era persistente, teimoso, e além de tudo um péssimo perdedor, não descansou enquanto Lavínia não foi sua. Tanto andou, tanto jogou (dentro e fora dos limites do aceitável) que Lavínia acabou por lhe sucumbir de direito, mas nunca de facto.
Lavínia era sua - sua esposa, sem nunca ter sido completamente sua mulher.
A perceção deste facto deixava Marcelo louco, ciumento e possessivo.
Não tolerava que Lavínia fosse simpática com outros homens ou que tivesse amigos do sexo masculino - apesar de ela fazer sempre o que bem entendia - e punia-a com requintes de malvadez subtil quando ela fazia algo que lhe desagradava.
Mas Marcelo não sentia só ciúmes de outros homens, ele sentia muitos ciumes de tudo. Porque lhe parecia que de tudo Lavínia gostava mais do que dele, que encarava tudo na vida com uma força e entusiasmo admiráveis - uma centelha que ele não possuía e que tão melhor era empregue se ela ao menos a direcionasse para ele.
Marcelo queria a todo o custo dominá-la e Lavínia derrotava-o sempre da mesma maneira inelutável: fazendo de conta que se deixava dominar.
Por perceber isto, Marcelo dispendia uma quantidade de tempo e energia sobreumanos à caça de fantasmas, dos homens que não resistiam à sua mulher (que eram todos, claro, na sua visão profundamente apaixonada) e daqueles com quem ela se andasse às suas escondidas. Porque - claro - uma mulher daquelas não era de se contentar com menos do que a plenitude que ele sabia que não lhe dava.
Marcelo colocava a mulher num pedestal inalcançável. Não percebia que Lavínia via a relação como algo em que podia ser diferente, mais tranquila, mostrar a outra face da moeda. e que lhe estava profundamente comprometida. Mas Marcelo tinha a visão turva das cataratas da insegurança. Não percebia que a mulher apesar de ter mais vida, mais ambições e mais sonhos, lhe era dedicada.
E quanto mais inseguro, mais Marcelo era um cão de guarda feroz contra os outros e menos um amante doce e companheiro para a esposa, que por seu turno ficava menos contente o que por seu turno deixava Marcelo mais inseguro. Um ciclo vicioso aparentemente inquebrável.
Lavínia num pedestal, Marcelo inseguro, Marcelo agressivo, Lavínia descontente, e... Marcelo a colocar Lavínia num pedestal ainda mais alto, por perceber o seu descontentamento, a ser inseguro e agressivo, e a deixar Lavínia mais descontente... etc.
Até que um dia, ocorreu a Marcelo uma ideia tão brilhante quanto simples.
Se Lavínia engravidasse, se tivessem filhos, por muito que a "mulher Lavínia" não fosse completamente sua, a "mãe de família Lavínia" nunca deixaria de o ser.
E a partir do momento em que percebeu que se tivessem uma família, Lavínia nunca o deixaria, porque os seus valores a fariam tolerar quase tudo de forma mais ou menos dócil, Marcelo não descansou enquanto não a engravidou.
O plano era simples e foi posto em marcha. A partir do momento em que "estivessem grávidos", Marcelo seria indispensável a Lavínia, seria o seu grande apoio, a pessoa de quem dependeria, o foco da sua vida, ela seria dócil e entregar-se-ia sem reservas, porque tinham um projeto, uma responsabilidade tão grande em conjunto. E não lhe restariam energias para olhar para outros homens ou para muito mais coisas, porque teria mais do que fazer com a nova família que agora começava. Além do que Marcelo ganhava um novo argumento nas discussões.
A Lavínia não passava despercebido este racional, por muito que fizesse de conta que não. Mas ela tinha vontade de ser mãe e tinha-se casado com Marcelo porque via coisas muito boas nele e porque gostava dele; ela não tinha qualquer intenção de o deixar, nem tão pouco olhava para outros homens como o marido tanto dizia, por isso fez como de costume que se deixara levar na cantiga.
Encarou a gravidez com o entusiasmo e a paixão que empregava em todos os seus projetos e ambições. Sabia que isso por norma deixava o marido louco de ciumes, mas esperava desta vez conseguir contagiá-lo da alegria que sentia, já que era uma coisa de ambos e que ambos tinham querido.
A Marcelo surpreenderia o facto de se sentir ciumento da quantidade de energia que Lavínia tinha e era capaz de dar à preparação para a chegada do filho. Desagradaria perceber que a sua importância parecia diminuida perante a gravidez.
Mas o choque que realmente faria o seu mundo ruir, seria ver a mulher olhar para o filho pela primeira vez, completamente entregue, sem reservas nem condições. Seria perceber que Lavínia fora sua, por muito imerecida que tivesse sido essa benção até então. Mas que dali em diante Lavínia seria de outro com quem não podia competir. E perceber que tudo o que tinha temido até então havia sido completamente estúpido, porque o único grande rival de quem ele tinha de facto alguma coisa a temer acabara de nascer.
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