segunda-feira, janeiro 14, 2013

Filipa



(personagem escrita para um pedido de casamento a 11/1/2013. O texto tem o input da própria Filipa)

Todos nós somos as personagens principais das nossas vidas. E o mundo é uma série de novelas em que as personagens principais de uma história são personagens secundárias e figurantes nas dos outros.
Passo a passo vamos construindo as histórias das nossas vidas ora com opções que tomamos ora com opções que a vida toma por nós.

As escolhas que nós fazemos, grandes ou pequenas, são os passos que damos (ou achamos que damos) em direcção àquilo que queremos para nós. Por norma são negociáveis. As escolhas que a vida toma são as barreiras ou as pontes que encontramos nesse mesmo caminho. E são geralmente incontornáveis.

Filipa soube da morte do Nelson no início de Dezembro pelo Facebook. Esse foi o dia em que o Facebook lhe mostrou que a vida, para além de nos poder destruir alguns pequenos sonhos, se pode também desmoronar por completo aos nossos pés.

E esse foi o dia em que a Filipa pensou pela primeira vez nas riquezas que possuía.

Um Colega havia morrido. Vou dizer de novo: um colega, jovem, com toda vida planeada mas não construída havia morrido. A ligação não era particularmente forte, mas a ideia incontornável de que poderia ter sido o seu namorado, fê-la tremer.

Nesse momento fechou os olhos e pensou nas suas riquezas: os seus amigos, a sua família, a profissão que adora e ele, o inquestionável homem que por algum motivo ainda inexplicável a completava. E se fosse ele? E se de repente todos os planos, sonhos, viagens e horas de amor lhe fossem tiradas num segundo por um carro, por uma queda, um acidente?

E de repente já não estar. De repente, aquele pedaço da sua vida, tão certo, tão seguro, já não existir. O Nelson já não existia e, mesmo não sendo um dos personagens principais da sua vida, a sua morte tocou-a como se fosse. Porque o Nelson não era só ele. Ele era a própria Filipa. Era a Fabi, a Aida, a Cat, a Mafalda, a Sílvia, a Cátia e as outras amigas próximas. Ele era o namorado, Nelo. Ele era o pai e a mãe. Ele era a avó. Ele era todas as pessoas de quem gostava muito e que a qualquer momento poderiam deixar de existir. E não havia nada que pudesse fazer para mudar isso.
Filipa não tinha medo da morte, aliás, por ser enfermeira encarava-a com a naturalidade de quem encara algo que faz parte da sua vida. Mas nesse momento sentiu um pânico enorme e uma urgência de viver crescer-lhe no peito. Teve muito medo.
Abriu os olhos e decidiu que não mais adiaria as coisas que pudesse fazer. Não queria deixar nada por dizer, nada por fazer.

Toda a vida, Filipa se protegera de viver. Toda a vida foi cuidadosa na escolha de quem abria o seu coração, e não apenas em termos amorosos. Por vezes o coração não se abria de todo, e só as pessoas que a aceitavam tal como era acabavam mais cedo ou mais tarde por entrar. Quando lá chegavam podiam perceber que não mais de lá sairiam.

Com esta consciência, sentia que agora procuraria abraçar tudo o que tinha de mais precioso: a sua família, os seus amigos, o seu namorado. Tentaria aproveitar todos os abraços, todas as saídas, todos os beijos, todas as conversas.

Respirou fundo e acalmou-se um pouco. Disse mais uma vez a si mesma que a vida são os passos que damos, que são as nossas opções. E as opções que a vida toma são o que não controlamos.

E de repente apercebeu-se: a vida tem coisas que não controlamos e coisas que escolhemos a cada segundo.

E as opções que tomamos em cada momento são nossas. A opção de estar com os amigos e aproveitar a sua presença, a opção de usufruir da casa, de sentir gratidão pelo emprego, por não faltar nada na mesa, por amar e ser amada, por existir.

Era o sentir-se grata por cada momento de alegria e abundância. Fechar os olhos e sentir alegria e gratidão, pelo calor da casa, pelo cheiro a comida e a lenha a queimar. O pelo dos gatos a passar-lhe nas mãos um a um quando se senta no sofá. De olhos fechados grata pelos amigos presentes nas ocasiões banais e especiais. De olhos fechados porque a vida ia levá-la às cegas pelos caminhos que bem entendesse, de qualquer das formas. Fechava os olhos porque deixava de resistir, e deixava-se levar, decidida apenas a aproveitar cada momento do caminho o mais que pudesse e a tomar todas as opções que achasse que a iriam conduzir à felicidade, mesmo sem ter a certeza que isso iria acontecer.

Nessa noite, já tarde mas de olhos ainda abertos na cama, abraçou o namorado com força e sem falar. Ele tinha-a conquistado havia anos e tinha-se tornado uma parte da sua vida. Sentia-o como uma criatura sem igual, que sem razão aparente a tinha conquistado. Pensou em quem eram ambos e lembrou-se que muitas vezes a vida dos outros também tem que ser preenchida por alegria, e que muitas vezes somos nós que a temos trazer alegria às vidas dos outros. Pensou nas tantas concessões que fazia para agradar a colegas, a amigos - mas será que se mostrava um bloquinho de gelo perante aquele homem? A pessoa com quem provavelmente iria passar mais tempo na sua vida? Ela assim o desejava, mas e se assim não fosse esse, o destino? Como se sentiria se o perdesse? Mas mais ainda, se o perdesse sem ter mostrado o quanto o amava? Sentir-se-ia culpada - perdida e culpada.

Sentindo a sua agitação muda, ele abraçou-a um pouco mais.

Não, não poderia deixar nada por dizer, nada por fazer.

Fechou os olhos. À memória veio-lhe aquela música. E como uma música pode dizer tanto sobre ela e ele. A Filipa tinha medo dos passos a dar, de amar alguém quando já tinha sido abandonada. Mas ao ver aquele rapaz, tímido e doce, quando a esperava, quando a olhava, as suas dúvidas de alguma forma se dissipavam.

A melodia começou a tocar na sua cabeça, a letra a passar no seu coração. Abriu os olhos. A decisão estava tomada, e naquele dia de Dezembro, este dia já existia.


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